Brasil
Entrevista de João Pedro Stedile,
dirigente do Movimento dos Sem Terra
[*]
1. Como o sr. recebe as propostas dos candidatos a Presidente para a reforma
agrária? Quem tem a melhor e quem tem a pior proposta?
De facto, a diferença entre eles é muito pequena. E as
semelhanças se devem ao facto de que o clima da campanha não
levou a um debate das verdadeiras causas dos problemas brasileiros.
Assim, na reforma agraria, todos preferiram apontar soluções
paliativas para a pobreza, sem enfrentar com clareza, de que a sociedade
brasileira, para ser democrática, precisa eliminar o latifúndio,
ou seja a concentração da propriedade da terra. Como
aliás fizeram todas as sociedades modernas e desenvolvidas. A sociedade
brasileira precisa debater abertamente que não podemos conviver com o
latifúndio. Não se pode falar em democracia, enquanto
apenas um por cento dos proprietários tem 46% de todas as terras.
Enquanto uma multinacional qualquer, tem o direito de possuir, 20, 30 mil
hectares de nossas terras. Ou uma empresa como a CR Almeida ter mais de dois
milhões de hectares. Por isso o Fórum nacional de
reforma agraria tem defendido que é preciso debater na sociedade o
direito de limitar o tamanho máximo da propriedade. E fixar
limites em torno de 1.500 hectares. Que aliás qualquer fazendeiro
produtivo pode continuar rico com uma fazenda de 1.500 ha.
2) Como o sr. avalia o discurso que os candidatos têm feito até
agora sobre reforma agrária? A inclusão do tema na agenda
é uma vitória dos movimentos sociais ou o sr. atribui a abordagem
a uma acção exclusiva de marketing?
Existe a consciência no povo de que o latifúndio
é anti-social. Por isso todos apoiam a reforma agraria.
Então os candidatos se obrigam a falar em reforma agraria, sem no
entanto se comprometer com as formas. Ele está na pauta
permanente, porque é um problema social, e não por
marketing de nenhuma força. Enquanto existir latifúndio, vai
existir sem terra e pobreza no meio rural. E isso é um problema
social que não dá para jogar para debaixo do tapete.
Mas nossa preocupação não é com o discurso dos
candidatos, nossa preocupação é com as forças
sociais que cada um representa. Então, é evidente que o
Serra representa a continuidade desse modelo perverso que está ai.
O Ciro, forças que querem pequenas mudanças e no essencial manter
igual. O Garotinho não conseguiu articular em torno de si
forças sociais representativas. E o único candidato que
representa as forças sociais que querem mudanças reais nesse
país, é o Lula.
3) Em Junho o PT aprovou documento do qual constava o objectivo de assentar 500
mil famílias em quatro anos. Para evitar polémica, retirou a
menção. Em 94, a promessa de Lula era assentar 800 mil
famílias. Em 98, 1 milhão. Como o sr. vê esse recuo?
Isso não é recuo. Isso são apenas formas
diferenciadas de quantificar ou não metas no programa. De
novo, para nós pouco importa o que está escrito nos
programas. No Brasil, programas eleitorais são meros
exercícios de retórica política. Compare o que
está escrito no programa do FHC e o que ele fez nos oito
anos. As elites se divertem enganando o povo durante as campanhas
eleitorais, com programas e discursos. Nós nunca
apresentamos a nenhum candidato e muito menos ao PT exigências de metas
de assentamentos. Não queremos discutir
números. Queremos discutir que é preciso democratizar
a propriedade da terra no Brasil e é preciso mudar o actual modelo
agrícola, que só beneficia um sector latifundiário, e um
sector exportador. Nesses últimos dez anos, fruto do modelo
do governo FHC, a concentração da propriedade aumentou. Os
latifundiários com mais de 2 mil hectares ampliaram a área total
de 121 para 178 milhões de hectares. Cerca de 900 mil
pequenas propriedades com menos de cem hectares foram a falência, dois
milhões de empregados rurais perderam emprego. E a pobreza e
miséria aumentou no campo. Precisamos mudar o modelo
agrícola, e reorganizar a agricultura para o mercado interno, para
distribuição de renda e de terra. Só assim vamos
eliminar a pobreza e a desigualdade.
