Brasil
Entrevista de João Pedro Stedile,
dirigente do Movimento dos Sem Terra [*]

1. Como o sr. recebe as propostas dos candidatos a Presidente para a reforma agrária? Quem tem a melhor e quem tem a pior proposta?

João Pedro Stedile De facto, a diferença entre eles é muito pequena. E as semelhanças se devem ao facto de que o clima da campanha não levou a um debate das verdadeiras causas dos problemas brasileiros. Assim, na reforma agraria, todos preferiram apontar soluções paliativas para a pobreza, sem enfrentar com clareza, de que a sociedade brasileira, para ser democrática, precisa eliminar o latifúndio, ou seja a concentração da propriedade da terra. Como aliás fizeram todas as sociedades modernas e desenvolvidas. A sociedade brasileira precisa debater abertamente que não podemos conviver com o latifúndio. Não se pode falar em democracia, enquanto apenas um por cento dos proprietários tem 46% de todas as terras. Enquanto uma multinacional qualquer, tem o direito de possuir, 20, 30 mil hectares de nossas terras. Ou uma empresa como a CR Almeida ter mais de dois milhões de hectares. Por isso o Fórum nacional de reforma agraria tem defendido que é preciso debater na sociedade o direito de limitar o tamanho máximo da propriedade. E fixar limites em torno de 1.500 hectares. Que aliás qualquer fazendeiro produtivo pode continuar rico com uma fazenda de 1.500 ha.

2) Como o sr. avalia o discurso que os candidatos têm feito até agora sobre reforma agrária? A inclusão do tema na agenda é uma vitória dos movimentos sociais ou o sr. atribui a abordagem a uma acção exclusiva de marketing?

Existe a consciência no povo de que o latifúndio é anti-social. Por isso todos apoiam a reforma agraria. Então os candidatos se obrigam a falar em reforma agraria, sem no entanto se comprometer com as formas. Ele está na pauta permanente, porque é um problema social, e não por marketing de nenhuma força. Enquanto existir latifúndio, vai existir sem terra e pobreza no meio rural. E isso é um problema social que não dá para jogar para debaixo do tapete.

Mas nossa preocupação não é com o discurso dos candidatos, nossa preocupação é com as forças sociais que cada um representa. Então, é evidente que o Serra representa a continuidade desse modelo perverso que está ai. O Ciro, forças que querem pequenas mudanças e no essencial manter igual. O Garotinho não conseguiu articular em torno de si forças sociais representativas. E o único candidato que representa as forças sociais que querem mudanças reais nesse país, é o Lula.

3) Em Junho o PT aprovou documento do qual constava o objectivo de assentar 500 mil famílias em quatro anos. Para evitar polémica, retirou a menção. Em 94, a promessa de Lula era assentar 800 mil famílias. Em 98, 1 milhão. Como o sr. vê esse recuo?

Isso não é recuo. Isso são apenas formas diferenciadas de quantificar ou não metas no programa. De novo, para nós pouco importa o que está escrito nos programas. No Brasil, programas eleitorais são meros exercícios de retórica política. Compare o que está escrito no programa do FHC e o que ele fez nos oito anos. As elites se divertem enganando o povo durante as campanhas eleitorais, com programas e discursos. Nós nunca apresentamos a nenhum candidato e muito menos ao PT exigências de metas de assentamentos. Não queremos discutir números. Queremos discutir que é preciso democratizar a propriedade da terra no Brasil e é preciso mudar o actual modelo agrícola, que só beneficia um sector latifundiário, e um sector exportador. Nesses últimos dez anos, fruto do modelo do governo FHC, a concentração da propriedade aumentou. Os latifundiários com mais de 2 mil hectares ampliaram a área total de 121 para 178 milhões de hectares. Cerca de 900 mil pequenas propriedades com menos de cem hectares foram a falência, dois milhões de empregados rurais perderam emprego. E a pobreza e miséria aumentou no campo. Precisamos mudar o modelo agrícola, e reorganizar a agricultura para o mercado interno, para distribuição de renda e de terra. Só assim vamos eliminar a pobreza e a desigualdade.

