por Samuel Pinheiro Guimarães
[*]
1- Os defensores da participação do Brasil nas
negociações para a formação de uma Área de
Livre Comércio das Américas, a ALCA, ficam especialmente
preocupados e irritados com a possibilidade de o Brasil vir a se retirar dessas
negociações. Apresentam, em seu entusiasmo pan-americanista,
argumentos diversos para que o Brasil permaneça nas
negociações, os quais merecem análise e resposta.
2- O primeiro desses argumentos é de que ainda não se sabe o
formato final dos compromissos da ALCA e que, portanto, é
necessário negociar para criar uma ALCA favorável ao Brasil. Este
argumento é parente próximo, mas certamente não igual
àquele que afirma Outra ALCA é possível'.
3- Sabemos, com absoluta certeza, que a ALCA será um esquema de
integração muito mais amplo e complexo do que um acordo
tradicional de livre comércio, pois incluirá normas que
determinarão não apenas o livre comércio de bens e de
serviços, mas também a desregulamentação total dos
investimentos estrangeiros; o livre acesso a compras governamentais; o
tratamento mais favorável às empresas detentoras de patentes; a
defesa comercial e, finalmente, regras privilegiadas sobre a
solução de controvérsias entre Estado e investidor
estrangeiro.
4- Ora, 88% do PIB total das Américas corresponde ao conjunto dos
países do NAFTA. Certamente, os três países que
compõem o NAFTA, Estados Unidos, Canadá e México,
não modificarão substancialmente as regras tão arduamente
negociadas e aprovadas de sua área de livre comércio para
satisfazer e incorporar a ela os demais 31 países que representam em
conjunto 12% apenas do PIB do Continente, a esmagadora maioria deles em
profunda crise social, econômica e política e, portanto, com
reduzido poder para influir, em seu favor, sobre as negociações.
A ALCA será o NAFTA ampliado, conforme prevê, de certa forma, seu
artigo 2204, e talvez com regras ainda mais favoráveis aos Estados
Unidos, o que eles chamam de NAFTAplus.
5- Os defensores da continuidade das negociações da ALCA
argumentam que, se o Brasil delas não participar, ficará isolado
dos países latino-americanos, dos Estados Unidos e do Canadá, o
que acarretaria graves prejuízos econômicos, pois 70% do nosso
comércio exterior se faz com esses países, podendo inclusive
sujeitar o Brasil a retaliações americanas.
6- Ora, inicialmente, se o Brasil deseja preservar e expandir de forma
verdadeira e consistente suas relações econômicas e
políticas com seus vizinhos sul-americanos (e mesmo com os países
centro-americanos), poderá ampliar vigorosamente os acordos que com
esses países mantêm no âmbito da ALADI e assim, ao
invés de se isolar, o Brasil se aproximará deles, de imediato.
7- Há dois contra-argumentos que se apresentam a esta idéia. O
primeiro afirma que somente se poderia negociar tal ampliação de
acordos em conjunto com os demais parceiros do Mercosul, devido à
existência da Tarifa Externa Comum, a TEC, o que seria difícil,
pois os parceiros do Mercosul resistem à abertura do mercado brasileiro,
pois não desejam sofrer nele a concorrência de empresas de outros
países latinos. O segundo contra-argumento é de que a abertura do
mercado brasileiro, através de acordos tipo ALADI, prejudicaria nossas
empresas, que enfrentariam nova concorrência.
8- Os dois contra-argumentos são frágeis. A TEC hoje em dia
é uma verdadeira peneira, tal o número de
perfurações, i.e. de exceções à
tarifa comum. Segundo, é necessário superar a
situação atual em que o rabo (Argentina, Uruguai e
Paraguai) abana o cão (Brasil), sem qualquer proveito maior para o
cão. Hoje, a política comercial (e a política
econômica em geral) brasileira é refém dos interesses
argentinos, uruguaios e paraguaios (que são distintos dos brasileiros),
sem maior vantagem para o país, pois o poder negociador do Brasil
não se ampliou com a aliança com parceiros que não perdem
ocasião para confrontar as posições brasileiras em todos
os foros, como ocorreu com a Argentina em todo o seu longo período de
relações carnais com os Estados Unidos. É
necessário reorientar a política econômica externa em torno
da meta estratégica central de criar um bloco sul-americano a partir da
abertura controlada, sem exigir reciprocidade, do mercado brasileiro às
exportações dos vizinhos sul-americanos. Acordos semelhantes aos
da ALADI podem ser negociados com os países centro-americanos ainda que
tenham eles mercados insignificantes que diferença nenhuma fariam,
abertos ou fechados, para as exportações brasileiras.
