As relações do Brasil com o FMI
por César Benjamin
(com Rômulo Tavares Ribeiro)
[*]
1.
Como dissemos na edição do mês anterior, teremos uma
oportunidade de compreender melhor o enigma do governo Lula ao
observar como serão remodeladas as relações do Brasil com
o Fundo Monetário Internacional (FMI). O acordo em vigor, assinado
durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, terminará em
novembro. Raciocinando pelos extremos, poderemos não renegociar nada,
pondo fim a um período de cinco anos de monitoramento contínuo da
economia brasileira pelo Fundo, ou aceitar um novo acordo em bases semelhantes
ao anterior. Entre essas duas possibilidades, porém, há um amplo
leque de opções intermediárias que neste momento parecem
ser mais prováveis.
O FMI diz que o Brasil não necessita de novo acordo, mas acrescenta que
ouvirá com boa vontade qualquer proposta do nosso governo. Nossas
principais autoridades, por sua vez, inclusive Lula e Antônio Palocci,
confirmam que as condições atuais são favoráveis ao
Brasil, que, também segundo eles, não necessita mais do dinheiro
do Fundo. Mesmo assim, completam, só em fins de outubro, de maneira
pragmática e não ideológica, decidirão o que fazer.
Passei parte da minha vida gritando 'não ao FMI', diz Lula.
Agora sei que não se trata de nenhum bicho-papão.
Negociaremos um novo acordo se isso for do interesse do Brasil.
Tentaremos, neste texto, compreender as raízes dessa aparente
indefinição de ambas as partes. Trabalharemos em torno de quatro
aspectos: (a) a mudança do papel do FMI nos últimos vinte anos;
(b) o modelo-padrão dos acordos com o Fundo; (c) a nova fase das
relações entre o Brasil e o Fundo; (d) as propostas já
divulgadas para uma nova negociação.
A MUDANÇA DO PAPEL DO FUNDO
2.
Nos parágrafos finais da análise do mês anterior,
disponível nesta mesma página, situamos alguns aspectos dessa
questão, que agora retomamos do ponto em que paramos.
O FMI é uma criação da Conferência de Bretton Woods,
realizada no fim da Segunda Guerra Mundial. O sistema monetário criado
ali previa que o dólar seria a moeda de referência internacional,
com o Estado norte-americano garantindo sua conversibilidade em ouro, a uma
taxa fixa. Entre o dólar e as demais moedas nacionais haveria um sistema
de taxas de câmbio também fixas (ajustáveis segundo certos
critérios). Nesse contexto, caberia ao FMI abrir linhas de
crédito de curto prazo para países que experimentassem
desequilíbrios externos (comerciais e de serviços), de modo a
possibilitar que ajustassem seus balanços de pagamentos com um
mínimo de prejuízo para os fluxos internacionais de
comércio.
Esse arranjo implodiu no início da década de 1970, quando os
Estados Unidos decidiram retirar-se do tratado, anunciando o fim da
conversibilidade dólar-ouro (tal decisão representou uma
moratória da reserva norte-americana de ouro). Constituiu-se desde
então um novo padrão monetário internacional, hoje em
pleno vigor, também centrado no dólar, mas com moedas sem lastro
e taxas de câmbio permanentemente flutuantes. Nesse novo contexto, em
tese, havendo desequilíbrios nas relações comerciais e de
serviços de um país com os demais, a taxa de câmbio se
valoriza ou se desvaloriza automaticamente, promovendo ajustes sem a
intervenção do FMI. As funções originais, para as
quais o Fundo foi criado, praticamente perderam o sentido.
Depois de um período de incerteza sobre os destinos da
instituição, iniciou-se uma redefinição do seu
papel, sempre sob a direção dos Estados Unidos, que detêm a
maioria das cotas. Nas décadas de 1980 e 1990, o Fundo passou a ser
usado para promover as chamadas reformas estruturais nas economias
periféricas, reformas associadas à construção da
nova ordem neoliberal. Em fevereiro de 1998, Lawrence Summers,
secretário do Tesouro dos Estados Unidos, foi claro a esse respeito,
quando caracterizou o FMI como o mais importante veículo
multilateral disponível para realizar reformas condicionadas nos
países emergentes.
3.
