O estouro da bolha e o destino do Brasil
Nos últimos anos, o debate sobre o sistema econômico
internacional girou em torno de duas posições extremas e
antagônicas. De um lado estavam os que descreviam, com grande otimismo, a
criação de uma nova economia capitalista, baseada em
uma revolução científica e tecnológica que passara
a permitir uma acumulação leve e flexível, sem grande
imobilização de capital em plantas rígidas. Associada a
políticas econômicas muito mais precisas e a ganhos crescentes de
produtividade, essa nova economia havia colocado sob controle os ciclos
tradicionais. Para consolidar a tendência a um desenvolvimento
capitalista contínuo e sem sustos, era necessário
tão-somente remover obstáculos políticos herdados da fase
anterior (intervencionismo estatal, legislações trabalhistas e
previdenciárias, sindicatos atuantes, etc.). Daí o papel
atribuído às políticas neoliberais na
construção dessa nova ordem.
De outro lado, pensadores de inspiração marxista apontavam um
cenário inverso: a acumulação de capital fictício
tornara-se desproporcional em relação aos circuitos da
produção real, o sistema apresentava crescente dificuldade de
incorporar trabalho vivo, criador de valor, e as tendências à
superprodução se acumulavam tudo isso convergindo para uma
grave crise iminente.
Defendi, nesse debate, que as posições desse segundo grupo
continham os elementos mais verdadeiros, mas eram insuficientes para descrever
a dinâmica real do sistema. Pois o capitalismo assumira uma
configuração que, ao lado de uma tendência à crise,
repunha dinamicamente a possibilidade de adiamento dessa mesma crise. Essa
configuração era marcada pela presença de três
anomalias.
A primeira: a economia mais importante do mundo passara a funcionar com
déficits externos colossais e tornados permanentes. Há muitos
anos, como se sabe, o déficit comercial norte-americano tem-se situado
na casa dos US$ 400 mil milhões por ano. Para perceber a enormidade
desse número, basta lembrar que, quando o déficit comercial
brasileiro atingiu apenas US$ 8 mil milhões por ano, nosso
país que não é pequeno mergulhou em crise
aguda, que forçou a mudança de seu regime cambial.
Só podíamos compreender esse padrão de funcionamento da
economia norte-americana, aparentemente inviável, quando o
observávamos junto com uma segunda anomalia do sistema: essa economia
gigantesca e altamente deficitária emite, sem lastro e sem regras de
emissão, a moeda do mundo. Por isso, sua capacidade de endividamento tem
sido incrivelmente elástica, em uma escala quase impensável nos
moldes tradicionais. Recordemos como chegamos a isso: ao transformar o
dólar em moeda de referência internacional, a Conferência de
Bretton Woods (1944) entregou o controle da emissão monetária da
economia capitalista mundial aos Estados Unidos, mas impôs a este
país duas regras de emissão: a conversibilidade dólar-ouro
e a paridade fixa entre os dois. Ambas as regras foram garantidas em tratado
internacional assinado pelo Estado norte-americano.
Criou-se assim, no após-guerra, um sistema em que a reserva
norte-americana de ouro lastreava o dólar, que por sua vez era a
referência para as demais moedas, de acordo com taxas de câmbio
fixas (ajustáveis segundo certas regras). Nesse contexto, o poder de
emissão monetária do Estado norte-americano era contido e
disciplinado, pois a fabricação de dólares representava a
hipoteca de sua reserva de ouro e era limitada por ela. Em 1972, como se sabe,
os Estados Unidos romperam unilateralmente o Tratado de Bretton Woods e se
descomprometeram com as regras de emissão nele previstas. Desvincularam
o dólar e o ouro, repudiando a conversibilidade, e em seguida
desvalorizaram a moeda, abandonando a paridade, tendo em vista recuperar a
competitividade de sua economia. Os demais países tiveram de seguir
caminho semelhante, efetuando suas próprias
desvalorizações competitivas, logo tornadas sucessivas.
Assim, o sistema de Bretton Woods deixou de existir, dando lugar a um
não-sistema de moedas sem lastro e câmbios flutuantes.
Desenvolveram-se a partir de então, vigorosamente, os processos que
viriam a formar o que mais tarde foi chamado
globalização, especialmente a
financeirização da riqueza, pois os mercados de câmbio
(estreitamente vinculados aos de juros) tornaram-se fontes de receitas
extraordinárias para empresas, fundos e bancos multinacionais, capazes
de operar simultaneamente em diferentes moedas e praças financeiras.
Como o sistema internacional não tinha substituto para o dólar, o
Estado norte-americano reteve, na prática, o direito de emissão
da moeda internacional, agora porém sem ser limitado por regras
definidas em tratado. Não foi uma decisão técnica.
Relacionou-se, antes de tudo, com um ambicioso projeto de retomada (ou
reafirmação) da hegemonia norte-americana, àquela altura
ameaçada pelo vigor das economias alemã e japonesa
reconstruídas, o poderio político-militar soviético em
aparente ascensão e as veleidades contestadoras de grande parte do
então Terceiro Mundo. Sem compreender esse projeto, em todas as suas
dimensões (econômica, militar, política, cultural,
ideológica), nada se compreende da evolução da conjuntura
internacional nas últimas décadas. (Reiteremos, de passagem,
este aspecto da história: o chamado processo de
globalização arranca a partir do momento em que é
impulsionado pelo Estado nacional hegemônico, em defesa de seus
interesses; confundir globalização e fim da
ação dos Estados não passa de um contra-senso).
