"Esta reforma é um ornitorrinco"
por Francisco de Oliveira
[*]
Quando o PT foi constituído, em 1979, o sociólogo brasileiro
Francisco de Oliveira estava entre os seus fundadores. Hoje, passados 21 anos,
acusa o governo do PT ter promovido uma negociata ao fazer aprovar a Reforma da
Previdência que propôs. Trata-se, afirma, de "uma mistura
esdrúxula da coisa mais avançada do capitalismo financeiro com a
coisa mais atrasada do subdesenvolvimento. O país será como um
mamífero que bota ovo", afirmou numa sessão pública
na Universidade de Campinas (Unicamp) dedicada à Reforma da
Previdência.
Segundo Francisco de Oliveira, em sete anos a reforma irá concentrar no
sistema financeiro uma quantia equivalente a pouco mais de 40% do PIB
brasileiro. E acrescenta que até 2010 o dinheiro a ser captado pelos
fundos privados chegará a 670 mil milhões de reais (223 mil
milhões de euros). "Nem mesmo todas as privatizações
realizados ao longo dos últimos dez anos alcançam esse
valor", verifica Oliveira. E conclui tratar-se de uma reforma privatista,
ao serviço do capital financeiro, considerando ser "trágico
que um partido de trabalhadores tenha uma visão de Estado que é
mercadológica".
Esta entrevista foi concedida a Clayton Levi, do Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp Porque o senhor afirma que a reforma da
Previdência é uma grande negociata?
Francisco de Oliveira O objetivo primordial da reforma da
Previdência é de caráter fiscalista. Ela não
está preocupada em ampliar os marcos da segurança social, mas em
restringi-la com o objetivo de fazer caixa. Em segundo lugar, há um
objetivo mais sombrio, que é o de inventar os fundos de
previdência complementar para atender àqueles que têm
salários mais altos que os limites estabelecidos pela emenda
constitucional. Isso significa um mercado riquíssimo de seguros
privados. Algumas simulações mostram que até 2010 esses
fundos de Previdência, a partir da reforma, podem chegar a R$ 670 mil
milhões (223 mil milhões de euros). Aos preços de hoje,
esse valor corresponderia a quase 50% do PIB brasileiro. Se somarmos todas as
privatizações de empresas estatais que foram feitas ao longo dos
últimos dez anos, não dá nem um terço desses R$ 670
mil milhões. Portanto, o que se esconde por trás da reforma da
Previdência são altos negócios. E altos negócios, no
sistema capitalista, não se fazem sem negociata.
JU Mas isso não contradiz a postura histórica das pessoas
que estão no governo, que sempre usaram um discurso de esquerda contra
os interesses do mercado?
Oliveira É uma grave contradição. Um partido de
trabalhadores que é a coluna vertebral deste governo, o que deveria
estar fazendo é ampliar a segurança social. Em primeiro lugar,
por razões de justiça social, razões de cidadania e
até razões econômicas, porque a segurança social
constitui um poderoso regulador dos movimentos erráticos da economia.
Mas infelizmente o Partido dos Trabalhadores, por meio de sua liderança,
escolheu outro caminho. É uma grave contradição.
JU Do ponto de vista econômico, quais seriam as
conseqüências negativas da reforma?
Oliveira Afetará a renda [rendimento, na terminologia portuguesa
- NE] das pessoas. Trata-se de um arrocho [contenção extrema - NE]
salarial disfarçado. Ninguém está falando desse aspecto. A
imprensa não dá nenhuma atenção, mas isso é
um formidável arrocho salarial.
JU Então, a quem interessa essa reforma?
Oliveira De uma ótica fiscalista interessa àqueles
preocupados com o equilíbrio fiscal do Estado. Mas interessa sobretudo
ao capital financeiro, porque se criará um enorme mercado de seguros
privados, que é uma espécie de maná do deserto. Deve ter
sido esse o alimento de Moisés ao atravessar o deserto.
JU O senhor acha que ainda há margem de manobra para alterar
alguma coisa significativa na reforma da Previdência?