Este ponto precisa ser enfatizado: pelos seus estatutos, o FMI existe apenas
para prover linhas de crédito de curto prazo a países com
dificuldades momentâneas em suas contas externas, de modo a que eles
possam superar esses desequilíbrios temporários. A partir da
década de 1980, porém agindo à revelia desses
estatutos, que não foram alterados , a instituição
passou a ser o veículo multilateral usado pelo governo dos
Estados Unidos para promover reformas neoliberais (ou reformas
condicionadas) nas instituições econômicas, sociais e
políticas dos países periféricos (ou
emergentes), no contexto de construção da nova ordem
internacional. Em vez de lidar com problemas localizados de liquidez, o FMI
começou a promover rearranjos internos, profundos e duradouros, nesses
países. Passou a interferir pesadamente na reorganização
das economias (abertura comercial e financeira, por exemplo) e das sociedades
(reformas nos sistemas previdenciários e trabalhistas, por exemplo),
exigindo medidas que escapam completamente de sua esfera de competência
original.
O processo foi concebido de modo a auto-alimentar-se: maiores graus de
liberalização das economias periféricas, especialmente nos
terrenos comercial e financeiro, tornam essas economias mais vulneráveis
aos movimentos internacionais de capital. Com a abertura da conta de capital
uma das reformas condicionadas a que Lawrence Summers se
referia , o capital financeiro passa a ter um poder avassalador sobre os
Estados nacionais, especialmente os da periferia, pois os movimentos desse
capital, agora liberados, colocam a taxa de câmbio onde ele desejar,
ameaçando assim desorganizar as economias locais. Estas se tornam
crescentemente dependentes do FMI, não só pela possibilidade de
ter acesso aos seus recursos (em troca das condicionalidades), mas
também porque o aval do Fundo passa a ser a principal referência
para orientar aqueles movimentos do capital financeiro.
Assim, uma vez iniciadas, as reformas liberais exigem novas rodadas de reformas
complementares, sempre na mesma direção, apresentadas agora como
inevitáveis. A partir de certo ponto, não há mais
alternativas, como Margareth Tatcher gostava de dizer. Os países
capturados por essa dinâmica, como o Brasil, terminam por encaixar-se
perfeitamente, de forma subordinada, na nova ordem mundial desejada pelos
Estados Unidos.
O MODELO-PADRÃO DOS ACORDOS.
4.
No terreno estritamente macroeconômico, a relação do FMI
com os países periféricos inclui três pontos
inegociáveis:
(a) metas de superávit primário, mesmo às custas de
contrair gastos sociais imprescindíveis, de modo a assegurar a
transferência de recursos da sociedade (via recolhimento de impostos)
para os credores (via pagamento do serviço das dívidas);
(b) políticas monetárias contracionistas, voltadas para reduzir o
consumo e o investimento internos (e, com eles, as importações) e
forçar as empresas a realizar políticas exportadoras mais
agressivas, de modo a gerar os dólares necessários à
solvência externa;
(c) plena liberdade de movimentação de capitais, para que a
transferência desses recursos ao exterior não enfrente
obstáculos.
Estas políticas formam o núcleo duro das
condicionalidades macroeconômicas impostas pelo FMI. Ele foi preservado
inclusive no recente acordo com a Argentina. (O governo Kirchner conseguiu
recusar o
aumento
do superávit primário e outras exigências repugnantes, que
não fazem parte desse núcleo duro, como indenizar
bancos estrangeiros por prejuízos causados pela ruptura da paridade
peso-dólar e aumentar os preços de serviços
públicos prestados por empresas estrangeiras que participaram dos
programas de privatização.)
A NOVA FASE DAS RELAÇÕES ENTRE O BRASIL E O FUNDO
5.
Em relação à análise do mês anterior, as
principais alterações relevantes para o nosso tema são uma
revisão para cima na expectativa de saldo comercial (de US$ 17 mil
milhões para US$ 20 mil milhões) e projeções mais
otimistas do Banco Central sobre a nossa possibilidade de fechar sem maiores
problemas o balanço de pagamentos em 2004. Assim, no que diz respeito ao
acordo com o FMI, as perguntas são quase óbvias. Se está
afastada a hipótese de uma crise que possa conduzir a uma
moratória de pagamentos externos, por que ainda se discute a
renovação do acordo? Por que esta questão não
é simplesmente superada, com o Brasil retornando à
situação normal, sem tutela? Por que, nesse debate, ambas as
partes comportam-se com tanta ambigüidade?
Embora menos óbvias, as respostas são claras. As
relações entre o Brasil e o Fundo estão transitando para
um novo estágio, ainda em via de consolidação. O que
caracteriza esse novo estágio é o seguinte: as condicionalidades
tradicionais, impostas pelo Fundo, já foram completamente
internalizadas, expressando-se agora em leis brasileiras e coincidindo com
opções internas de política econômica. Senão,
vejamos:
(a) o superávit primário, que era de 3,75% do PIB no governo de
Fernando Henrique, foi aumentado por Lula para 4,25%, enquanto os gastos
sociais, que correspondiam a 2,59% do PIB, foram reduzidos para 2,45%; essas
decisões não dependem mais de negociações com o
Fundo, pois foram incorporadas à Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) que está em vigor até 2006;
(b) como mostraremos adiante, a adoção de políticas
monetárias contracionistas é uma decorrência natural do
regime de metas de inflação, considerado parte essencial do
modelo macroeconômico adotado por nosso governo;
(c) a plena mobilidade de capitais está assegurada pela autonomia de
fato do Banco Central, chefiado por Henrique Meirelles, um homem de
confiança do sistema financeiro internacional; o governo Lula tem
anunciado que quer colocar em lei essa autonomia, de modo a torná-la
permanente.
