Lula e o espelho argentino
Há muitos anos que as autoridades econômicas do Brasil parecem ter
uma compulsão à repetição, que as faz copiar
qualquer asneira que se faça deste lado do Rio da Prata.
Buenos Aires - O Brasil enfrenta uma nova conjuntura crítica em sua
história: um partido de esquerda chega ao governo com uma ampla
legitimidade popular e cristalizando a esperança das grandes maiorias,
que optaram por um giro nas políticas neoliberais implementadas nos
últimos anos. Essas políticas do governo Fernando Henrique
Cardoso tiveram como conseqüência a prostração
econômica, o aprofundamento da dependência externa e o
empobrecimento de grandes setores da sociedade brasileira. Essa mudança
ainda não se produziu, mesmo com as enormes expectativas que a
eleição de Lula gerou não só no Brasil, mas em toda
América Latina. Pelo contrário, o que se observa é um
aprofundamento da orientação que já vinha sendo imposta
pelos governos que antecederam a Lula, chegando inclusive a aumentar as
características neoliberais em alguns pontos, como a
elevação da taxa de juros. As velhas políticas continuam,
com brios renovados, enquanto as novas, como o programa Fome Zero, ainda
não nasceram. Em sua campanha eleitoral, Lula insistiu que a
esperança devia vencer o medo. Lamentavelmente, pelo menos até
agora, o pavor com possíveis represálias do mercado financeiro
tem vencido a esperança encarnada na figura do presidente.
Como argentino, latino-americano e, muito especialmente, como um
irredutível brasilófilo gostaria de expor umas poucas
reflexões que podem ser úteis para a discussão sobre o
futuro econômico e social do Brasil.
Creio que é da maior importância que o debate sobre as
políticas mais apropriadas para honrar as promessas eleitorais
formuladas por Lula e pelo PT tomem nota de alguns ensinamentos que nos
dá a história da Argentina. As diferenças existentes entre
nossos países não são grandes o suficiente para não
se aprender nada um do outro. E, numa conjuntura como a atual, penso que os
brasileiros deveriam olhar com muita atenção para o espelho
argentino. Há muitos anos que as autoridades econômicas do Brasil
parecem ter uma compulsão à repetição, que as faz
copiar qualquer asneira que se faça deste lado do Rio da Prata. Isso
ocorreu quando nós adotamos o Plano Austral, pouco depois imitado no
Brasil com o nome de Plano Cruzado. Voltou a ocorrer quando Domingo Cavallo
inventou a convertibilidade e estabeleceu a demente paridade de um a um entre
peso e dólar. No Brasil, imitadores ainda mais alienados tentaram
sustentar um câmbio de 0,80 centavos de real com um dólar
algo que, como na Argentina, mais parecia uma alucinação do que
fruto de um raciocínio econômico sério.
Como a Argentina não podia sustentar essa paridade absurda, Cavallo e
seus sucessores tiveram de recorrer a taxas de juro cada vez mais exorbitantes
para atrair capitais externos e financiar seu modelo. Finalmente, ocorreu o
inevitável: quebra do sistema financeiro, ''corralito'', e a mais
profunda e longa crise econômica da história argentina. O governo
de Fernando de la Rúa, eleito para efetuar mudanças, pagou caro
pelo medo que teve de tocar no sistema de paridade: as grandes
mobilizações de 19 e 20 de dezembro de 2001 acabaram com De la
Rúa, Cavallo e o governo da Aliança.
Vistas a partir da Argentina, as políticas que estão sendo
seguidas agora no Brasil, com taxa de juros fenomenais, parecem inspirar-se nas
mesmas idéias que provocaram o colapso econômico por aqui. Tomara
que o Brasil reaja a tempo e evite a repetição do desastre
argentino.
Mas, além desses inquietantes paralelos, há outras coisas que me
preocupam ainda mais. Relendo os jornais da época de Menem, nos anos 90,
qualquer um pode encontrar os mesmos tipos de elogios e
bajulações que hoje são cantados a Lula. Os aduladores
eram os mesmos: os especuladores financeiros, o diretor-gerente do FMI, o
presidente do Banco Mundial, o secretário de Tesouro dos EUA, a Casa
Branca, os líderes do G-7, a imprensa internacional,... O que hoje dizem
de Lula é o mesmo que diziam de Menem: um governante sério, que
havia abandonado suas idéias populistas e estatistas, e agora
demonstrava prudência e sensatez no manejo do orçamento
público. Que havia aprendido a ler corretamente os sinais dos mercados e
que havia superado a irracional aversão populista ao neoliberalismo.