Oliveira Sou pessimista. Os deputados estão falando em nome de
quem? Deveriam estar falando pela força eleitoral que a
institucionalidade do sistema partidário lhes confere. Nesse ponto
há um corte. E nesse corte a instituição política
do partido ganha uma autonomia em relação à chamada base
social e não tem quem refaça essa ligação porque a
institucionalidade dá direito ao partido de ser autônomo em
relação à sua base. Ele perde o compromisso e você
não tem como cobrar. O mandato representativo é ao mesmo tempo
delegativo. Uma vez com o mandato, ele age de maneira autônoma. Isso
é fatal para a relação com a base. Exemplo disso é
que os destaques propostos para alterar o texto da reforma foram retirados.
Isso demonstra que não há muita diferença hoje, no Brasil,
entre situação e oposição. Há uma mistura de
interesses.
JU O senhor compara a atual política econômica do governo a
um ornitorrinco. Por quê?
Oliveira A economia periférica capitalista brasileira é um
ornitorrinco. É uma combinação esdrúxula de setores
altamente desenvolvidos, um setor financeiro macrocefálico, mas com os
pés de barro. O ornitorrinco brasileiro não é bem como o
ornitorrinco da Oceania. Ele é uma figura magra, esquelética,
sustentando uma cabeça enorme, que é esse sistema financeiro, mas
com pernas esquálidas e anêmicas, que são a desigualdade
social e a pobreza extrema. Esse ornitorrinco não é como o
subdesenvolvimento, que surgiu de uma singularidade histórica, quando o
capitalismo mercantil alcançou a América, destruindo as
civilizações pré-colombianas, e criando outras sociedades,
chamadas subdesenvolvidas porque não eram um elo na cadeia do
desenvolvimento, mas uma coisa criada pelo encontro do capitalismo com outras
sociedades. O ornitorrinco não é mais isso, porque os
traços originários da sociedade brasileira já
desapareceram ao longo de 500 anos e, portanto, são outros.
JU O senhor também diz que a opinião pública
está sendo manipulada para reforçar a imagem negativa do
funcionário público. De que maneira isso está ocorrendo?
Oliveira As classes dominantes da sociedade brasileira são
patrimonialistas. É uma sociedade que não distingue o
público do privado, o mercado do Estado. Quem se aproveita disso
são as elites e as classes dominantes. Isso gerou um Estado mal
conformado, cujos serviços são precários de fato, uma
macrocefalia, ao mesmo tempo gigante e inoperante. É esta imagem que
chega ao povão. O povão enfrenta filas. A cara negativa do Estado
brasileiro é esta cara medonha que o povo vê. Mas quem o povo
vê? Ele não vê o Estado porque o Estado é uma
abstração teórica. A materialidade do Estado que o povo
vê é o funcionário público que o atende, e às
vezes o atende mal. Então há uma relação de amor e
ódio entre o povão e o funcionário público. A
imagem negativa que se faz do funcionário público é, ao
mesmo tempo, verdadeira e falsa. Verdadeira porque de fato os serviços
do Estado são ruins, os profissionais são estressados e as
instalações são ruins. Mas também é uma
imagem falsa porque estas condições não foram criadas pelo
funcionário público e sim pela forma em que o Estado brasileiro
foi montado e pela predação que as classes dominantes fazem sobre
o Estado brasileiro, como por exemplo destinar 30% do orçamento
público para pagar juros da dívida interna e externa.
JU Em sua opinião, quais seriam as conseqüências da
reforma para a universidade pública caso o texto do governo seja
aprovado sem grandes modificações?
Oliveira No médio e longo prazo a primeira
conseqüência é tornar a universidade menos atraente para
futuros professores. Isso pode desfalcar a universidade de quadros importantes.
Essa conseqüência não vai demorar para aparecer. Outra
conseqüência, mais importante, de longo prazo, é a
incapacidade de dotar a universidade pública dos recursos à
altura dos desafios do presente, desafios de um sistema que é cada vez
mais movido pela ciência e tecnologia. Se nós descuidarmos da
universidade, estaremos indo irremediavelmente para um lugar eternamente
subordinado na divisão internacional do trabalho capitalista. Pode haver
uma regressão. Só quem faz pesquisa científica no Brasil
é a universidade pública. Se tirar isso desaba tudo, porque a
contribuição do setor privado para ciência e tecnologia no
Brasil é ridícula.