Assim, não são mais necessárias pressões de fora
para dentro, pois não há mais o que negociar nos moldes
tradicionais.
O programa de ajuste estrutural do FMI passou a ser coisa nossa.
É uma vitória extraordinária do Fundo. Por isso a
relação entre as duas partes adquire agora uma qualidade nova,
que ambas começam a construir, tateantes. Da parte do governo
brasileiro, isso permite o seguinte raciocínio: se a política de
arrocho fiscal e monetário será mantida de qualquer forma, por
que não contar com o aporte de recursos do Fundo, embora
desnecessários, oferecendo-se assim maior margem de segurança aos
credores externos? Ou seja, se pagaremos de qualquer forma os custos da
política do FMI, pois já internalizamos essa decisão, por
que não devemos buscar a benesse dos seus recursos?
6.
Dos três itens acima apontados, apenas o segundo a
permanência de políticas monetárias contracionistas
exige algum comentário, pois os demais são auto-explicativos.
Vamos a ele. No modelo atual de gestão macroeconômica, o Banco
Central assume com o governo o compromisso de atingir determinada meta de
inflação. Esta passa a ser sua atribuição
única e exclusiva. Isso quer dizer que a inflação é
considerada um fenômeno exclusivamente monetário, aspecto
essencial da teoria econômica ortodoxa. Qualquer inflação
seja de demanda, inercial ou de custos passa a ser tratada com
doses cavalares de juros, praticamente o único instrumento
disponível no arsenal de medidas do Banco Central, mesmo quando essas
doses não obtêm quase nenhum efeito sobre a própria
inflação (como no caso dos preços administrados) ou
apresentam efeitos colaterais seriíssimos sobre a sociedade como um
todo.
Comprometido apenas com metas de inflação, o Banco Central se
desobriga de levar em conta problemas de crescimento e emprego. Qualquer
repique da inflação ou qualquer possibilidade de crise cambial
produz novo aumento nas taxas de juros, o que, por sua vez, exige metas maiores
de superávit primário. Garantindo-se, adicionalmente, elevado
superávit comercial e câmbio flutuante, minimiza-se o risco de
crise nas contas externas, ao custo de manter acionados os mecanismos que
reproduzem recessão.
A política monetária passa a ser manejada sem nenhuma
consideração aos indicadores da economia real e da crise social.
Adquire, por sua lógica interna, o forte viés contracionista que
o FMI sempre recomendou, pois
a taxa de crescimento do PIB passa a ser uma variável de ajuste
. As demais instituições do Estado responsáveis,
por exemplo, por políticas industriais, científicas e
tecnológicas, ou por políticas sociais fortemente multiplicadoras
de renda e emprego, como habitação e saneamento precisam
adaptar-se a um ambiente macroeconômico inimigo do gasto público e
do crescimento.
Por isso, as previsões sempre se mostram otimistas, e o crescimento
é sempre adiado para o ano que vem. O crescimento de 2003, por exemplo,
deveria ser de 5%, segundo as previsões da LDO de 2001; de 4,5%, segundo
a LDO de 2002; de 4%, segundo a LDO de 2003; de 3,5%, segundo a LDO de 2004,
feita já durante o governo Lula. Hoje se espera uma taxa de 0,5%,
considerada muito boa pois acima de zero! pelo
impagável ministro Palocci. (Como a população do
país cresce cerca de 1,5% ao ano, a sociedade empobrece sempre que a
capacidade produtiva cresce abaixo desta taxa.)
7.
Os riscos políticos dessa trajetória são evidentes, pois
com o tempo a sociedade se cansa e passa a exigir maior atenção
aos seus problemas sociais. Fernando Henrique Cardoso que o diga. Por isso Lula
tornou-se insubstituível, ao conquistar a confiança do sistema
financeiro internacional, aceitando sua agenda, e ao apresentar-se como o
político mais capaz de evitar ou, pelo menos, adiar uma
crise social interna de conseqüências imprevisíveis.