E para isso é necessário conjugar dois factores fundamentais: um governo popular que reuna forças sociais com essa vontade política, e movimentos camponeses organizados e fortes que tenham capacidade de pressão social. As mudanças sociais no meio rural de todo mundo, só aconteceram quando se juntaram esses dois factores.

4) O sr. já citou estudos do professor José Gomes da Silva, que mostrariam ser possível assentar, em dois anos de governo, 2 milhões de famílias. Ainda defende esse número de assentamentos, ou seja 4 milhões de família em 4 anos?

Citei nosso saudoso José Gomes da Silva, que apesar de fazendeiro, era o maior especialista em reforma agraria, para dizer que se juntarmos um governo popular com um movimento camponês organizado é possível em curto espaço de tempo realizar grandes mudanças. No caso da reforma agraria japonesa, por exemplo, feita pelo governo de intervenção norte-americana, foram distribuídas terras para 4 milhões de famílias, num espaço muito pequeno. No caso da reforma agraria norte-americana, foram distribuídas terras para 6 milhões de famílias, num espaço de vinte anos. Mas isso não depende de promessa e de programa. Depende da correlação de forças que se cria na sociedade, em determinado momento.

5) Como o sr. avalia o actual discurso político de Lula? Está decepcionando o sr.?

O Lula está fazendo um discurso dentro dos parâmetros de uma campanha eleitoral. Evidentemente que não é um discurso de defesa de um programa de esquerda ou das necessárias mudanças radicais que nossa sociedade precisa. É um discurso de centro, no espectro ideológico. Mas como disse antes, o mais importante não é o discurso. O mais importante são as forças sociais que se aglutinam em torno deste ou daquele candidato. E a candidatura Lula tem o símbolo da mudança. O povo sabe que se Lula ganhar haverá mudanças. E que, entre os quatro, é o único que pode realmente aglutinar forças para fazer mudanças.

6) O que o sr. achou das alianças do PT com o PL e com políticos como Sarney, Quércia, Luiz Antônio de Medeiros? O que achou dos elogios dele ao crescimento econômico durante o regime militar?

Isso é um questão eleitoral do PT. Nós do MST já temos problemas suficientes, para não nos envolvermos nos problemas dos outros.

Embora, como militante a gente saiba que esse tipo de alianças feriu a tradição de esquerda e a coerência do partido. E certamente terá consequências positivas e negativas. mas isso só a história dirá, qual das duas foi vitoriosa.

7) O sr. pretende votar em Lula? Por quê? Por que o MST não está fazendo campanha aberta para o Lula? Houve a negociação de um pacto para suspender as invasões para não prejudicar a candidatura petista?

Primeiro, em todos os períodos eleitorais, se cria um clima na sociedade em que o centro dos debates e preocupações é eleições. Então, a cada dois anos, no período eleitoral, todas as lutas sociais, se arrefecem, não só no campo, mas na cidade também. Por isso o facto de diminuir ocupações de terra nesse período, não é típico de 2002, nem de qualquer acordo. E ocupações de terra não acontecem por vontades de dirigentes, acontecem pela conjuntura e correlação de forças de cada local.

Vou votar no Lula, e embora não haja deliberações de congressos ou instancias, toda nossa militância social, tanto do MST, como dos demais movimentos da Via Campesina, estamos engajados, empenhados na campanha e na vitória do Lula. Pelos motivos que já expliquei antes. Lula é a única candidatura que aglutina força sociais que podem fazer mudanças nesse país. No modelo económico, que é o principal, e em particular no modelo agrícola e na reforma agraria. E uma vitoria do Lula trará um grande animo para todo povo brasileiro, e vai gerar um processo de reascenso do movimento de massas. E um governo Lula vai precisar de movimentos de massa organizados, para dar sustentação às mudanças necessárias.

8) Lula emitiu a seguinte declaração: "Se o companheiro João Pedro Stedile repetir na campanha de 2002 o que disse em 1998, não estará me ajudando. Ele disse: 'Se o companheiro Lula ganhar as eleições, não estarei na posse dele, porque estarei ocupando todas as terras do Brasil'. Ele não ajudou". Onde o sr. vai estar no dia 1º de Janeiro, se Lula ganhar as eleições?