E para isso é necessário conjugar dois factores fundamentais: um
governo popular que reuna forças sociais com essa vontade
política, e movimentos camponeses organizados e fortes que tenham
capacidade de pressão social. As mudanças sociais no
meio rural de todo mundo, só aconteceram quando se juntaram esses dois
factores.
4) O sr. já citou estudos do professor José Gomes da Silva, que
mostrariam ser possível assentar, em dois anos de governo, 2
milhões de famílias. Ainda defende esse número de
assentamentos, ou seja 4 milhões de família em 4 anos?
Citei nosso saudoso José Gomes da Silva, que apesar de fazendeiro, era o
maior especialista em reforma agraria, para dizer que se juntarmos um governo
popular com um movimento camponês organizado é possível em
curto espaço de tempo realizar grandes mudanças. No caso da
reforma agraria japonesa, por exemplo, feita pelo governo de
intervenção norte-americana, foram distribuídas terras
para 4 milhões de famílias, num espaço muito
pequeno. No caso da reforma agraria norte-americana, foram
distribuídas terras para 6 milhões de famílias, num
espaço de vinte anos. Mas isso não
depende de promessa e de programa. Depende da correlação de
forças que se cria na sociedade, em determinado momento.
5) Como o sr. avalia o actual discurso político de Lula? Está
decepcionando o sr.?
O Lula está fazendo um discurso dentro dos parâmetros de uma
campanha eleitoral. Evidentemente que não é um discurso de
defesa de um programa de esquerda ou das necessárias mudanças
radicais que nossa sociedade precisa. É um discurso de centro, no
espectro ideológico. Mas como disse antes, o mais importante
não é o discurso. O mais importante são as
forças sociais que se aglutinam em torno deste ou daquele
candidato. E a candidatura Lula tem o símbolo da
mudança. O povo sabe que se Lula ganhar haverá
mudanças. E que, entre os quatro, é o único que pode
realmente aglutinar forças para fazer mudanças.
6) O que o sr. achou das alianças do PT com o PL e com políticos
como Sarney, Quércia, Luiz Antônio de Medeiros? O que achou dos
elogios dele ao crescimento econômico durante o regime militar?
Isso é um questão eleitoral do PT. Nós do MST já
temos problemas suficientes, para não nos envolvermos nos problemas dos
outros.
Embora, como militante a gente saiba que esse tipo de alianças
feriu a tradição de esquerda e a coerência do
partido. E certamente terá consequências positivas e
negativas. mas isso só a história dirá, qual das
duas foi vitoriosa.
7) O sr. pretende votar em Lula? Por quê? Por que o MST não
está fazendo campanha aberta para o Lula? Houve a
negociação de um pacto para suspender as invasões para
não prejudicar a candidatura petista?
Primeiro, em todos os períodos eleitorais, se cria um clima na
sociedade em que o centro dos debates e preocupações
é eleições. Então, a cada dois anos, no
período eleitoral, todas as lutas sociais, se arrefecem, não
só no campo, mas na cidade também. Por isso o facto de
diminuir ocupações de terra nesse período, não
é típico de 2002, nem de qualquer acordo. E
ocupações de terra não acontecem por vontades de
dirigentes, acontecem pela conjuntura e correlação de
forças de cada local.
Vou votar no Lula, e embora não haja deliberações de
congressos ou instancias, toda nossa militância social, tanto do MST,
como dos demais movimentos da Via Campesina, estamos engajados, empenhados na
campanha e na vitória do Lula. Pelos motivos que já
expliquei antes. Lula é a única candidatura que aglutina
força sociais que podem fazer mudanças nesse país.
No modelo económico, que é o principal, e em particular no modelo
agrícola e na reforma agraria. E uma vitoria do Lula
trará um grande animo para todo povo brasileiro, e vai gerar um processo
de reascenso do movimento de massas. E um governo Lula vai precisar
de movimentos de massa organizados, para dar sustentação
às mudanças necessárias.
8) Lula emitiu a seguinte declaração: "Se o companheiro
João Pedro Stedile repetir na campanha de 2002 o que disse em 1998,
não estará me ajudando. Ele disse: 'Se o companheiro Lula ganhar
as eleições, não estarei na posse dele, porque estarei
ocupando todas as terras do Brasil'. Ele não ajudou". Onde o sr.
vai estar no dia 1º de Janeiro, se Lula ganhar as eleições?
