Problema não resolvido
A ocupação de terra no Brasil:
uma página virada da história?
por Bernardo Mançano Fernandes
[*]
Estamos vivenciando um novo
momento da luta pela terra, que começou a ser formado a partir da
segunda metade da década de 1990. A questão agrária foi
intensificada com a criação de novas políticas pelo
governo Fernando Henrique Cardoso, compreendidas pela
criminalização das ocupações e na
implantação do Banco da Terra, na extinção da
assistência técnica e na mudança do modelo de linha de
crédito agrícola para a agricultura camponesa, que prejudicou o
desenvolvimento socioeconômico dos assentamentos rurais.
Os objetivos dessas
políticas são diversos. Podem ser sistematizados na
estratégia de desarticulação das relações
entre as principais instituições envolvidas com o problema
agrário, principalmente dos movimentos camponeses, sindicais, e na
constituição de novos espaços de
representação, por meio dos conselhos de desenvolvimento rural,
em diferentes escalas geográficas. Essas ações são
formuladas e realizadas na produção do paradigma do capitalismo
agrário.
Essa corrente teórica
considera que os problemas relacionados à questão da terra, do
campo e da cidade, do capital e do trabalho familiar, serão resolvidos
pelo desenvolvimento do capitalismo. Dentro dessa visão de mundo,
não há questão agrária. E a sua
negação está no fato dessa ser insolúvel na
sociedade capitalista. Contudo, se é possível negar a
questão, é impossível esquivar-se de seus efeitos, como
por exemplo: a diferenciação social e a renda capitalizada da
terra, que produzem a expropriação e a miséria.
Desse modo, pela
impossibilidade de superação da questão agrária,
por meio do paradigma adotado o governo FHC ajustou estrategicamente uma
política de transferência e substituição dos
elementos da questão agrária. Assim, os elementos, em que os
trabalhadores têm perspectiva de enfrentamento e resistência no
espaço político, são transferidos para o espaço
econômico, onde a resistência é reduzida. E os elementos
constituídos de identidade política e histórica são
substituídos por novos elementos, para a produção de outra
identidade e outra história.
Desse modo, como a
questão agrária só pode ser administrada no
território da política, onde os trabalhadores têm poder de
resistência e, por conseguinte, de enfrentamento, a
intelligentsia
do Governo Fernando Henrique Cardoso instituiu a idéia de
novo mundo rural,
utilizando a noção de desenvolvimento sustentável,
mercantilizando a questão agrária, colocando-a no
território do capital, onde os camponeses são plenamente
subalternos.
Dessa forma, o governo tenta
refluir a luta dos trabalhadores sem-terra, procurando desmobilizá-los;
transfere a questão agrária do espaço das
negociações políticas para o espaço do
negócio político-econômico; ocupa o território do
assentamento produzindo a idéia de empreendimento, desenvolve uma
parcíssima linha de crédito, que intensifica as
diferenciação social e acirra as desigualdades. Ainda, a
intelligentsia
do Governo Fernando Henrique Cardoso, bem como seus ministros, produziram um
conjunto de eufemismos para utilizar em suas retóricas. Igualmente,
procurou dar novos significados aos conceitos consagrados.
Com esse estratagema tenta nos
fazer crer que o problema agrário pode ser resolvido apenas com
desenvolvimento econômico, que o governo fez a maior reforma
agrária da história do Brasil, que as
ocupações são páginas viradas da
história, que suas políticas são propositivas para o
desenvolvimento da agricultura familiar.
Mas na realidade este
estratagema faz parte do plano político do governo FHC para impedir a
territorialização da luta pela terra, já que a tese da
intelligentsia
do governo defendia a idéia de que com a implantação de
alguns assentamentos rurais, a luta pela terra diminuiria de intensidade,
porque seus teóricos imaginavam que o número de famílias
sem-terra era igual ao número de famílias acampadas. Pelo
desconhecimento dos processos de espacialização e de
territorialização da luta, seus teóricos e
políticos não conseguiam compreender como a luta crescia e
expandia, se o governo implantava novos assentamentos sob a pressão das
ocupações de terra.