Isso vem sendo crescentemente reconhecido pelos conservadores. O Brasil
continuará sendo usado pelo FMI como o seu melhor modelo atual de
sucesso e, se for necessário, a entidade não deixará de
aportar recursos para manter essa situação, dizia o
editorial do jornal
Valor Econômico
em 15 de setembro. No mesmo dia,
O Estado de S. Paulo
escrevia: Não faz diferença alguma colocar 'metas sociais'
no novo acordo. Por que, então, o governo Lula pensa em
incluí-las e o FMI, em aceitá-las?
Marketing
dos dois lados. O governo Lula poderia apresentar o programa como um 'acordo
do PT'. E o FMI, sempre acusado de deixar seus clientes na miséria,
poderia exibir ao mundo sua nova face social. (...) É capaz de o FMI
mandar colocar uma estátua de Lula no imenso saguão central de
sua sede, em Washington.
É importante entendermos por que a imprensa conservadora tem toda a
razão, a ponto de exprimir-se com tanta desfaçatez e crueza.
Vamos por partes, analisando em separado as medidas inovadoras que o governo
vem anunciando como mais prováveis em um eventual novo acordo com o FMI.
AS PROPOSTAS JÁ DIVULGADAS.
8.
A primeira delas é um tratamento mais flexível aos investimentos
das empresas estatais, hoje considerados como gastos (com exceção
da Petrobras) e, como tal, sujeitos ao contingenciamento geral. Na absurda
regra atual, se a Eletrobras tem lucro de R$ 1 mil milhões e o
reinveste, modernizando e expandindo o setor elétrico, isso é
considerado fonte de déficit; se recolhe esses recursos ao Tesouro e os
esteriliza, deixando o sistema elétrico sem investimentos novos, ajuda a
atingir a meta de superávit primário, necessário para
pagar os juros da dívida interna. Nossas autoridades acenam com uma
renegociação desse aspecto. Porém, como vimos, o governo
Lula, por sua própria iniciativa, sem que o FMI o exigisse, aumentou a
meta de superávit primário para 4,25% do PIB e inscreveu essa
meta na Lei de Diretrizes Orçamentárias em vigor até 2006.
Se o FMI aceitar retirar a contribuição das empresas estatais
para a formação desse superávit, restará ao governo
dois caminhos: elevar impostos (o que parece politicamente inviável) ou
retirar mais recursos de outras áreas para cobrir a diferença. O
resultado líquido, do ponto de vista dos gastos públicos,
será nulo.
Um segundo ponto que tem sido sugerido é o fim da
proibição também absurda de que o BNDES e a
Caixa Econômica financiem o setor público. Mas, independentemente
de qualquer acordo com o FMI, os limites a esse financiamento já foram
internalizados na legislação brasileira, mais especificamente na
Lei de Responsabilidade Fiscal, de modo que também neste caso o Fundo
pode arrefecer a pressão de fora para dentro, sem que sua
política venha a ser substancialmente alterada.
A terceira idéia do governo Lula é escandalosa: inserir
metas sociais no novo acordo. Passaríamos a estar
constrangidos, de fora para dentro, por condicionalidades positivas
em torno de temas completamente estranhos aos estatutos do Fundo e que dizem
respeito, única e exclusivamente, à política interna do
nosso país. Nem Fernando Henrique imaginou tamanha
demonstração de vassalagem: uma agência controlada pelo
governo dos Estados Unidos e sempre preocupada com as condições
de pagamento aos credores internacionais passaria a orientar e monitorar nossa
política social. Das duas, uma: ou o FMI apenas referendaria as metas
sociais do governo Lula (e, neste caso, a negociação seria uma
pantomima) ou definiria outras metas. Como, havendo novo acordo, ele
estabelecerá as metas que afetam as questões externas,
terá assumido plenamente o governo do Brasil! Com o mesmo agravante da
hipótese anterior: qualquer meta social adotada sem que se altere o
superávit primário implicará cortes de outras despesas
que só poderão ser despesas sociais, as únicas que
permitem esse manejo. Assim, o governo anunciará, com pompa e
circunstância, novas metas sociais que serão financiadas... com o
corte de outras despesas sociais!
9.
Estamos oscilando, como se vê, entre a tragédia e a farsa. Dando
seqüência às suas recorrentes tentativas de desmoralizar a
esquerda, Lula agora diz que sempre gritou Não ao FMI! como
um jargão ideológico vazio e irracional. Isso é problema
dele. Da nossa parte, continuamos dizendo o mesmo não,
sabendo porém exatamente o que dizemos. Como sempre soubemos.
2 de outubro de 2003
[*]
César Benjamin é autor de
A opção brasileira
e coordenador do sítio web
Outro Brasil.
O original encontra-se em
http://www.outrobrasil.net
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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