Essa expressão que usei, não foi no sentido de bravata ou de
desafiar um futuro governo Lula. Foi no sentido pedagógico de
defender e esclarecer para nossa militância e todo povo sofrido, de que
não basta eleger um novo governo. É necessário
que o povo se organize e lute por mudança sociais. Nenhum
governo, vai fazer mudanças sociais apenas por vontade
própria. Todas as mudanças sociais que houveram na historia
da humanidade foram resultados de mobilizações sociais. De
povo organizado, que consciente se mobiliza e luta para alterar as causas dos
problemas.. E os sem-terra sabem que continuaremos tendo que nos
organizar cada vez melhor, juntar mais gente, para fazer grandes
mobilizações sociais, para que de facto o latifúndio seja
derrotado nesse país.
9) O sr. já disse a seguinte frase: "Para ser justo, as
críticas do Delfim nos ajudam mais do que o próprio PT tem
ajudado". O sr. poderia explicá-la?
O que disse foi que ultimamente o economista Delfim Neto estava sendo mais
critico do modelo agrícola e seus efeitos perversos para a sociedade
brasileira, do que alguns economistas do PT. E continuo com a mesma
opinião. O último ensaio que o professor Delfim Neto
fez na revista Carta Capital, relativo ao modelo económico de FHC,
é uma analise contundente com uma impressionante clareza.
Nós estamos usando esse texto como estudo na nossa militância,
para entender porque o modelo económico implantado pelo governo FHC
está falido. Lá, ele prova com números e
análises, como o governo subserviente de FHC, colocou a economia
brasileira em dois becos sem saída. A vulnerabilidade externa que
nos obriga agora a enviar para o exterior um mil milhões de
dólares por semana. Lá ele prova como em oito anos o
Brasil virou exportador de capitais, e o balanço de
transações externas, demostra que em oito anos enviámos
para o exterior a mais do que recebemos, nada menos do que 200 mil
milhões de dólares... E mostra também a encalacrada
da dependência do capital financeiro, da taxa de juros.
Veja a que ponto chegamos, a esquerda tem que usar os economistas de direita,
para fazer uma critica contundente ao modelo. Digo isso, agora, como
economista-aprendiz.
10) O sr. disse à New Left Review, revista da esquerda inglesa, que a
esquerda brasileira não tem um projecto claro para o Brasil, caindo na
simplificação do socialismo x capitalismo, sem formular as etapas
que deveria perseguir. O sr. poderia explicar que caminho defende para essa
esquerda?
Nós temos debatido esses aspectos em âmbitos mais amplos do que o
MST, com outros movimentos da Via Campesina, da consulta popular, das
igrejas, do movimento popular. E vemos que o Brasil precisa de um
projecto popular. O que é um projecto popular? É
você reorganizar a economia, a utilização dos recursos
económicos, naturais e técnicos disponíveis, para que na
nossa sociedade, CADA brasileiro e TODOS brasileiros possam ter
assegurados o trabalho, terra para trabalhar, moradia digna,
alimentação de qualidade, educação e
cultura. Mas isso não é
declaração de direitos, é preciso medidas concretas, que
somente levariam a garantir esses direitos, se um governo popular usasse o
Estado e as forças organizadas da sociedade para atacar as causas dos
problemas que tornaram nossa sociedade tão injusta e desigual. E
quais são essas causas? É preciso eliminar o
latifúndio. É preciso democratizar a riqueza acumulada, com
pesadas penas sobre fortunas e heranças. Tornar os salários
mais justos. Romper com a dependência externa que faz com que
enviemos para o exterior um mil milhões de dólares por
semana. Enfrentar o capital financeiro, que é hoje o grande centro
de acumulação e de
exploração. Enfrentar o monopólio dos
meios de comunicação, para que eles seja usados para educar o
povo e não manipular, como é agora. E finalmente o Brasil
precisa recuperar sua soberania nacional. Sobre sua economia, sobre os
recursos naturais e sobre nossa cultura. Isso aqui está virando
uma neo-colonia norte-americana.
11) Na mesma entrevista, disse que a esquerda tem preferido a
negociação para acomodar as pressões de classe. Se
não é a negociação, qual é a saída?
Na entrevista faço uma critica à
institucionalização dos partidos de esquerda que apenas pensam em
eleições. O papel de um partido de esquerda é elevar
o nível de consciência social dos trabalhadores. É
ajudar a organizar movimentos sociais. É ajudar a organizar a luta
social. É ajudar a mobilizar o povo para defender seus interesses
e conquistar seus direitos. As eleições são
apenas um aspecto do jogo democrático de uma sociedade.
