Reflexões sobre o declínio
da liderança econômica dos EUA
Alguns fatos relacionados à crise econômica e à
instabilidade monetária mundial sugerem que a hegemonia dos Estados
Unidos na esfera econômica não é tão sólida
quanto se acreditava até há pouco e na maior parte dos
anos 90. Parece mesmo que ela está em franco declínio.
Naturalmente, o tema é controverso, tem um forte apelo ideológico
e o pensamento dominante a respeito em geral é impregnado de muito
idealismo e subjetivismo. Todavia, a verdade é que os fenômenos
econômicos em questão têm caráter objetivo, no
sentido de que ocorrem independentemente daquilo que pensamos ou desejamos, da
vontade e da ideologia política dos indivíduos, grupos e classes
sociais e mesmo num plano mais amplo das
intervenções dos governos, do Estado capitalista e da sua
política. Para melhor compreendê-los, de uma perspectiva
marxista, anti-imperialista e revolucionária, devemos procurar evitar o
subjetivismo e superar o senso comum, do qual infelizmente não estamos
automaticamente protegidos pelo simples fato de pertencer ao Partido Comunista.
As idéias e observações que venho desenvolvendo a respeito
do tema, ainda em elaboração e sob muitos aspectos carentes de
maior pesquisa e desenvolvimento, podem ser resumidas nos seguintes pontos:
1- Os EUA vivem um processo de decadência econômica no interior do
sistema imperialista mundial, um processo de decomposição de sua
liderança e de sua hegemonia na esfera econômica, que se traduz
numa crise do padrão dólar.
2- O declínio em questão é um processo histórico,
que teve início em algum momento após a 2ª Guerra Mundial,
mas deu seus primeiros sinais e se tornou mais pronunciado a partir dos anos 70
do século passado.
3- Embora o processo de decadência econômica no plano mundial
interaja com as crises cíclicas, numa relação de
influências recíprocas, ele se diferencia destas na medida em que
não se verifica de imediato, de uma hora para outra, mas instala-se
paulatina e progressivamente, ao longo do tempo. E ao contrário das
crises cíclicas, transcorre em médio e longo prazo. Ou seja, ele
se dá ao largo dos ciclos da economia interna dos EUA e tudo indica que
seu desenvolvimento não é linear, pois compreende mudanças
qualitativas significativas. Estou convencido de que não podemos
caracterizar o processo histórico de declínio como uma crise
cíclica de superprodução.
4- O senso comum americano interpretou o ciclo de crescimento dos anos 90,
comparado a um desempenho sofrível da União Européia e
à estagnação do Japão, como prova de
interrupção e reversão do processo de decadência,
recomposição da hegemonia econômica dos EUA e
fortalecimento do padrão dólar (moeda que registrou uma
artificial valorização na segunda metade daquela década).
Tal idéia, que serviu aos propósitos expansionistas da Casa
Branca, é falsa. Na realidade, o processo de decomposição
não foi interrompido nem revertido durante os anos 90, em que pese o
desenvolvimento desigual aparentemente ter beneficiado os EUA. Pelo
contrário, durante os badalados anos da Nova Economia e de
falsa exuberância, o declínio da liderança econômica
do nosso Tio Sam continuou em curso e as causas deste processo, em vez de
suavizadas ou removidas, foram aprofundadas. Esta conclusão nos remete
a uma visão mais crítica e polêmica sobre a teoria que
considera o desenvolvimento desigual expresso nas taxas de
evolução do PIB o fator determinante da queda ou do
declínio das potências hegemônicas. Não se deve
medir a evolução do poderio econômico relativo de uma
potência imperialista exclusiva ou mesmo principalmente pela
expansão do PIB ou pelo crescimento interno, mas pelo comportamento da
exportação de capitais, pela taxa de expansão dos
investimentos e dos ativos acumulados pela potência em questão no
exterior.