Também elogiavam seus pedidos para modernizar o sindicalismo
e desideologizar as negociações entre patrões
e empregados. São os mesmos elogios remetidos hoje a Lula e ao PT.
Essas pessoas e seu imenso aparato ideológico repetiam todos os dias, na
imprensa argentina, que o país ia por um bom caminho, que era um modelo
a imitar, que seu futuro estava assegurado e muitas mentiras desse tipo. Quando
se produziu o desastre, os mesmos personagens culparam os argentinos pela
tragédia. Seria bom que o Brasil tomasse nota dessas
lições. Os déspotas da atual desordem mundial não
costumam dar bons conselhos a governos eleitos pelo voto.
Se quer ser fiel não só às suas promessas eleitorais, mas
também à sua identidade histórica, o PT no governo tem de
abandonar definitivamente as políticas neoliberais que, lamentavelmente,
inspiram sua gestão. Com essas práticas, o Brasil nunca vai
progredir e deixar de ser um dos países mais injustos do planeta.
Quando eu pergunto, a amigos que estão em Brasília, porque o
governo não ensaia outra política, a resposta parece baseada nos
manuais de negociação das escolas de comércio dos EUA:
precisamos ganhar a confiança dos investidores internacionais,
precisamos respeitar a disciplina fiscal, para reduzir o risco
país... Não é preciso muito esforço para
demonstrar a fragilidade dessa argumentação. Se há um
país que tem todas as condições para ensaiar exitosamente
uma política pós-neoliberal, esse país é o Brasil.
Se ele não pode, quem poderá? O pequeno Equador, do presidente
Lucio Gutiérrez? Um eventual governo da Frente Ampla, no Uruguai? Um
possível governo de Evo Morales na empobrecida Bolívia? Na
Argentina, duvido que isso ocorra, a não ser que mudassem as
condições internacionais. Já o Brasil tem tudo: um imenso
território, uma estrutura industrial ainda importante e uma sociedade
flagelada pela pobreza, mas com um grau elevado de integração
social e cultura, uma elite intelectual e científica de primeiro
nível e uma cultura plural e exuberante. Além disso, o Brasil
possui recursos financeiros suficiente e uma base tributária forte, que
permanece inexplorada, já que está toda comprometida com o
pagamento dos altos serviços de sua dívida externa.
O POSSIBILISMO
A máxima do possibilismo que tem sido a idéia
vigente no governo Lula é o imobilismo: nada se pode mudar, nem
em um país com as condições do Brasil. Caso
contrário, advertem alguns funcionários de Brasília, as
penalidades que o país vai sofrer seriam terríveis e liquidariam
o governo Lula. A Argentina cultivou o possibilismo intensamente,
desde o governo de Alfonsín, na década de 80 até a
hecatombe final. Logo depois da derrocada financeira, o presidente Duhalde
perdeu mais de um ano em discussões estéreis com o FMI que
não serviram de nada, mas que revelaram sua fé também no
possibilismo. Esse fantasma ainda se agita na política
argentina, apesar de alguns sinais alentadores, como, por exemplo, as novas
regras que limitam o movimento dos capitais especulativos.
A falsa ideologia do possibilismo conduziu a Argentina à
pior crise de sua história, ao condicionar a política e o Estado
aos caprichos da bolsa de valores. Por outro lado, quando o país
não teve outra opção que não declarar uma
moratória atabalhoada de sua dívida, as coisas não
pioraram.
Antes, os capitais não vinham, agora, também não. Mas o
ensaio timidamente heterodoxo posto em marcha a partir da moratória,
sobretudo nos últimos meses, teve como conseqüência uma
módica reativação da economia e a
demonstração prática de que ainda em um país mais
fraco e vulnerável que o Brasil é possível voltar a
crescer. Principalmente, se fizermos ouvidos de mercador aos conselhos do FMI.
Por que o Brasil deveria seguir os conselhos dos principais responsáveis
pela interminável sucessão de crises e recessões que
afetam a maior parte das economias do mundo? Que economista sério
e falo de economistas, não de analistas de mercado financeiro
pode acreditar que é possível crescer e desenvolver-se induzindo
a recessão por meio de altas taxas de juro e redução do
gasto público?