Na verdade, quanto mais
assentamentos o governo implantava, mais a luta pela terra se espacializava e
se territorializava, porque por meio desses processos, os camponeses se
(re)criam. Essas ações são possibilidades políticas
de (re)criação do campesinato. E recriação quer
dizer intensificação da questão agrária. Para
impedir esses processos, para tolher essa luta popular secular, o governo
adotou nova tese e criou um novo mundo rural, onde a agricultura
camponesa é metamorfoseada em agricultura familiar, procurando convencer
os trabalhadores de que o mundo mudou e que a luta pela terra é coisa do
passado; que a subalternidade é natural, na
integração ao capital e ao mercado.
Esse convencimento
veio acompanhado de duas medidas provisórias, em que decretou
o tempo do castigo
aos sem-terra, já que as famílias ocupantes de terra não
são assentadas e que as terras ocupadas ficam livres do espectro da
desapropriação, por um tempo determinado, deixando os
latifundiários mais tranqüilos. Desse modo, tenta-se cortar pela
raiz a territorialização da luta pela terra. Foi assim que o
governo tirou a questão agrária do território da
política e adotou o Banco da Terra, essa política do Banco
Mundial, que coloca a questão agrária no território do
capital, limitando as negociações políticas às
condições oferecidas pelos negócios do mercado. Dessa
forma, o governo se alia aos latifundiários, entorpecendo a
questão agrária. E para completar esse estratagema, abandona as
famílias assentadas à própria sorte, extinguindo o
programa de assistência técnica, dificultando o acesso ao
crédito agrícola.
Assim, os sem-terra, por
lutarem para serem eles mesmos, por lutarem contra o capital e o
latifúndio, são desterrados de seus espaços
políticos e de seu tempo histórico. É fundamental,
reafirmar que esse novo momento é resultado da inexistência de uma
política de reforma agrária, da extinção dos
programas de escassas políticas públicas destinadas ao
desenvolvimento dos assentamentos, da criminalização das
ocupações e da mercantilização da questão
agrária.
Mas, na sociedade capitalista,
a questão agrária é resultado de seu modo de
produção que se desenvolve por meio do mercado, onde se realiza a
renda capitalizada da terra, que gera a desigualdade e a
diferenciação social, de modo que nesse território
é impossível minimizar o efeito devastador do problema
agrário. Justamente, por optar pelo mercado para conduzir essa
questão, o governo precisou inventar uma outra leitura da questão
agrária e idealizou o novo mundo rural.
Mas, ainda, como o novo
mundo rural é uma invenção, portanto não
é o mundo real, também foi preciso inventar políticas
repressivas para tentar consolidar a invenção. Em tempos de
ditadura, o governo utilizava-se da militarização da
questão agrária, nesses tempos de democracia, o governo
utiliza-se da judiciarização da questão agrária.
Desse modo, ao Poder Judiciário cabe o dilema atualizado da
história, em reprimir a luta pela terra, humilhando os trabalhadores,
tratando-os com os mesmos recursos com que tratam os traficantes e toda
bandidagem.
Na ditadura militar, os
sem-terra foram presos como subversivos. Hoje são presos para garantir a
ordem social, como aconteceu em maio de 2002 no Pontal do
Paranapanema - SP, quando o juiz de Teodoro Sampaio mandou prender todas as
lideranças da região, para coibir a
territorialização da luta pela terra. Assim, a estrutura
fundiária permanece concentrada. E os sem-terra formam acampamentos nas
beiras das estradas, que é onde eles podem ficar sem serem presos e
ainda castigados com a impossibilidade de serem assentados. E assim os
sem-terra constroem a geografia das beiras de estradas, que
é o espaço que resta entre os latifúndios e as estradas.
Por essa razão, em 2001, a Comissão Pastoral da Terra iniciou o
registro desses acampamentos, para que possamos ter uma referência dessa
triste realidade, que o novo mundo rural insiste em desconhecer.
Ao inventar esse
mundo também foi preciso elaborar sua leitura. Nesse
contexto, os teóricos e políticos do novo mundo rural
interpretam que com a diminuição, a ocupação de
terra é uma página virada da história.
Contudo, é importante lembrar que é a história de um mundo
inventado e não de um mundo transformado. Assim, de fato, o que se tem
é uma página virada da estória do novo mundo
rural.
Enquanto isso, no mundo real, a
questão agrária está se intensificando. E ao analisarmos
os dados relativos às manifestações, comparando os anos
1999 2001, observamos a quadruplicação do número de
pessoas que participaram das manifestações na luta pela terra e
para resistir na terra, que cresceu de 142 mil, em 1999, para 285 mil, em 2000,
ultrapassando 900 mil pessoas em 2001. Sem dúvidas, estamos diante de
uma das maiores manifestações populares. Evidente que essas
manifestações representam a resistência dos camponeses que
vivem no mundo real.
