por Pedro A. Ribeiro de Oliveira
[*]
Aproximando-se o final do primeiro ano do governo Lula e elaborado o
orçamento da União para 2004, já é possível
definir as grandes linhas políticas do seu mandato. A menos que ocorram
fatos hoje improváveis como uma revolta popular similar à
da Bolívia, ou uma grave crise externa ele deverá
pautar-se pelo projeto político de
crescimento econômico.
Anunciado desde o período eleitoral como condição
indispensável à mudança de rumo na História do
Brasil, ele tornou-se agora fim em si mesmo. Procuramos, nesta
Análise,
discernir (i) o que embasa essa opção e suas
conseqüências, (ii) as reações dos movimentos sociais
e (iii) suas implicações na política externa. Noutro
tópico apresentamos uma apreciação de temas em destaque no
Congresso Nacional.
CRESCIMENTO ECONÔMICO:
O PROJETO PRAGMÁTICO DO GOVERNO LULA
Ainda bem antes da posse, a
fuga de capitais provocou uma gravíssima crise econômica,
prenunciando a enorme dificuldade do Presidente Lula para governar o
país. Para conquistar a confiança do
mercado
(ou seja, os detentores do grande capital financeiro, que comandam as
principais transações e negócios do Brasil, inclusive sua
dívida pública), foi preciso nomear um banqueiro provado para a
presidência do Banco Central, aumentar e manter elevada a taxa de juros,
aumentar o
superávit primário
, mostrar firmeza no encaminhamento de reformas que diminuem o déficit
fiscal e, principalmente, assumir a responsabilidade pela recessão
provocada por essas medidas.
Essas medidas, aparentemente emergenciais, não foram revogadas. Elas
configuram, portanto, a manutenção da política
macroeconômica de integração da economia brasileira no
mercado mundial, segundo os preceitos da
globalização
neoliberal. Apesar de evidentes e importantes diferenças, como o
estancamento do processo de privatização de empresas estatais,
uma política externa agressiva em defesa de nossos interesses comerciais
e uma séria e sincera preocupação pela melhoria das
condições de vida dos mais pobres, o Brasil continuará
pagando uma parte substancial dos juros de sua dívida pública por
meio do
superávit primário
.
Isso significa que o Poder Público no seu conjunto (União,
Estados e Municípios) deve arrecadar, em forma de impostos e taxas sobre
pessoas físicas e sobre o setor privado, não só o
suficiente para cobrir todos os seus gastos, como para pagar juros da
dívida. No período Malan FHC isso foi feito por meio da
elevação dos impostos. Usando diferentes artifícios (os
mais evidentes foram a manutenção da CPMF e das faixas do Imposto
de Renda não corrigidas pela inflação), o governo fez
superávit primário
elevando o total dos impostos, taxas e contribuições de 27% para
38% do PIB (estima-se que neste ano essa transferência do setor privado
para o público chegará a 39%). Fica difícil aumentar mais
ainda os impostos, porque essa política agrava a recessão
econômica e favorece a sonegação. Assim, o
superávit primário
tem que advir da economia nos gastos e investimentos públicos, e
é o que o governo Lula tem feito.
A conseqüência é uma recessão maior do que se previa.
A economia nacional, medida pelo PIB, teve um crescimento pífio nos dois
governos FHC e está ainda pior neste primeiro ano de governo Lula.
Diante disso, o espetáculo do crescimento torna-se a
prioridade maior do governo, porque o agravamento da recessão significa
mais desemprego, miséria, deterioração da infra-estrutura,
descontentamento dos setores médios, violência e muitos outros
males sociais. Tudo está sendo feito dentro dos parâmetros do
mercado
para incentivar o crescimento econômico, exceto as medidas que viessem a
contrariar o setor financeiro, como a baixa de juros reais
[1]
e o controle cambial. Neste contexto se explica a liberação dos
transgênicos, cedendo à pressão do setor de
agronegócio. Se essa política tiver êxito, como apontam os
indicadores mais recentes, o Brasil retomará o crescimento
econômico. Diante do quadro econômico tenebroso de 2002, isso
representará um grande êxito para o governo Lula. Devemos,
contudo, examinar seus custos sociais e políticos.
Para cumprir seus compromissos financeiros e manter a atual política
macroeconômica, o governo deve retirar da sociedade brasileira uma parte
substancial do fruto do seu trabalho. Hoje isso significa algo como R$70 mil
milhões [1 euro = 3,3 reais] anuais, que não pagam sequer
os juros da dívida pública (estimados em R$150 mil milhões
em 2003). Numa
perspectiva muito otimista de crescimento econômico anual de 3,5 a 4,5% e
desde que uma eficiente negociação com os credores mantenha os
pagamentos nesse mesmo montante (sem vinculação
obrigatória com o PIB), o governo terá a partir de 2005 mais
recursos para investir na infra-estrutura e em programas sociais. Tudo correndo
bem, o governo Lula poderá imprimir sua marca na História
política brasileira pelo combate à corrupção e
às violações de Direitos Humanos, pelo diálogo com
a sociedade por meio de Conselhos, pelas novas relações
internacionais, pelo apoio à agricultura familiar e, principalmente, por
eliminar a fome de milhões de famílias empobrecidas.