Ora, um Estado nacional que emite, sem regras, a moeda do mundo é uma
situação que não pode perdurar indefinidamente, pois
introduz uma assimetria profunda e estrutural nas relações
internacionais. Imaginá-la como uma situação normal
é admitir que os demais componentes do sistema aceitarão
passivamente uma posição subordinada, o que contraria toda a
experiência histórica. O problema central da conjuntura mundial
era, portanto, a meu ver, identificar como e quando seria quebrada essa regalia
do Estado norte-americano, que era o verdadeiro fundamento da ordem mundial
unipolar, inviável no longo prazo.
A criação do euro colocava um dado novo, mas não resolvia
a questão. Porque essa segunda anomalia se prolongava tanto? A
resposta, a meu ver, remetia a uma terceira anomalia: o pólo ascendente
do sistema o Leste da Ásia é estruturalmente
superavitário, e não poderia funcionar se não tivesse para
onde escoar seu enorme superávit. O déficit norte-americano
ou seja, a necessidade de financiamento da economia norte-americana
é que abria espaço para a reciclagem do capital
asiático sobrante e, mais do que isso, criava o mais importante
pólo de demanda efetiva para toda a economia internacional.
Em artigo publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Economia
Política, em junho de 2001, escrevi: O que mantém em
funcionamento a ordem mundial atual, chamada de neoliberal, não é
o que ela anuncia como sendo seu grande trunfo (o desenvolvimento
tecnológico e a formação de uma nova
economia), mas sim um mecanismo tipicamente keynesiano: a
sustentação da demanda efetiva por meio da emissão de
dívidas. Emissão incrivelmente elástica porque o mesmo
agente, de um lado, se endivida e, de outro, fabrica a moeda (não
lastreada) em que sua dívida deve ser paga. Este precário arranjo
produz conflito no núcleo do poder mundial: a posição
especial do Estado norte-americano é mal tolerada, pois sua hegemonia
está inscrita na lógica de funcionamento do sistema, nas
próprias regras do jogo. Mas, além de conflito, também
há cooperação, pois se o dólar desabar todos
desabam, a começar pelo Japão, o grande credor. Eis o paradoxo: o
mecanismo que mantém a economia mundial funcionando (a capacidade de
endividamento da sociedade norte-americana) depende da posição
especial do dólar; porém, enquanto essa posição
perdurar, os Estados Unidos manterão um grau de hegemonia que não
é aceitável para os demais participantes do grande jogo de poder
mundial. Em outras circunstâncias históricas, isso se resolveria
pela guerra entre os integrantes do núcleo do sistema, mas hoje esta
possibilidade está afastada. Assim, a atual configuração
se modifica com mais lentidão, espremida por tendências
contraditórias tendências de conflito e de
cooperação no núcleo que não permitem uma
solução rápida e radical. A posição do
dólar é o elemento-chave para o desenlace da crise latente.
Como se vê, minha posição continha uma crítica
à visão catastrofista, que anunciava sempre uma crise
sistêmica iminente. Ao mesmo tempo, descrevia uma ordem intrinsecamente
instável, que nada tinha a ver com as visões idílicas
sobre o capitalismo contemporâneo.
Por uma questão de
coerência, devo emitir agora uma opinião arriscada: a
revelação dos artifícios contábeis que mantiveram
sobrevalorizada a Bolsa de Nova York nos últimos anos coloca em risco
toda a engrenagem que produzia o adiamento da crise sistêmica. A
capacidade de endividamento da sociedade norte-americana e a
posição especial do dólar estavam lastreadas
principalmente nesses ativos que estão desaparecendo. Ainda não
podemos dizer se será uma crise fulminante ou prolongada, com muitas
idas e vindas, mas podemos dizer que ela é profunda e cheia de
conseqüências. Representará uma inflexão importante na
conjuntura internacional, dando início a um rearranjo de longo
fôlego, que ao fim e ao cabo conduzirá a uma nova multipolaridade,
com a Europa e a China como centros emergentes.
Quanto a nós, os periféricos, estaremos diante de novos riscos
(imensos) e novas oportunidades. Os riscos decorrem do aumento da
propensão do Estado norte-americano à guerra ameaça
que atualmente se restringe à sua relação com
países periféricos e, no caso específico da
América Latina, do apressamento na formalização da
área americana, ou área do dólar,
tendo a Alca como proposta articuladora. Porém, oportunidades
também surgirão. A transição da unipolaridade para
uma outra configuração multipolar aumentará os
espaços de manobra daqueles países intermediários que
conseguirem preservar significativos graus de liberdade.
O jogo se tornará mais pesado. Nosso posicionamento deve partir de uma
premissa: é preciso impedir a todo custo que, nos estertores da ordem
unipolar, Brasil e América Latina sejam tragados pela área
regional americana. Que os nossos candidatos a presidente e os partidos que
lhes dão sustentação não hesitem em se posicionar
sobre isso.
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Autor de "A opção brasileira", Contraponto Editora, 1998, nona
edição; membro da coordenação nacional do Movimento
Consulta Popular.
O original deste artigo encontra-se em
http://alainet.org/docs/2309.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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