É possível de muitos dos meus amigos em Brasília me
dêem razão, mas digam que, por agora, não se pode fazer
outra coisa. Vão dizer que agora é necessária a
estabilidade e que o tempo das mudanças chegará depois. É
um erro grave. O presidente Lula não tem pela frente três anos e
meio. Tem, no máximo, oito ou nove meses de governo efetivo. Por sorte,
terá tempo até que termine o Carnaval de 2004. Após isso,
não poderá tomar nenhuma iniciativa séria e, muito menos,
de atitude genuinamente reformista. O permanente desgaste a que será
submetido pelo mercado financeiro o impedirá de sequer começar a
traçar um caminho de transformações estruturais. A
direita, mais valentona depois vacilações e concessões do
presidente, vai dispor de uma correlação de forças muito
mais favorável que agora.
Seus poderosos lobbies, suas organizações empresariais, seus
meios de comunicação e suas conexões internacionais
vão opor uma barreira formidável contra Lula. Nada indica que o
governo terá um caminho mais fácil no futuro. Seja qual for o
momento, a direita não vai hesitar em usar qualquer método de
desestabilização, assim como fazem atualmente com Hugo
Chávez, na Venezuela, e fizeram com o governo de Salvador Allende, no
Chile.
Em tal caso, Lula não só teria que lidar com uma
oposição muito mais forte. Seu poder relativo teria se reduzido
pela desmoralização de seu próprio partido entre os
eleitores de esquerda e pela desilusão de milhares de brasileiros que
confiaram em suas promessas de mudança. Quando chegue o esperado momento
de lutar contra as causas da injustiça brasileira, sua própria
coalizão vai estar irreparavelmente danificada pela desconfiança
e frustração. Se as forças conservadoras sabem muito bem
os privilégios que precisam defender, e como fazê-lo, as imensas
massas populares não têm a mesma clareza. Não sabem
até que ponto o governo quer levá-las, nem que mudanças
está disposto a fazer.
Por isso, é um erro fatal pensar que há muito tempo pela frente.
O tempo joga contra os adormecidos reformistas de Brasília. A cada dia
que passa, o partido da ordem vai ganhar mais força
ideológica e organizativa. Enquanto os reformistas vão se
confundir, desmoralizar e desorganizar.
Sucessivos presidentes argentinos optaram por governar tranqüilizando os
mercados e satisfazendo pontualmente a cada um de suas
reclamações. As vozes dos grandes capitais e do FMI ressoavam
como trovões em Buenos Aires e o governo não perdia um minuto em
responder a elas. É verdade que não há paralelo entre a
figura tão respeitável como a de Lula e um personagem do submundo
da política, como Menem, ou um incompetente crônico como De la
Rúa. Também não há paralelo entre a história
do PT e da Aliança que elegeu De la Rúa.
Mas nem uma liderança respeitável, nem um grande partido de
massas são garantia de rumo correto. Durante o apogeu o stalinismo,
pensava-se que o líder e o partido eram infalíveis. Hoje, por
sorte, sabe-se que nem sempre é assim. Dói dizer, mas para mim, o
PT está avançando pelo caminho equivocado, ao final do qual
não encontrará uma sociedade mais justa, e sim uma estrutura
capitalista mais injusta e menos democrática que a anterior e, por
conseqüência, mais violenta.
Um país onde, ao final desse processo, a ditadura do capital, revestida
com um etéreo disfarce pseudo-democrático, será mais
férrea ainda que antes, demonstrando que George Soros tinha razão
quando aconselhava o povo brasileiro a não se preocupar em eleger Lula
porque, de qualquer modo, o país seria governado pelos mercados. E,
já se sabe, os mercados não governam democraticamente, nem com
justiça social.
Seria conveniente poupar o Brasil dos horrores do possibilismo e a
política de garantir a confiança dos mercados,
produzida na Argentina contemporânea. Meus amigos em Brasília
deveriam estudar cuidadosamente o ocorrido no meu país e, sobretudo,
deixar definitivamente para trás esse péssimo hábito de
copiar nossos fracassos.
13/Ago/2003
[*]
Atílio Boron é secretário-executivo do Conselho
Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso)
O original em português encontra-se em
http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?id=390&coluna=perspectivas
. Tradução de Daniel Merli.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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