Boas intenções e pequenas idéias não bastam
A dependência externa e a hegemonia do capital financeiro se expressam,
no campo do pensamento, em duas características especialmente perversas:
a incapacidade de vislumbrar uma agenda própria de desenvolvimento e a
tirania das questões de curto prazo. Juntas, elas formam uma
herança intelectual que o ciclo neoliberal tornou muito pesada. Nossa
sociedade perdeu a capacidade de reconhecer as questões realmente
relevantes aquelas que fazem história e de organizar-se
para enfrentá-las.
Um dos maiores desafios que temos é o de sair dessa ratoeira.
Precisamos, é claro, enfrentar as vicissitudes do momento, expressas
principalmente nos constrangimentos macroeconômicos, porém de
forma a nos libertar delas rapidamente, para desenhar uma nova agenda nacional.
Para isso, uma boa gestão de governo não basta; tampouco bastam
ações espetaculares, midiáticas, tão a gosto dos
nossos políticos. É preciso recuperar a capacidade de ter grandes
idéias e realizar iniciativas ousadas. Temos de nos livrar da cultura do
não pode, ou não dá para fazer.
As condições essenciais para preparar esse salto, entre
nós, ainda estão por criar-se; são de natureza
política (projeto próprio e vontade) e cultural (identidade clara
e auto-estima elevada). Grandes países periféricos, como os
Estados Unidos do século XIX e a China do século XX, já
enfrentaram esse tipo de desafio, cada um ao seu jeito, e só obtiveram
êxito quando ousaram recusar o lugar que lhes fora atribuído pela
ordem internacional de seu tempo. Pagaram os custos associados a tal
decisão. Sofreram pressões. Cometeram erros e aprenderam com
eles. Ao fim e ao cabo, conseguiram sair da condição
periférica.
Entre outras coisas, isso exigiu enorme esforço para dominar a
ciência e a técnica universais, de um lado, e identificar as
especificidades e vantagens comparativas locais, relacionadas à natureza
(ou recursos) e à cultura (ou potencial de ação humana),
de outro. Processos de desenvolvimento sempre exigem essa
combinação. Como pensar isso no Brasil contemporâneo, tendo
em vista nossa inserção na sociedade do conhecimento do
século XXI, sem perder de vista o que somos? Como organizar um projeto
coerente em ciência e tecnologia, que dê suporte a um projeto
nacional mais amplo? Sugiro atenção em cinco grandes grupos de
questões, que não por acaso convergem para um dos
desafios geopolíticos mais delicados da nossa realidade atual.
O petróleo poderá esgotar-se ainda na primeira metade do
século. A alteração da matriz energética é
um problema mundial, extremamente complexo, e decisivo para a
reorganização do poder a médio e longo prazos. As maiores
possibilidades de enfrentá-lo estão nos trópicos,
através do desenvolvimento de formas, hoje embrionárias, de
utilização das fontes renováveis representadas pelo Sol
(energia primária) e a biomassa. Depois de Xingó, nenhuma
hidrelétrica de grande porte pode ser construída no Nordeste,
onde a insolação é mais que abundante; a baixa
eficiência dos atuais conversores de energia solar representa um desafio
científico que precisaríamos enfrentar. Ainda nessa área,
um segundo desafio importante para um país tropical de grandes
dimensões é o conhecimento detalhado do mecanismo, ainda bastante
obscuro, de armazenamento biológico da energia solar, ou seja, da
síntese dos hidratos de carbono no processo de fotossíntese,
muito mais intenso nos trópicos; quem o conhecer bem e conseguir
torná-lo mais eficiente abrirá novas perspectivas. Um terceiro
desafio diz respeito aos combustíveis líquidos. Com um
esforço que está ao nosso alcance, o Brasil poderia consolidar
uma dianteira significativa no aproveitamento energético da biomassa, em
nível mundial. Resolvidas algumas questões técnicas
residuais, a utilização de palmeiras nativas, como o dendê
e a pupunha, pode produzir em torno de 12 toneladas de óleo de alto teor
calorífico por hectare (70% mais energia por área plantada que o
álcool produzido a partir da cana-de-açúcar). O
óleo vegetal assim obtido é o único combustível
renovável conhecido capaz de substituir o diesel. Estima-se que o
plantio de árvores leguminosas, mescladas com palmeiras, em 35% da
área amazônica
já desflorestada
poderia sustentar uma produção de óleo suficiente para
substituir todo o diesel que usamos.