Essa expressão que usei, não foi no sentido de bravata ou de desafiar um futuro governo Lula. Foi no sentido pedagógico de defender e esclarecer para nossa militância e todo povo sofrido, de que não basta eleger um novo governo. É necessário que o povo se organize e lute por mudança sociais. Nenhum governo, vai fazer mudanças sociais apenas por vontade própria. Todas as mudanças sociais que houveram na historia da humanidade foram resultados de mobilizações sociais. De povo organizado, que consciente se mobiliza e luta para alterar as causas dos problemas.. E os sem-terra sabem que continuaremos tendo que nos organizar cada vez melhor, juntar mais gente, para fazer grandes mobilizações sociais, para que de facto o latifúndio seja derrotado nesse país.

9) O sr. já disse a seguinte frase: "Para ser justo, as críticas do Delfim nos ajudam mais do que o próprio PT tem ajudado". O sr. poderia explicá-la?

O que disse foi que ultimamente o economista Delfim Neto estava sendo mais critico do modelo agrícola e seus efeitos perversos para a sociedade brasileira, do que alguns economistas do PT. E continuo com a mesma opinião. O último ensaio que o professor Delfim Neto fez na revista Carta Capital, relativo ao modelo económico de FHC, é uma analise contundente com uma impressionante clareza. Nós estamos usando esse texto como estudo na nossa militância, para entender porque o modelo económico implantado pelo governo FHC está falido. Lá, ele prova com números e análises, como o governo subserviente de FHC, colocou a economia brasileira em dois becos sem saída. A vulnerabilidade externa que nos obriga agora a enviar para o exterior um mil milhões de dólares por semana. Lá ele prova como em oito anos o Brasil virou exportador de capitais, e o balanço de transações externas, demostra que em oito anos enviámos para o exterior a mais do que recebemos, nada menos do que 200 mil milhões de dólares... E mostra também a encalacrada da dependência do capital financeiro, da taxa de juros.

Veja a que ponto chegamos, a esquerda tem que usar os economistas de direita, para fazer uma critica contundente ao modelo. Digo isso, agora, como economista-aprendiz.

10) O sr. disse à New Left Review, revista da esquerda inglesa, que a esquerda brasileira não tem um projecto claro para o Brasil, caindo na simplificação do socialismo x capitalismo, sem formular as etapas que deveria perseguir. O sr. poderia explicar que caminho defende para essa esquerda?

Nós temos debatido esses aspectos em âmbitos mais amplos do que o MST, com outros movimentos da Via Campesina, da consulta popular, das igrejas, do movimento popular. E vemos que o Brasil precisa de um projecto popular. O que é um projecto popular? É você reorganizar a economia, a utilização dos recursos económicos, naturais e técnicos disponíveis, para que na nossa sociedade, CADA brasileiro e TODOS brasileiros possam ter assegurados o trabalho, terra para trabalhar, moradia digna, alimentação de qualidade, educação e cultura. Mas isso não é declaração de direitos, é preciso medidas concretas, que somente levariam a garantir esses direitos, se um governo popular usasse o Estado e as forças organizadas da sociedade para atacar as causas dos problemas que tornaram nossa sociedade tão injusta e desigual. E quais são essas causas? É preciso eliminar o latifúndio. É preciso democratizar a riqueza acumulada, com pesadas penas sobre fortunas e heranças. Tornar os salários mais justos. Romper com a dependência externa que faz com que enviemos para o exterior um mil milhões de dólares por semana. Enfrentar o capital financeiro, que é hoje o grande centro de acumulação e de exploração. Enfrentar o monopólio dos meios de comunicação, para que eles seja usados para educar o povo e não manipular, como é agora. E finalmente o Brasil precisa recuperar sua soberania nacional. Sobre sua economia, sobre os recursos naturais e sobre nossa cultura. Isso aqui está virando uma neo-colonia norte-americana.

11) Na mesma entrevista, disse que a esquerda tem preferido a negociação para acomodar as pressões de classe. Se não é a negociação, qual é a saída?