JU Qual seria, em sua opinião, o papel da universidade
pública nesse momento de mudanças turbulentas?
Oliveira Nesse momento de transição, a universidade
deveria ajudar a iluminar as possibilidades reais que o povo brasileiro tem
para retomar o crescimento e diminuir as desigualdades sociais, com suas
pesquisas e seus acervos sobre a história brasileira. Isso ajuda muito.
Na questão da energia nuclear, por exemplo, físicos importantes
que atuavam em universidades públicas fizeram a crítica das
opções da energia nuclear durante a ditadura, apontando os
riscos. Angra dos Reis [central nuclear brasileira - NE] está aí
confirmando toda a crítica que se fez naquela época. A
universidade ajuda nesse sentido. A universidade não substitui a
ação cidadã, mas ilumina o campo de estudo e leva à
reflexão porque é o lugar onde se desenvolve o conhecimento.
É a única instituição que tem capacidade de
autocrítica. Sua matéria de trabalho é a dúvida,
é a crítica.
JU O que o senhor quis dizer exatamente ao afirmar que estaria havendo
uma crise de representatividade nos partidos políticos, em especial no
PT, partido do qual o senhor é um dos fundadores históricos?
Oliveira Está havendo essa crise no PT, especificamente. O
partido diz que está representando os trabalhadores. Mas quais
trabalhadores, de quais setores? O PT foi fundado por um movimento sindical que
hoje está muito danificado pela globalização, pela
reestruturação produtiva. Não foi à toa que o setor
sindical que mais cresceu na CUT, por exemplo, foi o dos funcionários
públicos, porque até então eles não tinham sido
muito afetados. A partir de agora, as instituições formadas para
representar esse setor de trabalho serão danificadas. E isso leva a
perder capacidade de representação.
JU Segundo o senhor, essa crise de representatividade estaria gerando
descontentamentos internos no PT, o que daria margem para a
articulação de uma dissidência. Está em
gestação algum novo movimento dentro do PT?
Oliveira Não existe movimento em gestação.
Inclusive, se dissesse isso estaria alvoroçando os caçadores de
bruxas. O que existe é uma crescente insatisfação que
passa por vários setores, incluindo parlamentares, militantes, gente que
não se sente bem, que tem vergonha do que está acontecendo.
Exemplo disso é que na primeira votação da reforma da
Previdência, a Câmara saiu triste. Os deputados estão com a
consciência perturbada, sobretudo aqueles de esquerda e do PT, porque
estão conscientes de que deram uma mancada. Ninguém comemorou a
vitória do governo. Quando os parlamentares aprovaram o
impeachment
de Collor (Fernando Collor de Mello), houve uma explosão de alegria na
Câmara. Dessa vez, não tem alegria nenhuma relacionada a essa
vitória do governo.
JU No que o senhor acha que pode resultar esse descontentamento interno
no PT?
Oliveira Não sei. Seria apostar. Por enquanto não
haverá uma recomposição porque a direção do
partido está tratorando os dissidentes. A curto prazo não vejo
nada. O que vejo é uma coisa subterrânea, uma crescente
insatisfação, uma amargura.
JU Em sua visão, o que teria levado um governo petista a adotar
uma postura que contraria o seu discurso histórico?
Oliveira É uma boa questão e também a coisa mais
difícil a ser elucidada. A gente pode tentar uma solução
fácil, dizer que eles traíram, que foram cooptados pelo grande
capital, e tudo isso também é verdade. Mas a
elucidação completa é muito difícil. Eu desconfio
que há o predomínio de uma nova classe dentro do PT e que isso
influiu poderosamente no partido.
JU E quais seriam as raízes dessa nova classe?