O segundo vetor em que poderemos produzir o nosso próprio salto é
nas condições de sustentabilidade da produção
agrícola. Trata-se de outro problema que será central no
século XXI, diante do esgotamento, em curso, do modelo baseado na
utilização intensiva de insumos químicos e venenos. Para
dobrar a produção mundial de alimentos foi necessário
multiplicar por 9 a aplicação de fertilizantes e por 32 a de
pesticidas, com a conseqüente destruição de solos, o aumento
da poluição e o consumo exagerado de recursos e de energia, cada
vez mais escassos. A alternativa mais promissora parece ser o desenvolvimento
de linhagens de microrganismos que fazem a fixação
biológica do nitrogênio (FBN) atmosférico, eliminando a
necessidade de fertilizantes nitrogenados. O Brasil tem condições
de assumir a liderança mundial no desenvolvimento da FBN, que
poderá vir a ser a chave de uma futura agricultura sustentável e
de alta produtividade. Não só detém a
capacitação necessária (as variedades de soja selecionadas
aqui são as únicas no mundo que têm alta produtividade sem
a necessidade de aplicação de fertilizantes nitrogenados, e a FBN
aplicada à cana-de-açúcar foi decisiva para a
aplicação do Pró-álcool), como também as
condições ambientais mais propícias. O balanço
energético da FBN no ambiente brasileiro é altamente positivo,
enquanto nos países frios do Norte fica em torno do valor,
economicamente inviável, da unidade.
Um terceiro exemplo diz respeito às chamadas biotecnologias, que
são a nova fronteira para onde diversos ramos industriais, como o de
fármacos, tende a migrar. O auge da indústria farmacêutica
tradicional ocorreu entre as décadas de 1930 e 1970, com sucessivas
descobertas de compostos químicos e antibióticos. Desde a
década de 1980 o ritmo de inovações diminui
consideravelmente, muitas patentes importantes caducam, a
capacitação tecnológica de novos países aumenta,
tudo isso provocando queda na rentabilidade do setor. Daí o
esforço, dos países desenvolvidos, para abrir e controlar um novo
ciclo, inclusive por patenteamento de seqüências modificadas de ADN.
A emergência da problemática da biodiversidade deve ser
compreendida no contexto do surgimento desse ciclo de inovações,
com a genética e a biologia molecular passando da condição
de ciências básicas para a de ciências aplicadas. A
informação genética em estado natural permanece sendo sua
base fundamental, pois o homem não cria genes, apenas os maneja.
É principalmente como estoque de matéria-prima para as
biotecnologias que a biodiversidade assume um caráter
estratégico, tornando-se a questão que evidencia hoje, com
particular clareza, os nexos entre ciência, tecnologia, meio ambiente e
geopolítica. Cerca de 60% do estoque de material genético do
planeta estão concentrados na Amazônia.
Ao lado desse estoque, a água doce tenderá a ser o principal
recurso natural do futuro, pois começa a escassear e é o
único recurso que jamais poderá ser substituído. A
água é a miraculosa molécula da vida grande parte
do nosso corpo é feito com ela , de modo que substituí-la
corresponderia a reinventar a própria vida, o que está muito
acima da nossa imaginação. A América do Sul detém
reservas hídricas gigantescas, concentradas principalmente no Brasil.
Nossa matriz energética, de natureza basicamente hidrelétrica,
multiplicou grandes reservatórios por todo o território,
passíveis de múltiplos usos. Na Amazônia, a cobertura
vegetal comanda um mecanismo que recicla 6 a 7 mil milhões de toneladas
de água doce por ano. Para ficarmos apenas no problema da
alimentação, a calha central do rio Amazonas, seus grandes
afluentes e os lagos de várzea poderão ser transformados na mais
importante fonte mundial de proteína animal de alta qualidade e de baixo
custo, através de uma piscicultura organizada e sustentável, com
o manejo racional das 2 mil espécies de peixes e outras tantas de
crustáceos que vivem ali, confinadas pela própria natureza, e
cujos ciclos biológicos precisam ser melhor conhecidos. A fertilidade
das áreas de várzea pode transformar a região em grande
produtora de outros alimentos.