A burguesia e seus meios comunicação vivem fazendo
propaganda reduzindo a democracia ao ato de votar. Porque essa é a
forma que eles tem de controlar o povo, iludindo-o com falsas promessas nas
eleições. A verdadeira democracia é quando o povo
tem consciência de sua condição social e luta, se organiza
para melhorar o funcionamento da sociedade em todos os aspectos.
A verdadeira democracia é quando o povo pode caminhar com suas
próprias pernas e ter de facto oportunidades iguais. Não
basta ter direitos escritos na constituição. Não
é o papel que garante conquistas sociais, é o povo organizado,
das mais diferentes formas, que em cada pais, em cada tradição
cultural se desenvolve.
12) No plebiscito de 2000, o sr. defendeu o não-pagamento da
dívida externa e já se disse favorável à
limitação do pagamento dos juros da dívida interna
o que pode ser entendido como uma espécie de calote. Como economista, o
sr. pode explicar sua posição sobre esses temas, tendo em vista o
impacto político e económico para o país?
A divida externa não é uma questão moral: Quem deve,
paga. A divida externa é um mecanismo que o capital internacional
criou para explorar os países do terceiro mundo. No período
colonial nos exploravam roubando nossos recursos naturais. No século
vinte nos exploraram vindo aqui com suas fabricas, explorar nossa
mão-de-obra. E agora nos exploram com empréstimos e
juros. A prova está aí. Quando FHC entrou nossa
divida externa era de 128 mil milhões de dólares. Conforme
denunciou Delfim Neto enviámos para o exterior nos oito anos, 200 mil
milhões de dólares a mais do que recebemos, e nossa divida ainda
pulou para 258 mil milhões!!
Ou seja nosso país não vai se desenvolver, não
vai romper com a pobreza, não vai gerar uma sociedade mais justa e
democrática, sem barrar essa transferencia injusta de riqueza de todo
povo para o exterior. A forma de fazer isso podemos
discutir. Primeiro é preciso suspender todo pagamento da
divida, e fazer uma auditoria pública, como previa a
Constituição, para ver o que devemos, o que já foi pago.
É preciso colocar limites na remessa de lucros das multinacionais.
É preciso acabar com a CC5. Veja com a crise que estamos vivendo, foram
transferidos neste primeiro semestre, 4,5 mil milhões de dólares
de poupança interna, da classe média, para contas privadas no
exterior. Isso é poupança que deveria financiar casa
própria, indústrias, produção, e vai para Miami,
Paris, Nova York.
Não sei porque os meios de comunicação se espantam tanto
com a suspensão do pagamento da dívida externa, isso é
defendido por documentos da igreja, pelo Papa, por economistas
conservadores, e até Tancredo Neves havia anunciado que não
pagaria a divida com a fome do povo..
No tocante a dívida interna é quase igual. O
orçamento da União virou refém dos bancos. E está
produzindo a maior concentração de renda e riqueza
inimaginável. Pois hoje, o governo usa 140 mil milhões de reais
por ano apenas para pagar juros. Ou seja pega dinheiro de todos nós,
através dos impostos e entrega para os bancos. É
preciso acabar com isso. Como? Existem muitas formas. Mas é
preciso que se discuta isso. Porque por exemplo, a taxa de juros do
Brasil, de 19,75% não é a mesma do mercado financeiro
internacional que varia de 0,2 no Japão a 2,5 em Nova York?
O que todos economistas sérios estão dizendo, inclusive li a
entrevista de um banqueiro internacional, é de que se não
resolvermos esses dois gargalos estruturais, o Brasil será a nova
Argentina, logo aí, no primeiro semestre de 2003. Aguardem.
13 ) O MST está na organização do plebiscito sobre a ALCA.
Em que ele pode mudar a negociação do acordo? É um
evento só de marketing? Que balanço faz da ausência do PT?
A ALCA não é um acordo comercial qualquer, ou bilateral que vai
trazer benefícios aos dois lados. A ALCA é um plano
estratégico das 200 maiores corporações norte-americanas e
do governo dos Estados Unidos, para tomarem conta de nossas riquezas nossos
investimentos, nossas indústrias, nosso mercado, nossa tecnologia,
nossos meios de comunicação, nossa moeda, e nossa cultura.
