Reflexões sobre o declínio
da liderança econômica dos EUA

por Umberto Martins [*]

O dólar, visto por Chaim Razid. Alguns fatos relacionados à crise econômica e à instabilidade monetária mundial sugerem que a hegemonia dos Estados Unidos na esfera econômica não é tão sólida quanto se acreditava até há pouco – e na maior parte dos anos 90. Parece mesmo que ela está em franco declínio.

Naturalmente, o tema é controverso, tem um forte apelo ideológico e o pensamento dominante a respeito em geral é impregnado de muito idealismo e subjetivismo. Todavia, a verdade é que os fenômenos econômicos em questão têm caráter objetivo, no sentido de que ocorrem independentemente daquilo que pensamos ou desejamos, da vontade e da ideologia política dos indivíduos, grupos e classes sociais e mesmo – num plano mais amplo – das intervenções dos governos, do Estado capitalista e da sua política. Para melhor compreendê-los, de uma perspectiva marxista, anti-imperialista e revolucionária, devemos procurar evitar o subjetivismo e superar o senso comum, do qual infelizmente não estamos automaticamente protegidos pelo simples fato de pertencer ao Partido Comunista.

As idéias e observações que venho desenvolvendo a respeito do tema, ainda em elaboração e sob muitos aspectos carentes de maior pesquisa e desenvolvimento, podem ser resumidas nos seguintes pontos:

1- Os EUA vivem um processo de decadência econômica no interior do sistema imperialista mundial, um processo de decomposição de sua liderança e de sua hegemonia na esfera econômica, que se traduz numa crise do padrão dólar.

2- O declínio em questão é um processo histórico, que teve início em algum momento após a 2ª Guerra Mundial, mas deu seus primeiros sinais e se tornou mais pronunciado a partir dos anos 70 do século passado.

3- Embora o processo de decadência econômica no plano mundial interaja com as crises cíclicas, numa relação de influências recíprocas, ele se diferencia destas na medida em que não se verifica de imediato, de uma hora para outra, mas instala-se paulatina e progressivamente, ao longo do tempo. E ao contrário das crises cíclicas, transcorre em médio e longo prazo. Ou seja, ele se dá ao largo dos ciclos da economia interna dos EUA e tudo indica que seu desenvolvimento não é linear, pois compreende mudanças qualitativas significativas. Estou convencido de que não podemos caracterizar o processo histórico de declínio como uma crise cíclica de superprodução.

4- O senso comum americano interpretou o ciclo de crescimento dos anos 90, comparado a um desempenho sofrível da União Européia e à estagnação do Japão, como prova de interrupção e reversão do processo de decadência, recomposição da hegemonia econômica dos EUA e fortalecimento do padrão dólar (moeda que registrou uma artificial valorização na segunda metade daquela década). Tal idéia, que serviu aos propósitos expansionistas da Casa Branca, é falsa. Na realidade, o processo de decomposição não foi interrompido nem revertido durante os anos 90, em que pese o desenvolvimento desigual aparentemente ter beneficiado os EUA. Pelo contrário, durante os badalados anos da “Nova Economia” e de falsa exuberância, o declínio da liderança econômica do nosso Tio Sam continuou em curso e as causas deste processo, em vez de suavizadas ou removidas, foram aprofundadas. Esta conclusão nos remete a uma visão mais crítica e polêmica sobre a teoria que considera o desenvolvimento desigual expresso nas taxas de evolução do PIB o fator determinante da queda ou do declínio das potências hegemônicas. Não se deve medir a evolução do poderio econômico relativo de uma potência imperialista exclusiva ou mesmo principalmente pela expansão do PIB ou pelo crescimento interno, mas pelo comportamento da exportação de capitais, pela taxa de expansão dos investimentos e dos ativos acumulados pela potência em questão no exterior.