Por fim, como não existem doenças parasitárias nos
países mais ricos, de clima frio ou temperado e como, mesmo no
Terceiro Mundo, elas atingem principalmente as populações mais
empobrecidas , até hoje não se desenvolveram mecanismos
eficazes para seu controle. Apesar disso, do ponto de vista científico,
já estão bem estabelecidos os princípios que podem levar,
em curto prazo, à produção da vacina contra a
malária, que abriria o caminho para vacinas contra as demais
doenças parasitárias. Calejadas pela experiência da luta no
Vietnã, as forças armadas dos Estados Unidos financiam hoje o
grupo de ponta nessa pesquisa, em Nova York, liderado por um casal de
cientistas brasileiros que não encontrou boas condições de
trabalho aqui. O desenvolvimento de uma medicina e de uma poderosa
indústria farmacêutica ligadas aos problemas do Terceiro Mundo
é outro campo científico e tecnológico em que o Brasil
pode assumir posição de destaque.
Não por acaso, as linhas de pesquisa apontadas têm
relação direta, embora não exclusiva, com o potencial da
região amazônica, cuja plena integração constitui um
desafio estratégico para o Brasil. Já no século XX
recentemente, pois , pela obstinação e o talento de Rio
Branco, obtivemos o direito jurídico sobre a região, que
representa cerca da metade do nosso país. Mas não desenvolvemos
um modo de ocupação adaptado às condições e
à potencialidade da floresta tropical úmida, ali amplamente
dominante. Por não o termos desenvolvido, mantivemos frouxamente ligados
ao conjunto do território enormes extensões, praticamente
desabitadas e, mais recentemente, agredidas por uma exploração
predatória e irracional. Tampouco povoamos nem estruturamos de forma
suficientemente firme as fronteiras externas ali. As pressões
demográficas e econômicas internas, mas, principalmente, o aumento
da importância da região no mundo atual por seu potencial
hídrico, energético, alimentar, mineral e genético ,
renovam e apressam o velho desafio.
No início do século XX, o petróleo era o recurso mais
importante, e suas maiores jazidas estavam depositadas no Oriente Médio.
A história dessa região nos cem últimos anos com
guerras intermináveis, ocupações estrangeiras,
modificações de fronteiras, extinção e
criação de países testemunha como é
explosiva a combinação de recursos estratégicos e
sociedades fracas. O ciclo do petróleo está chegando ao fim.
Inicia-se o ciclo da biodiversidade, da água doce e da
criação de uma nova matriz energética, baseada em fontes
renováveis. Aparece, de novo, a antiga assimetria entre países
detentores de poder (científico e técnico, político,
financeiro e militar), de um lado, e países detentores de estoques de
recursos estratégicos para os ciclos econômicos em
gestação. A natureza e a história nos colocaram, no
século XXI, nessa segunda condição. A decisão
inadiável de criar uma instituição nacional
poderosa, inteligente, integrada, voltada para incorporar e explorar esse
potencial, teria tanta importância para o nosso futuro quanto tiveram,
nas décadas de 1940 e 1950, as decisões de criar a Companhia
Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras.
Precisamos criar uma Petrobras da Amazônia, que coordene o
trabalho de botânicos, zoólogos, biólogos,
geógrafos, geólogos, metereologistas, virologistas, especialistas
em engenharia genética, engenheiros florestais, agrônomos e
dezenas de outros tipos de especialistas, em grande número, capazes de
inventar trabalhando junto com as populações locais
um modelo inteligente, moderno e sustentável para o desenvolvimento da
região e o aproveitamento dos seus recursos. Além disso, no
contexto da edificação de um projeto comum de
cooperação e desenvolvimento, é urgente que o novo governo
brasileiro proponha, aos demais países da bacia amazônica, um
tratado que impeça a presença de tropas militares estrangeiras na
região. Isso só será possível, é claro, se
nós mesmos não dermos o mau exemplo de entregar o controle da
base de Alcântara aos Estados Unidos.
Tudo isso exige, como disse acima, a criação de um novo ambiente
político, cultural e ideológico, no qual possamos nos libertar
das agendas impostas de fora para dentro e dos condicionamentos do curto prazo,
voltando a pensar a perspectiva da nação em uma temporalidade
estendida. Um ambiente que nos permita identificar e enfrentar as novas grandes
questões, que já estão colocadas. Se não fizermos
isso, o ciclo neoliberal embora derrotado nas eleições
não será de fato encerrado.
[*]
César Benjamin integra a coordenação nacional do
Movimento Consulta Popular e é autor de
A opção brasileira
(Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998, nona edição). O
original deste artigo encontra-se na revista brasileira
Caros Amigos
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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