Foi certamente o
pragmatismo político
que impôs ao governo Lula essa opção
[2]
. Fica, contudo, a frustração de quem mais uma vez constata a
força inercial da sociedade brasileira, que uma vitória eleitoral
não consegue mudar. O acesso à terra, ao trabalho, aos bens
econômicos e à participação política continua
controlado por um pequeno mas sempre renovado grupo de ricos
proprietários. Nesse sentido, a discussão sobre a Reforma
Agrária anuncia-se como um teste decisivo para os rumos sociais do
Governo Lula. Os Movimentos Sociais ainda esperam que neste campo ele mostre
sua identidade popular e imprima uma nova direção para o futuro
do país.
A PERSPECTIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS:
O TESTE DA REFORMA AGRÁRIA
Os indicadores econômicos positivos anunciam o fim do período
de vacas magras e a retomada do crescimento industrial. Na
contramão desse otimismo, entretanto, o relatório do Banco
Mundial afirma que a América Latina aprofundou sua
condição de região mais desigual em renda do mundo durante
os anos 90, comprometendo qualquer esforço para a retomada de um
crescimento sustentável. O Brasil, segundo as conclusões do
estudo, continua sendo o mais desigual da região mais
desigual, só perdendo para cinco nações africanas.
Aí estão as duas faces da sociedade brasileira, com o descompasso
entre a opulência financeira e as condições
miseráveis de 20% da população. O mais grave é que
a América Latina não saiu do lugar, em termos de pobreza e
desigualdade, nos últimos 50 anos, quando houve ciclos de
forte expansão econômica e recessões; modelos de
crescimento baseados no consumo interno ou nas exportações;
intervenções do Estado e reformas liberais; ditaduras e
democracias. Essas mudanças não modificaram em nada a
situação de nenhum dos países em termos de
distribuição de renda. Assim, os 10% mais ricos da
região detêm hoje 48% da renda total. Na outra ponta, os 10% mais
pobres ficam com apenas 1,6% do bolo
[3]
.
Visto a partir dos movimentos sociais, o projeto de crescimento pode ser
questionado pela concepção de cidadania, que supõe a
inclusão social de toda a população nos seus
benefícios. Esta não é uma concessão dos
governantes, mas uma conquista que passa, necessariamente, pela força
dos movimentos sociais.
A realização processual da cidadania brasileira o
projeto nacional popular mergulha suas raízes no
século XIX e ganha consistência nos anos 1950 e 60. Abortado pelo
golpe militar de 64, ele volta nos anos 70 com quatro riachos que
convergem para um rio cada vez mais caudaloso: os movimentos estudantis, a
reflexão dos intelectuais, as organizações sindicais no
ABC paulista e a prática libertadora das comunidades eclesiais e das
Pastorais Sociais. A criação da CUT, o nascimento do PT e a
Constituição de 1988 têm aí antecedentes
inegáveis. As eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998
opõem a esse projeto nacional popular o projeto de
globalização
neoliberal, nas três vezes vitorioso, mas os movimentos sociais conseguem
colocar na pauta dos debates nacionais temas como a dívida externa e as
dívidas sociais, a reforma agrária, as terras indígenas e
a corrupção eleitoral. A Igreja contribuiu com as Semanas Sociais
Brasileiras, os Plebiscitos Populares, a mobilização pela Lei
9840, os Encontros de CEBs, Romarias da Terra e da Água, e muitas outras
iniciativas.
Em 2002 o projeto nacional popular canaliza suas forças para disputar a
Presidência da República. A eleição de Lula traz
consigo a memória de 50 anos de organização popular e a
expectativa de retomar a construção interrompida da
cidadania que implica distribuição de renda, retomada do
crescimento com abertura de novos postos de trabalho, reforma agrária,
em suma, a diminuição das desigualdades sociais e regionais. A
grande esperança que venceu o medo é, na verdade, o
somatório das aspirações populares historicamente caladas
e reprimidas.
Após quase um ano de governo Lula, surge agora uma pergunta
incômoda: onde está o projeto nacional popular? Entre a
esperança e o medo, quem venceu quem? Por que o contingenciamento do
orçamento, que ceifa os programas sociais, não se aplica
também aos juros? Por que as reformas que respondem às
exigências do ajuste fiscal recebem toda prioridade, enquanto a reforma
agrária está em segundo plano?