5- A origem remota da decadência dos EUA reside no seu fabuloso
déficit comercial, mas este fenômeno não é algo
perceptível à primeira vista. O senso comum tende a negligenciar
os efeitos dos resultados negativos no comércio exterior, não
enxergando no déficit um problema maior, até mesmo porque
é coisa antiga, que vem se verificando há mais de 30 anos. Este
déficit nos fornece também uma medida muito precisa, exata, do
parasitismo da sociedade norte-americana, o quanto ela consome além dos
meios que produz, o quando vive à custa alheia.
6- É preciso salientar que o saldo negativo no comércio exterior,
no qual se reflete a progressiva perda de competitividade da indústria
estadunidense no mundo, não causa direta nem imediatamente o
declínio, que ocorre progressivamente em função dos
efeitos cumulativos do déficit no processo de acumulação e
exportação de capitais das potências capitalistas, o
processo de valorização e expansão do capital em
âmbito imperialista. Na marcha da história, desde o
pós-guerra o déficit comercial dos EUA tem sido a principal fonte
de realização da mais-valia e valorização do
capital dos monopólios europeus e japoneses; ele impulsiona a
expansão imperialista das empresas européias e japonesas,
fortalece o poder econômico relativo das potências rivais e na
mesma medida enfraquece o poder econômico relativo dos EUA no mundo.
7- Em seu curso o déficit comercial tem outros desdobramentos,
transmuta-se em déficit das contas correntes, que provoca
extraordinário endividamento e expansão do passivo externo
norte-americano e acaba por afetar a conta de capital, gerando não
só uma crise do balanço de pagamentos dos EUA, mas sérios
desequilíbrios e turbulências no sistema financeiro mundial, a
instabilidade cambial generalizada que se observa hoje em dia e uma forte
tendência de desvalorização do dólar, além de
reforçar o protecionismo e acirrar a concorrência entre empresas e
igualmente entre as nações.
8- A queda do dólar é um sintoma e uma forma de
manifestação (uma expressão condensada) da
decadência mas, por maior que seja sua importância, a
desvalorização da moeda norte-americana é um efeito e
não a causa da decadência, que em última instância
está radicada no processo produtivo e no comércio exterior.
9- Em que pesem os nossos desejos, seria errado concluir que do declínio
econômico decorre ou decorrerá imediatamente o declínio da
hegemonia imperialista dos EUA, já que esta compreende também as
esferas do poder político e militar. Adentramos agora no terreno das
complexas relações entre economia e política. As
tensões diplomáticas crescentes entre EUA e Europa (no caso,
principalmente França e Alemanha) e as dificuldades e resistências
que o governo Bush enfrentou e vem enfrentando para reunir aliados em torno de
sua estratégia imperialista no Oriente Médio sugerem que
também o poder político da potência hegemônica
está em declínio. Creio que todos aqui concordamos com a
observação de que presenciamos hoje um cenário
político no âmbito da chamada diplomacia internacional
radicalmente distinto daquele que prevalecia em passado recente, emerso do
colapso da URSS e da derrocada do chamado socialismo real e que esteve
refletido nas guerras dos anos 90, a primeira guerra contra o Iraque (1991), a
liquidação da Iugoslavia e mesmo o primeiro grande ato da
guerra contra o terrorismo, que foi a invasão do
Afeganistão. É muito mais que provável que essas
alterações no quadro político estejam associadas à
evolução da conjuntura econômica, ao processo de
declínio da liderança econômica dos EUA, à queda do
dólar, mas as relações de causa e efeito no caso
não são automáticas, mecânicas ou imediatas.
Nos próximos nove artigos da série que se inicia com esta
apresentação geral, desenvolvo as idéias e
observações referentes a cada um destes oito pontos.
[*]
Jornalista brasileiro, membro da equipe de comunicação da Central
Única dos Trabalhadores. Exposição apresentada em 25 de
Setembro no Seminário do PCdoB/IMG sobre a nova realidade internacional
sob o primado dos EUA
O original encontra-se em
http://www.vermelho.org.br/diario/2003/0930/0930_umberto1.asp
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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