Dialética da empulhação

por César Benjamin [*]

“O PT dedicou-se com tamanho afinco a ganhar as eleições, que não sabe o que fazer depois de ganhá-las”

O ser humano foi definido, até hoje, de muitas maneiras. Ele é “o animal que trabalha” (Marx), “o animal não fixado” (Nietzsche), “o animal que troca” (Simmel), “o animal que fala” (Saussurre), e assim sucessivamente, conforme o enfoque predominante em cada pensador. (Nenhuma definição é suficiente: sendo criador de cultura, o homem está sempre recriando a si próprio.) Uma leitura livre de uma passagem da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, permite propor outra definição, igualmente parcial: o homem é “o animal que erra”. Em versão mais forte, é “o animal que mente”. “Se a natureza comete um erro, ela o elimina. Só os erros cometidos pelo homem perduram indefinidamente e se propagam longe, graças à linguagem. Pode-se definir o homem como um erro que se mantém na existência, que perdura na realidade (...). O homem é o único [animal] que pode enganar-se sem, por isso, ter de desaparecer: pode continuar a existir, mesmo enganado a respeito do que existe; pode viver seu erro ou no erro; o erro ou o falso, que nada são em si mesmos, nele se tornam reais.” Para que seja assim, como Hegel enfatiza, são imprescindíveis os artifícios da linguagem. “Mostra-me como argumentas e te direi quem és”, alguém poderia dizer. A forma da argumentação, freqüentemente, revela mais do que o conteúdo que ela pretende expressar.

Ninguém pode afirmar, com absoluta certeza, onde o governo Lula está errando, onde está acertando. “Pãos ou pães”, dizia Guimarães Rosa, “é questão de opiniães.” Mas podemos dizer, sem medo de errar, que suas formas de argumentação mais recorrentes denunciam uma patologia grave.

A primeira dessas formas – também muito usada, contra a esquerda, por colunistas da imprensa – tem como ponto de partida a criação de um interlocutor imaginário, perfeitamente idiota, feito sob medida para ser demolido. Cada vez mais, as autoridades ou seus porta-vozes iniciam suas falas e artigos criticando “os que defendem a volta da inflação”, “os que acham que o Brasil deve isolar-se do mundo”, “os que cobram que em poucos meses o novo governo solucione todos os problemas do país”, “os que desejam mudar tudo de uma só vez”, e assim por diante. Em seguida, com muita paciência e alguma comiseração, dedicam-se a demonstrar que a inflação não é coisa boa, que o Brasil é parte do mundo, etc. etc. etc., e crêem que isso basta para justificar as políticas que resolveram adotar. O procedimento demonstra, no entanto, coisa bem diferente, pois a suprema imbecilidade desses interlocutores imaginários denuncia a estatura intelectual de quem precisa recorrer a eles para construir o seu próprio discurso.

A segunda forma recorrente – a preferida de Lula – é o uso de analogias como se fossem argumentos. Com irritante freqüência, decisões sobre temas específicos e bem definidos, que interferem no destino da sociedade brasileira atual, são justificadas da seguinte maneira: “um Boeing não dá cavalo-de-pau em pleno vôo”, “um transatlântico não faz curva fechada”, “um jogo de futebol tem noventa minutos e o importante é vencer, mesmo que seja no fim”, “às vezes, um remédio amargo é necessário para curar o doente”, “todos temos que ir ao dentista, mesmo sendo desagradável”. Tudo se passa como se tais afirmações banais, transformadas em premissas, transmitissem sua obviedade, por osmose, a qualquer outra afirmação colocada na seqüência da frase. Mais ou menos assim: “Como um Boeing não dá cavalo-de-pau, a taxa de juros da economia brasileira deve ser de 26,5 por cento”. Ou então: “Ir de vez em quando ao dentista é inevitável; logo, precisamos dar autonomia ao Banco Central”. Só os radicais não aceitam proposições tão bem fundamentadas.

A terceira forma recorrente são as tautologias, as platitudes e as generalidades. Todos os problemas são “bastante complexos” e exigem “muita responsabilidade”; deve-se ter “coragem para mudar”, mas sem esquecer a “cautela necessária”; nada de “queimar etapas”, nem “ser voluntarista”, pois é preciso “conhecer os limites da realidade”. A versão mais vulgar dessa maneira de argumentar apela à linguagem de botequim, indigna de um presidente ao dirigir-se publicamente a um ministro: as verbas para a educação devem ser mesmo cortadas, sem contestação, pois, como se sabe, “apressado come cru”. A versão mais sofisticada costuma apelar a uma entidade mítica chamada “correlação de forças”, que ninguém sabe bem o que é, e, justamente por isso, cada um usa ao seu bel-prazer, como um tapa-buracos de qualquer raciocínio. Como ocorre com outras categorias abstratas e impessoais, a “correlação de forças” também serve para retirar dos ombros dos governantes a responsabilidade moral pelas conseqüências de suas decisões. Reduzimos a zero os investimentos do Estado brasileiro, para pagar juros insanos? Suspendemos a bolsa-escola para crianças que viviam de catar lixo? Vamos cortar direitos dos aposentados? Não damos dinheiro para a cultura? O desemprego aumentou, aumentando o medo e o desespero de milhões de pessoas? É mesmo danada essa tal “correlação de forças”!

O governo Lula mal começou e já não pode esconder a profunda crise de pensamento em que se debate, que no fundo é uma crise moral. A bem da verdade, a crise o antecede. É marca registrada do PT há vários anos, só não viu quem não quis. Tendo abandonado o esforço, penoso e meritório, de constituir um espaço político “socialista, democrático e de massas”, como era sua proposta original, e adotado o caminho fácil da burocratização e da incorporação ao status quo, o PT passou da juventude revolucionária à senilidade liberal, sem o meio-termo de uma maturidade reformista que, sendo séria, estaria de bom tamanho. Como o próprio presidente esclareceu, para perplexidade geral dos militantes de boa-fé, essa crise pôde ser protelada enquanto o partido, estando na oposição, podia “viver de bravatas”. Agora, o contexto é outro, e os personagens já rasgaram a fantasia. O ex-trotskista Antônio Palocci repete todos os dias que sua política econômica é diferente da de Fernando Henrique Cardoso, sem perceber que sua obsessão por enfatizar diferenças é o maior indício de que ambas as políticas são essencialmente iguais. Não é assim, doutor Freud?

O PT dedicou-se com tamanho afinco a ganhar as eleições, que evidentemente não sabe o que fazer, depois de ganhá-las. No fundo da cena, como sempre, está o povo brasileiro, não como sujeito da história, mas como objeto de marketing. Dirige-se a ele a esquizofrênica peça de Duda Mendonça, em horário nobre na televisão: “Até 1962, no Brasil, as mulheres casadas não podiam trabalhar sem autorização do marido. Graças a uma reforma, essa condição humilhante foi superada. É assim que o país progride, com reformas. Reforma da Previdência, o povo exige, o governo faz!”

Ninguém muda um país tratando seu povo como débil mental. Talvez não possamos mais esperar que Lula ajude a transformar o Brasil, como em algum momento sonhamos. Talvez isso se torne possível se o povo lutar. Mas, desde já, eu gostaria de pedir ao governo, pelo menos, um pouco mais de respeito à inteligência alheia.

[*] Autor de A Opção Brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998, 9a edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.

O original deste artigo foi publicado pela revista brasileira Caros Amigos.


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16/Mai/03