Na entrevista faço uma critica à institucionalização dos partidos de esquerda que apenas pensam em eleições. O papel de um partido de esquerda é elevar o nível de consciência social dos trabalhadores. É ajudar a organizar movimentos sociais. É ajudar a organizar a luta social. É ajudar a mobilizar o povo para defender seus interesses e conquistar seus direitos. As eleições são apenas um aspecto do jogo democrático de uma sociedade. A burguesia e seus meios comunicação vivem fazendo propaganda reduzindo a democracia ao ato de votar. Porque essa é a forma que eles tem de controlar o povo, iludindo-o com falsas promessas nas eleições. A verdadeira democracia é quando o povo tem consciência de sua condição social e luta, se organiza para melhorar o funcionamento da sociedade em todos os aspectos.

A verdadeira democracia é quando o povo pode caminhar com suas próprias pernas e ter de facto oportunidades iguais. Não basta ter direitos escritos na constituição. Não é o papel que garante conquistas sociais, é o povo organizado, das mais diferentes formas, que em cada pais, em cada tradição cultural se desenvolve.

12) No plebiscito de 2000, o sr. defendeu o não-pagamento da dívida externa e já se disse favorável à limitação do pagamento dos juros da dívida interna — o que pode ser entendido como uma espécie de calote. Como economista, o sr. pode explicar sua posição sobre esses temas, tendo em vista o impacto político e económico para o país?

A divida externa não é uma questão moral: Quem deve, paga. A divida externa é um mecanismo que o capital internacional criou para explorar os países do terceiro mundo. No período colonial nos exploravam roubando nossos recursos naturais. No século vinte nos exploraram vindo aqui com suas fabricas, explorar nossa mão-de-obra. E agora nos exploram com empréstimos e juros. A prova está aí. Quando FHC entrou nossa divida externa era de 128 mil milhões de dólares. Conforme denunciou Delfim Neto enviámos para o exterior nos oito anos, 200 mil milhões de dólares a mais do que recebemos, e nossa divida ainda pulou para 258 mil milhões!!

Ou seja nosso país não vai se desenvolver, não vai romper com a pobreza, não vai gerar uma sociedade mais justa e democrática, sem barrar essa transferencia injusta de riqueza de todo povo para o exterior. A forma de fazer isso podemos discutir. Primeiro é preciso suspender todo pagamento da divida, e fazer uma auditoria pública, como previa a Constituição, para ver o que devemos, o que já foi pago. É preciso colocar limites na remessa de lucros das multinacionais. É preciso acabar com a CC5. Veja com a crise que estamos vivendo, foram transferidos neste primeiro semestre, 4,5 mil milhões de dólares de poupança interna, da classe média, para contas privadas no exterior. Isso é poupança que deveria financiar casa própria, indústrias, produção, e vai para Miami, Paris, Nova York.

Não sei porque os meios de comunicação se espantam tanto com a suspensão do pagamento da dívida externa, isso é defendido por documentos da igreja, pelo Papa, por economistas conservadores, e até Tancredo Neves havia anunciado que não pagaria a divida com a fome do povo..

No tocante a dívida interna é quase igual. O orçamento da União virou refém dos bancos. E está produzindo a maior concentração de renda e riqueza inimaginável. Pois hoje, o governo usa 140 mil milhões de reais por ano apenas para pagar juros. Ou seja pega dinheiro de todos nós, através dos impostos e entrega para os bancos. É preciso acabar com isso. Como? Existem muitas formas. Mas é preciso que se discuta isso. Porque por exemplo, a taxa de juros do Brasil, de 19,75% não é a mesma do mercado financeiro internacional que varia de 0,2 no Japão a 2,5 em Nova York?

O que todos economistas sérios estão dizendo, inclusive li a entrevista de um banqueiro internacional, é de que se não resolvermos esses dois gargalos estruturais, o Brasil será a nova Argentina, logo aí, no primeiro semestre de 2003. Aguardem.

13 ) O MST está na organização do plebiscito sobre a ALCA. Em que ele pode mudar a negociação do acordo? É um evento só de marketing? Que balanço faz da ausência do PT?

A ALCA não é um acordo comercial qualquer, ou bilateral que vai trazer benefícios aos dois lados. A ALCA é um plano estratégico das 200 maiores corporações norte-americanas e do governo dos Estados Unidos, para tomarem conta de nossas riquezas nossos investimentos, nossas indústrias, nosso mercado, nossa tecnologia, nossos meios de comunicação, nossa moeda, e nossa cultura. E com isso aumentarem suas taxas de lucro e enfrentarem em melhores condições seus concorrentes europeus e asiáticos.