E com isso aumentarem suas taxas de lucro e enfrentarem em melhores
condições seus concorrentes europeus e asiáticos.
Existem nove grupos de negociações na ALCA, e apenas um é
o comércio. Portanto, os movimentos sociais, sindicais e as
igrejas de toda América Latina, construímos uma campanha
continental de luta contra a ALCA. porque é uma luta contra a
recolonização da América Latina. E a campanha brasileira
é apenas parte dessa campanha maior. O Plebiscito foi uma
ferramenta pedagógica, não apenas de contar voto, mas de
conscientizar nosso povo. E isso nós conseguimos, milhões
de brasileiros tomaram conhecimento, se envolveram, participaram. E
seguiremos com outras formas pedagógicas de explicar ao povo, até
vencermos a batalha de impedir a ALCA.
Nós da campanha brasileira, temos defendido e esperamos que o novo
governo brasileiro saia imediatamente das negociações.
É preciso dizer ao governo norte-americano, não queremos a
ALCA E PRONTO. E isso não é radicalismo, vem
sendo defendida pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e a
própria Câmara dos deputados aprovou uma moção por
unanimidade pedindo para o governo FHC se retirar imediatamente das
negociações..
O Brasil tem outras formas de integração internacional.
Integração e não submissão. Nós
devemos fazer um plano de integração económica, e
cultural, com os países da América do Sul. Em primeiro
lugar e em segundo lugar com as demais economias fortes do hemisfério
sul, como a África do Sul, a Índia, o Irão, e a China e
formar um grande bloco, que nos defenda da ofensiva imperial dos americanos e
ao mesmo tempo crie condições de ajuda mútua.
A campanha que fez o plebiscito contra a dívida e agora está na
campanha contra a ALCA é uma imensa constelação de mais de
cem entidades da sociedade civil brasileira. Os partidos nunca
participaram enquanto instituições. Apenas as pessoas como
militantes. Por isso o PT não saiu, porque nunca
entrou. Mas a militância partidária do PT, PDT, PSB,
PCdoB, PSTU, e em alguns lugares do PMDB, participaram activamente de toda
campanha.
14) Se a eleição fosse hoje, Lula venceria. O sr. reafirmaria o
recado que mandou em um seminário internacional aos investidores
estrangeiros? "'Não venham para o Brasil, porque vocês
vão perder dinheiro. Mais cedo ou mais tarde, vamos recuperar a
soberania nacional''
Isso não é um recado, é uma tese. O Brasil deve ter
um governo que repulse a entrada de capital estrangeiro especulativo, (e foi
isso que disse a eles em Viena) que vem aqui apenas comprar nossas
empresas (para ficar com o lucro) aplicar na bolsa, e viver de
juros. Nós devemos aceitar capital estrangeiro, quando ele
vem aqui instalar uma fabrica, quando ele vem aqui aplicar na
produção e se comprometa a reaplicar o lucro no Brasil.
Que os capitais especulativos vão perder dinheiro, não precisa
serem ameaçados por mim, isso eles sabem, pela própria
lógica do mercado. Alias no caso brasileiro já
começaram a perder dinheiro e sair e nos deixando com o pincel na
mão. Haja visto que os títulos da dívida externa
brasileira estão sendo negociados no exterior por 50 por cento do seu
valor. Porque todo mundo sabe que nesse esquema, não há Jesus
Cristo que tire a economia brasileira da crise e mantenha esses níveis
de enviar um mil milhões de dólares por semana para o
exterior.
15) O sr. admite que há poucos negros no MST e atribui o facto à
formação agrária brasileira. Não é uma
falha do movimento não se ater a esse problema, tendo em vista que os
negros formam a maior parte dos chamados excluídos? Isso não
pode ser visto como rescaldo ou continuidade da segregação racial
brasileira?
