Dialética da empulhação
O PT dedicou-se com tamanho afinco a ganhar as eleições,
que não sabe o que fazer depois de ganhá-las
O ser humano foi definido, até hoje, de muitas maneiras. Ele é
o animal que trabalha (Marx), o animal não
fixado (Nietzsche), o animal que troca (Simmel), o
animal que fala (Saussurre), e assim sucessivamente, conforme o enfoque
predominante em cada pensador. (Nenhuma definição é
suficiente: sendo criador de cultura, o homem está sempre recriando a si
próprio.) Uma leitura livre de uma passagem da Fenomenologia do
Espírito, de Hegel, permite propor outra definição,
igualmente parcial: o homem é o animal que erra. Em
versão mais forte, é o animal que mente. Se a
natureza comete um erro, ela o elimina. Só os erros cometidos pelo homem
perduram indefinidamente e se propagam longe, graças à linguagem.
Pode-se definir o homem como um erro que se mantém na existência,
que perdura na realidade (...). O homem é o único [animal] que
pode enganar-se sem, por isso, ter de desaparecer: pode continuar a existir,
mesmo enganado a respeito do que existe; pode viver seu erro ou no erro; o erro
ou o falso, que nada são em si mesmos, nele se tornam reais. Para
que seja assim, como Hegel enfatiza, são imprescindíveis os
artifícios da linguagem. Mostra-me como argumentas e te direi quem
és, alguém poderia dizer. A forma da
argumentação, freqüentemente, revela mais do que o
conteúdo que ela pretende expressar.
Ninguém pode afirmar, com absoluta certeza, onde o governo Lula
está errando, onde está acertando. Pãos ou
pães, dizia Guimarães Rosa, é questão
de opiniães. Mas podemos dizer, sem medo de errar, que suas formas
de argumentação mais recorrentes denunciam uma patologia grave.
A primeira dessas formas também muito usada, contra a esquerda,
por colunistas da imprensa tem como ponto de partida a
criação de um interlocutor imaginário, perfeitamente
idiota, feito sob medida para ser demolido. Cada vez mais, as autoridades ou
seus porta-vozes iniciam suas falas e artigos criticando os que defendem
a volta da inflação, os que acham que o Brasil deve
isolar-se do mundo, os que cobram que em poucos meses o novo
governo solucione todos os problemas do país, os que desejam
mudar tudo de uma só vez, e assim por diante. Em seguida, com
muita paciência e alguma comiseração, dedicam-se a
demonstrar que a inflação não é coisa boa, que o
Brasil é parte do mundo, etc. etc. etc., e crêem que isso basta
para justificar as políticas que resolveram adotar. O procedimento
demonstra, no entanto, coisa bem diferente, pois a suprema imbecilidade desses
interlocutores imaginários denuncia a estatura intelectual de quem
precisa recorrer a eles para construir o seu próprio discurso.
A segunda forma recorrente a preferida de Lula é o uso de
analogias como se fossem argumentos. Com irritante freqüência,
decisões sobre temas específicos e bem definidos, que interferem
no destino da sociedade brasileira atual, são justificadas da seguinte
maneira: um Boeing não dá cavalo-de-pau em pleno
vôo, um transatlântico não faz curva
fechada, um jogo de futebol tem noventa minutos e o importante
é vencer, mesmo que seja no fim, às vezes, um
remédio amargo é necessário para curar o doente,
todos temos que ir ao dentista, mesmo sendo desagradável.
Tudo se passa como se tais afirmações banais, transformadas em
premissas, transmitissem sua obviedade, por osmose, a qualquer outra
afirmação colocada na seqüência da frase. Mais ou
menos assim: Como um Boeing não dá cavalo-de-pau, a taxa de
juros da economia brasileira deve ser de 26,5 por cento. Ou então:
Ir de vez em quando ao dentista é inevitável; logo,
precisamos dar autonomia ao Banco Central. Só os radicais
não aceitam proposições tão bem fundamentadas.
A terceira forma recorrente são as tautologias, as platitudes e as
generalidades. Todos os problemas são bastante complexos e
exigem muita responsabilidade; deve-se ter coragem para
mudar, mas sem esquecer a cautela necessária; nada de
queimar etapas, nem ser voluntarista, pois é
preciso conhecer os limites da realidade. A versão mais
vulgar dessa maneira de argumentar apela à linguagem de botequim,
indigna de um presidente ao dirigir-se publicamente a um ministro: as verbas
para a educação devem ser mesmo cortadas, sem
contestação, pois, como se sabe, apressado come cru.
A versão mais sofisticada costuma apelar a uma entidade mítica
chamada correlação de forças, que
ninguém sabe bem o que é, e, justamente por isso, cada um usa ao
seu bel-prazer, como um tapa-buracos de qualquer raciocínio. Como ocorre
com outras categorias abstratas e impessoais, a correlação
de forças também serve para retirar dos ombros dos
governantes a responsabilidade moral pelas conseqüências de suas
decisões. Reduzimos a zero os investimentos do Estado brasileiro, para
pagar juros insanos? Suspendemos a bolsa-escola para crianças que viviam
de catar lixo? Vamos cortar direitos dos aposentados? Não damos dinheiro
para a cultura? O desemprego aumentou, aumentando o medo e o desespero de
milhões de pessoas? É mesmo danada essa tal
correlação de forças!
O governo Lula mal começou e já não pode esconder a
profunda crise de pensamento em que se debate, que no fundo é uma crise
moral. A bem da verdade, a crise o antecede. É marca registrada do PT
há vários anos, só não viu quem não quis.
Tendo abandonado o esforço, penoso e meritório, de constituir um
espaço político socialista, democrático e de
massas, como era sua proposta original, e adotado o caminho fácil
da burocratização e da incorporação ao status quo,
o PT passou da juventude revolucionária à senilidade liberal, sem
o meio-termo de uma maturidade reformista que, sendo séria, estaria de
bom tamanho. Como o próprio presidente esclareceu, para perplexidade
geral dos militantes de boa-fé, essa crise pôde ser protelada
enquanto o partido, estando na oposição, podia viver de
bravatas. Agora, o contexto é outro, e os personagens já
rasgaram a fantasia. O ex-trotskista Antônio Palocci repete todos os dias
que sua política econômica é diferente da de Fernando
Henrique Cardoso, sem perceber que sua obsessão por enfatizar
diferenças é o maior indício de que ambas as
políticas são essencialmente iguais. Não é assim,
doutor Freud?
O PT dedicou-se com tamanho afinco a ganhar as eleições, que
evidentemente não sabe o que fazer, depois de ganhá-las. No fundo
da cena, como sempre, está o povo brasileiro, não como sujeito da
história, mas como objeto de marketing. Dirige-se a ele a
esquizofrênica peça de Duda Mendonça, em horário
nobre na televisão: Até 1962, no Brasil, as mulheres
casadas não podiam trabalhar sem autorização do marido.
Graças a uma reforma, essa condição humilhante foi
superada. É assim que o país progride, com reformas. Reforma da
Previdência, o povo exige, o governo faz!
Ninguém muda um país tratando seu povo como débil mental.
Talvez não possamos mais esperar que Lula ajude a transformar o Brasil,
como em algum momento sonhamos. Talvez isso se torne possível se o povo
lutar. Mas, desde já, eu gostaria de pedir ao governo, pelo menos, um
pouco mais de respeito à inteligência alheia.
[*]
Autor de
A Opção Brasileira
(Rio de Janeiro,
Contraponto Editora, 1998, 9a edição) e integra a
coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
O original deste artigo foi publicado pela revista brasileira
Caros Amigos.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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