Existem nove grupos de negociações na ALCA, e apenas um é o comércio. Portanto, os movimentos sociais, sindicais e as igrejas de toda América Latina, construímos uma campanha continental de luta contra a ALCA. porque é uma luta contra a recolonização da América Latina. E a campanha brasileira é apenas parte dessa campanha maior. O Plebiscito foi uma ferramenta pedagógica, não apenas de contar voto, mas de conscientizar nosso povo. E isso nós conseguimos, milhões de brasileiros tomaram conhecimento, se envolveram, participaram. E seguiremos com outras formas pedagógicas de explicar ao povo, até vencermos a batalha de impedir a ALCA.

Nós da campanha brasileira, temos defendido e esperamos que o novo governo brasileiro saia imediatamente das negociações. É preciso dizer ao governo norte-americano, não queremos a ALCA E PRONTO. E isso não é radicalismo, vem sendo defendida pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e a própria Câmara dos deputados aprovou uma moção por unanimidade pedindo para o governo FHC se retirar imediatamente das negociações..

O Brasil tem outras formas de integração internacional. Integração e não submissão. Nós devemos fazer um plano de integração económica, e cultural, com os países da América do Sul. Em primeiro lugar e em segundo lugar com as demais economias fortes do hemisfério sul, como a África do Sul, a Índia, o Irão, e a China e formar um grande bloco, que nos defenda da ofensiva imperial dos americanos e ao mesmo tempo crie condições de ajuda mútua.

A campanha que fez o plebiscito contra a dívida e agora está na campanha contra a ALCA é uma imensa constelação de mais de cem entidades da sociedade civil brasileira. Os partidos nunca participaram enquanto instituições. Apenas as pessoas como militantes. Por isso o PT não saiu, porque nunca entrou. Mas a militância partidária do PT, PDT, PSB, PCdoB, PSTU, e em alguns lugares do PMDB, participaram activamente de toda campanha.

14) Se a eleição fosse hoje, Lula venceria. O sr. reafirmaria o recado que mandou em um seminário internacional aos investidores estrangeiros? "'Não venham para o Brasil, porque vocês vão perder dinheiro. Mais cedo ou mais tarde, vamos recuperar a soberania nacional''

Isso não é um recado, é uma tese. O Brasil deve ter um governo que repulse a entrada de capital estrangeiro especulativo, (e foi isso que disse a eles em Viena) que vem aqui apenas comprar nossas empresas (para ficar com o lucro) aplicar na bolsa, e viver de juros. Nós devemos aceitar capital estrangeiro, quando ele vem aqui instalar uma fabrica, quando ele vem aqui aplicar na produção e se comprometa a reaplicar o lucro no Brasil.

Que os capitais especulativos vão perder dinheiro, não precisa serem ameaçados por mim, isso eles sabem, pela própria lógica do mercado. Alias no caso brasileiro já começaram a perder dinheiro e sair — e nos deixando com o pincel na mão. Haja visto que os títulos da dívida externa brasileira estão sendo negociados no exterior por 50 por cento do seu valor. Porque todo mundo sabe que nesse esquema, não há Jesus Cristo que tire a economia brasileira da crise e mantenha esses níveis de enviar um mil milhões de dólares por semana para o exterior.

15) O sr. admite que há poucos negros no MST e atribui o facto à formação agrária brasileira. Não é uma falha do movimento não se ater a esse problema, tendo em vista que os negros formam a maior parte dos chamados excluídos? Isso não pode ser visto como rescaldo ou continuidade da segregação racial brasileira?

O MST se orgulha de ser um movimento que tem contribuído para resgatar a cidadania e as oportunidades para os pobres, que além de pobres são também negros. Mas infelizmente as elites brasileiras condenaram historicamente a população negra a exclusão. Primeiro foram os 400 anos de escravidão, e depois, com a lei de terras de 1850, evitaram que os escravos libertos se transformassem em camponeses. E por isso a maior parte teve que migrar das fazendas para as cidades portuárias. Dai que temos uma pequena parcela de população negra entre os camponeses sem-terras. A população negra entre os sem-terra é majoritária no Maranhão e na Bahia. E lá são também maioria no MST. A maioria da população camponesa sem terra, está localizada no sul e no nordeste, e reflecte a formação étnica dessas duas regiões. No sul, mais de origem branca e europeia e no nordeste a miscigenação de mulatos, mamelucos, mestiços em geral.