O MST se orgulha de ser um movimento que tem contribuído para resgatar a
cidadania e as oportunidades para os pobres, que além de pobres
são também negros. Mas infelizmente as elites brasileiras
condenaram historicamente a população negra a
exclusão. Primeiro foram os 400 anos de escravidão, e
depois, com a lei de terras de 1850, evitaram que os escravos libertos se
transformassem em camponeses. E por isso a maior parte teve que migrar
das fazendas para as cidades portuárias. Dai que temos uma pequena
parcela de população negra entre os camponeses sem-terras. A
população negra entre os sem-terra é majoritária no
Maranhão e na Bahia. E lá são também maioria
no MST. A maioria da população camponesa sem terra,
está localizada no sul e no nordeste, e reflecte a
formação étnica dessas duas regiões. No sul, mais
de origem branca e europeia e no nordeste a miscigenação de
mulatos, mamelucos, mestiços em geral.
16) O sr. definiu como "uma cagada" a invasão da fazenda FHC.
Cagada de quem e por quê?
Houve muitos erros. Erro da ingenuidade dos sem-terra, que tinham
planejado ir até a frente da fazenda, e que resolveram entrar na fazenda
e na casa, quando viram que estava desguarnecida e não se deram conta,
de que era uma armadilha. O serviço de inteligência do
Palácio, acompanhou a assembleia que decidiu a
manifestação oito horas antes. Erro ao se deixarem iludir por
misteriosos cinegrafistas, que os induziram a entrar nos aposentos da casa.
Erro do governo FHC que tentou criar um facto político para desmoralizar
o MST, os sem-terra a reforma agraria, que nos humilhou naquela forma de
prisão. Erro ao desrespeitar os negociados do INCRA, que tiveram que
pedir demissão envergonhados com as mentiras do governo.
Erro do governo que tentou vincular ao PT e à campanha Lula. Erro da
imprensa servil, que em vez de explicar o que estava acontecendo realmente fez
o jogo do governo, especialmente a TV Globo, que tantos males já causou
ao nosso povo.
Enfim, todos perdemos com aquele episódio. Perdeu o MST que teve sua
imagem arranhada. Perdeu o governo com suas mentiras. Perdeu a imprensa
com sua vergonhosa subserviência. Perdeu o poder judiciário de
Buritís que se deixou manipular.
Mas o que é mais trágico. Todos os problemas que as
famílias assentadas vizinhas da fazenda do Presidente
tinham, continuam iguais. O governo não resolveu nenhum... O
único azar ou sorte deles, é que são pobres e vizinhos do
Presidente e isso é muito perigoso as vezes. Mas a opinião
publica não sabe por exemplo, que nesse assentamento foi desviada a
verba da escola pelas autoridades locais, que a escola é o antigo
estábulo, que mais de cem crianças estudam num estábulo,
a menos de cem quilómetros da fazenda-mansão do Presidente
sociólogo, que certamente deve ter comprado com dinheiro adquirido com
suor do trabalho duro. Juntamente com Sérgio Motta..
17) A Folha publicou uma série de reportagens sobre irregularidades
apontadas pelo Ministério Público no financiamento de
cooperativas ligadas ao MST, incluindo a cobrança de pedágios. O
sr. disse que, se houvesse irregularidades, haveria punição.
Alguém foi investigado? Alguém foi punido?
A Folha se prestou ao jogo de propaganda do governo FHC. Os sem-terra
não se mobilizam por ideologia, se mobilizam por necessidades
sociais. Cada vez que fizemos mobilizações nacionais para
pressionar o governo a resolver os problemas, o governo FHC em vez de resolver
os problemas, adoptava mecanismos de propaganda, de uso dos meios de
comunicação para tentar derrotar politicamente o MST.
Numa dessas mobilizações, inventou essa de pedágio, de
desvio de cooperativas.
Apesar dos inúmeros inquéritos, não tenho noticias que
algum virou processo, porque de facto não houve desvios de dinheiro
publico. É claro que nossas cooperativas, como aliás a maioria,
mesmo dos fazendeiros, sempre tem problemas administrativos. E isso se
procura ir corrigindo, renovando directorias, etc.
Mas o que quis dizer é que os associados de nossas cooperativas e o
próprio MST tinha mecanismos de controle para evitar
corrupção, e quando houvessem problemas os próprios
associados tomariam as medidas.
Por falar em corrupção, a sociedade brasileira está
esperando respostas de muitas denúncias que foram feitas, desde o
fatídico processo da compra de votos de deputados, para garantir a
reeleição de FHC, até o caso SIVAM, que ainda
não tem explicações para o povo.
[*]
Versão integral da entrevista concedida à Folha de S. Paulo. O texto
publicado por aquele jornal, em 16/Set/02, sofreu cortes.
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