Os movimentos sociais oscilam entre a colaboração com o governo
originário das mesmas lutas e projeto, e o distanciamento crítico
que lhes permite denunciar os problemas da população brasileira e
elevar o nível de conscientização e
organização do povo. Haverá um meio termo? Será
possível colaborar com os esforços governamentais sem se tornarem
suas correias de transmissão e, ao mesmo tempo, continuar fortalecendo
as mobilizações populares? Por trás desta questão,
esconde-se uma avaliação do governo Lula que não é
consensual. Há quem perceba nele um campo de disputa (onde só
quem participa pode influir) e quem o situe em continuidade com o projeto
neoliberal (onde os movimentos sociais não contam). Dependendo da
avaliação, a resposta às perguntas anteriores ganha
diferentes tonalidades.
O Plano Nacional da Reforma Agrária, preparado por uma equipe de
técnicos coordenada por Plínio A. Sampaio e há pouco
apresentado ao Governo, será certamente um teste decisivo, porque, ao
definir a posição do governo em relação a uma
reforma verdadeiramente estrutural, provocará a reação dos
movimentos sociais e dos setores historicamente privilegiados.
O Plano Nacional de Reforma Agrária, tem como meta assentar um
milhão de famílias. A experiência histórica ensina
que não se mexe impunemente na estrutura fundiária que, desde a
Lei de Terras de 1850, tornou a terra acessível apenas a quem pague por
ela. A sua disputa já consumiu muita energia, muita bala e muitas vidas.
Guerras sangrentas, movimentos milenaristas, jagunços e posseiros
têm sido protagonistas dessa luta. O resultado tem sido, de um lado, o
aumento da concentração fundiária e, de outro, a
expulsão do homem do campo, num constante êxodo rural que
só fez inchar cada vez mais as periferias das cidades brasileiras. Mais
recentemente, novos movimentos têm emergido para reclamar o direito de
trabalhar e morar na própria terra, com destaque para o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), entre quase uma centena de
outros.
A luta pela terra toca um ponto nevrálgico da política
agrícola brasileira, onde o agronegócio responsável
por boa parte do superávit da balança comercial relega a
segundo plano os pequenos produtores e a agricultura familiar. Daí que
hoje a reforma agrária implique mudanças também na
política agrícola. Tudo isso torna delicada a
aplicação do Plano Nacional de Reforma Agrária. Como se
comportarão os principais atores dessa guerra não declarada, mas
que já causou 60 assassinatos somente neste ano? Uma atitude
enérgica do executivo certamente abrirá fissuras dentro do
próprio governo e nos partidos da base aliada. A própria
sociedade civil deverá estar consciente de que a reforma agrária
e uma nova política agrícola exigirão muitos
sacrifícios entre os setores hoje bem aquinhoados. Se o Governo e os
Movimentos sociais unirem suas forças, poderão mobilizar o Estado
e a Sociedade Civil em favor do projeto nacional popular e assim canalizar os
recursos econômicos para atender o anseio de cidadania da
população brasileira. Caso, porém, suas forças se
dividam e dispersem, o Brasil continuará refém do
mercado
e suas imposições danosas aos mais pobres.
(...)
Brasília, 27/Out/2003
[*]
Pedro A. Ribeiro de Oliveira é assessor da CNBB para a Comissão do
Laicato e Professor na Universidade Católica de Brasília.
Esta análise teve a participação de Alfredo
Gonçalves, Bernard Lestienne SJ e José Ernanne Pinheiro.
_________
NOTAS
1- A recente decisão do COPON de baixar a taxa SELIC em 1% ao ano deixa a
taxa de juros reais em quase 13%.
2- Nesta conjuntura, cabe lembrar que o ideal do
desenvolvimento
, objetivo nacional inscrito na Constituição, não pode ser
reduzido ao simples crescimento econômico. Também o pensamento
cristão, magistralmente apresentado por Paulo VI na Encíclica
Populorum progressio
, diz que o desenvolvimento deve ser integral, quer dizer, promover todos
os homens e o homem todo (14). Penetrante é sua crítica ao
crescimento como possuir mais: Embora necessário para
permitir ao homem ser mais homem, torna-o contudo prisioneiro no momento em que
se transforma no bem supremo que impede de ver mais além. Então
os corações se endurecem e os espíritos fecham-se
(19). Por isso, o desenvolvimento pede tanto técnicos quanto
sábios de reflexão profunda, em busca de um humanismo
novo, pois o desenvolvimento é para todos e para cada um, a
passagem de condições menos humanas a condições
mais humanas (20). E o Papa aponta essas condições menos
humanas: as carências materiais dos que são privados do
mínimo vital e as carências morais dos que são mutilados
pelo egoísmo. Menos humanas: as estruturas opressivas, quer provenham
dos abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores
ou da injustiça das transações (21). É na
superação dessas condições por meio da
ação solidária em todos os níveis, que o
desenvolvimento se torna, efetivamente, o novo nome da paz (76).
3- Reportagem de Fernando Cazian,
in: Folha de São Paulo
, 08/10/03, pág. B10.
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