16) O sr. definiu como "uma cagada" a invasão da fazenda FHC. Cagada de quem e por quê?

A inscrição na parede do barraco diz tudo Houve muitos erros. Erro da ingenuidade dos sem-terra, que tinham planejado ir até a frente da fazenda, e que resolveram entrar na fazenda e na casa, quando viram que estava desguarnecida e não se deram conta, de que era uma armadilha. O serviço de inteligência do Palácio, acompanhou a assembleia que decidiu a manifestação oito horas antes. Erro ao se deixarem iludir por misteriosos cinegrafistas, que os induziram a entrar nos aposentos da casa.

Erro do governo FHC que tentou criar um facto político para desmoralizar o MST, os sem-terra a reforma agraria, que nos humilhou naquela forma de prisão. Erro ao desrespeitar os negociados do INCRA, que tiveram que pedir demissão envergonhados com as mentiras do governo. Erro do governo que tentou vincular ao PT e à campanha Lula. Erro da imprensa servil, que em vez de explicar o que estava acontecendo realmente fez o jogo do governo, especialmente a TV Globo, que tantos males já causou ao nosso povo.

Enfim, todos perdemos com aquele episódio. Perdeu o MST que teve sua imagem arranhada. Perdeu o governo com suas mentiras. Perdeu a imprensa com sua vergonhosa subserviência. Perdeu o poder judiciário de Buritís que se deixou manipular.

Mas o que é mais trágico. Todos os problemas que as famílias assentadas vizinhas da fazenda do Presidente tinham, continuam iguais. O governo não resolveu nenhum... O único azar ou sorte deles, é que são pobres e vizinhos do Presidente e isso é muito perigoso as vezes. Mas a opinião publica não sabe por exemplo, que nesse assentamento foi desviada a verba da escola pelas autoridades locais, que a escola é o antigo estábulo, que mais de cem crianças estudam num estábulo, a menos de cem quilómetros da fazenda-mansão do Presidente sociólogo, que certamente deve ter comprado com dinheiro adquirido com suor do trabalho duro. Juntamente com Sérgio Motta..

17) A Folha publicou uma série de reportagens sobre irregularidades apontadas pelo Ministério Público no financiamento de cooperativas ligadas ao MST, incluindo a cobrança de pedágios. O sr. disse que, se houvesse irregularidades, haveria punição. Alguém foi investigado? Alguém foi punido?

A Folha se prestou ao jogo de propaganda do governo FHC. Os sem-terra não se mobilizam por ideologia, se mobilizam por necessidades sociais. Cada vez que fizemos mobilizações nacionais para pressionar o governo a resolver os problemas, o governo FHC em vez de resolver os problemas, adoptava mecanismos de propaganda, de uso dos meios de comunicação para tentar derrotar politicamente o MST. Numa dessas mobilizações, inventou essa de pedágio, de desvio de cooperativas.

Apesar dos inúmeros inquéritos, não tenho noticias que algum virou processo, porque de facto não houve desvios de dinheiro publico. É claro que nossas cooperativas, como aliás a maioria, mesmo dos fazendeiros, sempre tem problemas administrativos. E isso se procura ir corrigindo, renovando directorias, etc.

Mas o que quis dizer é que os associados de nossas cooperativas e o próprio MST tinha mecanismos de controle para evitar corrupção, e quando houvessem problemas os próprios associados tomariam as medidas.

Por falar em corrupção, a sociedade brasileira está esperando respostas de muitas denúncias que foram feitas, desde o fatídico processo da compra de votos de deputados, para garantir a reeleição de FHC, até o caso SIVAM, que ainda não tem explicações para o povo.

[*] Versão integral da entrevista concedida à Folha de S. Paulo. O texto publicado por aquele jornal, em 16/Set/02, sofreu cortes.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

22/Set/02