Oliveira As raízes estão na posição a que
certos trabalhadores foram levados, por exemplo, na administração
de fundos de previdência, nas estatais, na administração do
Fundo de Amparo ao Trabalhador, na convivência com
organizações do tipo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social). Isso vai criando uma ideologia comum. Isso consegue
criar um descolamento, porque o trabalhador que exerce a
administração de um fundo fica dividido. E nessa divisão,
quem ganha é o lado administrador de fundos. Isso deveu-se a poderosas
modificações na sociedade brasileira pelo processo de
globalização e sobretudo pelo processo de
financeirização da economia. Isso atingiu camadas de
trabalhadores e os transformou em gestores de fundos capitalistas.
JU Por que essa suposta nova classe interna do PT teria emergido
justamente no momento em que o partido alcança o ponto máximo do
poder?
Oliveira O poder é o momento propício, além do fato
de que você se vê obrigado a administrar uma economia capitalista.
O PT é muito mal preparado teoricamente para administrar uma economia
capitalista. O PT tem especialistas em fundo de previdência e gente que
sabe como administrar isso. Mas quem faz o papel teórico de pensar o
Estado no PT?
JU Isso tem a ver com a sua crítica à ausência de
intelectuais no núcleo duro do governo?
Oliveira Isso poderia parecer um ressentimento por não ter sido
convidado a compor o governo. Devo dizer, de saída, que abomino o poder
e não estou fazendo nenhuma bravata. Quando Luiza Erundina se elegeu
prefeita de São Paulo, uma das primeiras pessoas para quem ela ligou foi
para mim, convidando-me para o cargo de secretário de Planejamento.
Minha resposta imediata foi negativa. Não quero nada com o poder,
não me seduz e estou vacinado contra ele. Mas é
sintomática a falta de intelectuais no grupo do governo. Isso mostra a
oligarquização do partido e uma disputa ferrenha pelo
monopólio da interpretação do governo. Porque intelectual
sempre perturba, sobretudo com os intelectuais que o PT tem.
JU No momento em que um partido de esquerda assume um alinhamento com a
direita, sem oposição, qual seria o futuro da esquerda no Brasil?
Oliveira Diria que é nebuloso. Não tem futuro
previsível porque houve um embaralhamento grande. O PT foi a
formação mais consistente de esquerda que o Brasil conheceu
porque conseguiu fazer confluir vários movimentos que se amalgamaram no
partido. No passado, houve o Partido Comunista que quase chegou a isso porque
tinha massa popular. O partidão chegou a ter 10% dos votos para
presidente em 1945, tinha uma reconhecida influência sobre os sindicatos
e tinha a nata da intelectualidade brasileira. Depois o partidão entrou
num processo de clandestinidade que o levou ao fisiologismo descarado e
às alianças com a direita. O PT repete essa história
triste do partidão. O PT é depositário de uma longa
trajetória da esquerda brasileira. Se ele malbaratar essa
herança, o destino da esquerda estará gravemente comprometido.
JU Ao mesmo tempo em que o senhor diz que o PT estaria malbaratando sua
herança ideológica, todos sabem que vários grupos dentro
do partido estão criticando essa postura. Em sua opinião, o que
pode sobrar do PT?
Oliveira Sobra enquanto máquina partidária. O PT já
é a máquina partidária mais importante do país e
continuará a ser. Isso tem enorme importância porque essas
são as instituições credenciadas para operar na
política. Além disso, o partido tem ramificações em
vários setores da sociedade, ligados a diversos interesses e, portanto,
vai sobrar como partido. Mas como partido transformador duvido que sobre alguma
coisa.
JU Nesse caso, qual o futuro daqueles que pretendem preservar as
raízes históricas do PT?
Oliveira O futuro mais imediato que os aguarda é uma
expulsão. A direção do partido forçará as
pessoas a tomarem outro caminho. A longo prazo, é imprevisível.
Não se cria um partido novo da noite para o dia nem sem bases sociais.
Além disso, nessa sociedade, é cada vez mais difícil criar
um partido político no estilo clássico. Não adianta ficar
como o PSTU [pequeno partido trotzquista - NE] bradando em nome de um
proletariado
que não adere a ele. Os partidos políticos que se criam
são como máquinas.
[*]
Sociólogo, professor titular da Universidade de São Paulo, autor de uma
obra vasta no campo das ciências sociais.
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