Portanto, é a partir
deste mundo que podemos interpretar os dados do Caderno de Conflitos 2001 da
Comissão Pastoral da Terra. A diminuição do número
de ocupações não significa que a questão
agrária está sendo minimizada. Essa é a ilusão do
novo mundo rural, onde se acredita que é por meio da
criminalização que se diminuem as ocupações de
terra. O decréscimo dos números não significa que a luta
pela terra seja página virada da história, expressa
na verdade, que a estratégia da criminalização resultou
nos objetivos do governo, ou seja, impedir a territorialização
dos sem-terra por meio das ocupações.
As ocupações
sempre foram responsáveis pelo aumento do número de assentamentos
implantados. A maior parte dos assentamentos rurais é fruto das
ocupações de terra. Com a diminuição das
ocupações, também diminuiu o número de
assentamentos, por essa razão o governo teve que maquiar os
números de 2001, como a Folha de São Paulo denunciou amplamente.
Para atingir a meta de 2001, o Ministério do Desenvolvimento
Agrário teve que contar famílias que só seriam assentadas
em 2002 e, pior, incluiu ainda milhares de famílias que haviam
preenchido as fichas da reforma agrária pelo correio.
Contabilizou também as famílias que compraram terra por meio do
Banco da Terra, e as terras resultantes de regularização
fundiária das áreas de posseiros. E chamou tudo isso de reforma
Agrária.
No novo mundo rural
não existem conflitos, não há ocupações de
terras, não existem acampamentos de sem-terra, os assentamentos
são iniciados pelo governo e em três anos, em média (sic),
estão consolidados. Nesse processo extraordinário, os
trabalhadores entram como sem-terra e saem como agricultores familiares,
prontos para o mercado, prontos para se tornarem prósperos capitalistas.
No novo mundo rural
vale tudo para se inventar este novo momento, desde criminalizar as
ocupações a considerar famílias não assentadas como
se já estivessem na terra de fato; vale transformar formulários
em famílias assentadas comprar terra em nome da reforma agrária.
Esses ardis do novo mundo rural são transformados em
intensificação e refluxo da luta no mundo real, mas é
interpretado como problema superado pelo governo federal.
Assim, um pesquisador
desavisado pode se animar com os dados da CPT e utilizar a leitura do governo
para interpretá-los, chegando a conclusão que a questão
agrária está sendo resolvida. Um pesquisador mais atento e
também comprometido com o rigor científico não irá
analisar os números pelos números, nem tampouco crer que a
diminuição dos números das ocupações de
terra significa que o governo esteja fazendo a reforma agrária e, por
essa razão, os sem-terra não precisariam mais luta pela terra. O
que o governo está conseguindo de fato é ter o controle social
sobre os trabalhadores sem-terra. E mais, está obtendo os números
que quer: diminuiu os números de ocupações por meio da
criminalização e teria mantido o número de assentamentos
através da astúcia e do malabarismo dos dados.
Frente aos fatos, o que os
números indicam é o recrudescimento da violência, de forma
sutil, tanto no campo ideológico: no território da
produção das idéias para o controle social, com ampla
cobertura midiática; quanto no mercado: lugar da
realização da subalternidade; e finalmente por meio de medidas
provisórias: esse espaço político, onde o governo, por
enquanto, tem plenos poderes.
Todas essas formas
contribuíram para a construção desse novo momento,
intensificando a questão agrária ao tentar impedir a
territorialização da luta pela terra. Por sua vez, a luta pela
terra também intensifica a questão agrária. Portanto, a
luta somente pode será superada pela sua realização seja
como ocupação de terra ou como uma política de reforma
agrária. A diminuição das ocupações por meio
da criminalização não representa superação
do problema agrário, mas uma outra forma de intensificá-lo, de
aumentar a intensidade do conflito. Na realidade as famílias sem-terra
existem e a terra existe. A questão é saber até onde o
novo mundo rural vai resistir à esta realidade.
________________
Artigo elaborado a pedido da Comissão Pastoral da Terra para
publicação no Caderno de Conflitos Brasil 2001.
[*]
Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade do Estado de
São Paulo (UNESP), campus de Presidente Prudente, autor do livro
"Brava Gente".
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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