5- A origem remota da decadência dos EUA reside no seu fabuloso déficit comercial, mas este fenômeno não é algo perceptível à primeira vista. O senso comum tende a negligenciar os efeitos dos resultados negativos no comércio exterior, não enxergando no déficit um problema maior, até mesmo porque é coisa antiga, que vem se verificando há mais de 30 anos. Este déficit nos fornece também uma medida muito precisa, exata, do parasitismo da sociedade norte-americana, o quanto ela consome além dos meios que produz, o quando vive à custa alheia.

6- É preciso salientar que o saldo negativo no comércio exterior, no qual se reflete a progressiva perda de competitividade da indústria estadunidense no mundo, não causa direta nem imediatamente o declínio, que ocorre progressivamente em função dos efeitos cumulativos do déficit no processo de acumulação e exportação de capitais das potências capitalistas, o processo de valorização e expansão do capital em âmbito imperialista. Na marcha da história, desde o pós-guerra o déficit comercial dos EUA tem sido a principal fonte de realização da mais-valia e valorização do capital dos monopólios europeus e japoneses; ele impulsiona a expansão imperialista das empresas européias e japonesas, fortalece o poder econômico relativo das potências rivais e na mesma medida enfraquece o poder econômico relativo dos EUA no mundo.

7- Em seu curso o déficit comercial tem outros desdobramentos, transmuta-se em déficit das contas correntes, que provoca extraordinário endividamento e expansão do passivo externo norte-americano e acaba por afetar a conta de capital, gerando não só uma crise do balanço de pagamentos dos EUA, mas sérios desequilíbrios e turbulências no sistema financeiro mundial, a instabilidade cambial generalizada que se observa hoje em dia e uma forte tendência de desvalorização do dólar, além de reforçar o protecionismo e acirrar a concorrência entre empresas e igualmente entre as nações.

8- A queda do dólar é um sintoma e uma forma de manifestação (uma expressão condensada) da decadência mas, por maior que seja sua importância, a desvalorização da moeda norte-americana é um efeito e não a causa da decadência, que em última instância está radicada no processo produtivo e no comércio exterior.

9- Em que pesem os nossos desejos, seria errado concluir que do declínio econômico decorre ou decorrerá imediatamente o declínio da hegemonia imperialista dos EUA, já que esta compreende também as esferas do poder político e militar. Adentramos agora no terreno das complexas relações entre economia e política. As tensões diplomáticas crescentes entre EUA e Europa (no caso, principalmente França e Alemanha) e as dificuldades e resistências que o governo Bush enfrentou e vem enfrentando para reunir aliados em torno de sua estratégia imperialista no Oriente Médio sugerem que também o poder político da potência hegemônica está em declínio. Creio que todos aqui concordamos com a observação de que presenciamos hoje um cenário político no âmbito da chamada diplomacia internacional radicalmente distinto daquele que prevalecia em passado recente, emerso do colapso da URSS e da derrocada do chamado socialismo real e que esteve refletido nas guerras dos anos 90, a primeira guerra contra o Iraque (1991), a liquidação da Iugoslavia e mesmo o primeiro grande ato da “guerra contra o terrorismo”, que foi a invasão do Afeganistão. É muito mais que provável que essas alterações no quadro político estejam associadas à evolução da conjuntura econômica, ao processo de declínio da liderança econômica dos EUA, à queda do dólar, mas as relações de causa e efeito no caso não são automáticas, mecânicas ou imediatas.

Nos próximos nove artigos da série que se inicia com esta apresentação geral, desenvolvo as idéias e observações referentes a cada um destes oito pontos.

[*] Jornalista brasileiro, membro da equipe de comunicação da Central Única dos Trabalhadores. Exposição apresentada em 25 de Setembro no Seminário do PCdoB/IMG sobre a nova realidade internacional sob o primado dos EUA

O original encontra-se em
http://www.vermelho.org.br/diario/2003/0930/0930_umberto1.asp


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

01/Out/03