9- O segundo contra-argumento é, para dizer o mínimo, curioso.
Temem as empresas brasileiras a concorrência das modestas empresas
sul-americanas, mas não temem a concorrência devastadora das
megaempresas multinacionais americanas, as maiores e mais dinâmicas do
mundo, que decorreria de nossa participação na ALCA. Segundo,
não faz sentido esse contra-argumento porque os acordos tipo ALADI podem
ser negociados de forma muito mais controlada incluindo a fixação
de quotas etc. Aqueles que tanto desejam a ALCA deveriam aceitar a idéia
de integrar o mercado sul-americano e assim testar a capacidade competitiva de
nossas empresas antes de partir para vôos temerários e fadados
à catástrofe sem volta.
10- A abertura gradual e controlada, sem exigir reciprocidade, para as
exportações de bens efetivamente produzidos (confirmada a
produção por certificados de origem e fiscalização)
nos países sul-americanos seria o instrumento estratégico
político essencial para acelerar a formação de um bloco
sul-americano. É tal a assimetria econômica e tecnológica
entre o Brasil e seus vizinhos que a negociação comercial e
econômica, com exigência de reciprocidade, esbarra na sua pequena
diversidade produtiva e da pauta de exportações.
11- A não participação do Brasil nas
negociações da ALCA e a eventual celebração de uma
ALCA sem o Brasil ou de acordos de livre comércio bilaterais
entre os Estados Unidos e cada um ou alguns dos demais países
latino-americanos não deve assustar o Brasil, em termos da qualidade de
nossas relações econômicas com os Estados Unidos, ou de
nossa posição no mercado daqueles países
latino-americanos. O fato, por exemplo, de o México ter integrado o
NAFTA a partir de 1994 não reduziu as exportações
brasileiras para lá, as quais, aliás, aumentaram. Poderia o
Brasil celebrar com cada um desses países um acordo de livre
comércio com as mesmas condições alcançadas pelos
Estados Unidos e assim preservar nossa posição competitiva.
12- Segundo, são de tal forma variados e importantes os vínculos
e os interesses americanos no Brasil, ocasião e lugar para importantes
oportunidades de investimento e de lucros muito significativos para suas
megaempresas, que não teriam os Estados Unidos jamais interesse em
sancionar o Brasil por não desejar participar de uma ALCA,
nem o direito de fazê-lo porque não há nenhuma norma de
direito internacional que obrigue um país a negociar ou a participar de
um esquema de integração econômica com qualquer
país, norma em que pudessem os Estados Unidos se apoiar. Qualquer medida
retaliatória americana seria facilmente derrotada na OMC onde
teríamos o apoio de todos os países membros, tal sua ilegalidade
e arbítrio. Nossas relações com os Estados Unidos podem
ser bem conduzidas bilateralmente, através de negociações
diretas bilaterais para reduzir obstáculos específicos ao
comércio ou multilateralmente no âmbito da OMC, onde a
posição negociadora brasileira é muito mais forte do que
no âmbito da ALCA, devido aos interesses e ao peso político de
outros países-membros com os quais poderíamos nos aliar.
13- Outro argumento dos defensores da ALCA é de que as
negociações da ALCA seriam a única possibilidade de abrir
o mercado dos Estados Unidos para as exportações brasileiras, em
especial para as exportações agropecuárias, que seriam
altamente competitivas.
14- Este argumento é igualmente frágil, por três motivos.
Primeiro, é possível abrir o mercado americano, de forma
adequada, para os produtos que nos interessam através de
negociações bilaterais ou no âmbito das
negociações da OMC. Muitos dos produtos brasileiros já
entram livres de direitos nos Estados Unidos, inclusive devido ao interesse
americano (como no caso de produtos primários como o café) e
segundo, não nos interessa obter livre acesso permanente para todos os
produtos da pauta, pois muitos deles simplesmente não fabricamos. Os
obstáculos que enfrentam nossos exportadores são localizados,
específicos, agravados pela legislação de defesa comercial
americana, que, aliás, a lei de Trade Promotion Authority (TPA)
determinou que não pode ser objeto de negociação. No caso
dos produtos da agropecuária, os interesses da agricultura americana,
sua representação política no Congresso, as
difíceis relações comerciais agrícolas dos Estados
Unidos com a União Européia e as recentes leis americanas que
mantiveram e ampliaram os subsídios à agricultura e o TPA, que
dificulta ou impede as negociações de numerosos produtos de
interesse brasileiro, como o açúcar e o tabaco, indicam
claramente que a ALCA não é nem pode ser a estratégia
adequada para a expansão do comércio exterior brasileiro.
15- Outro argumento dos defensores da participação brasileira nas
negociações da ALCA é que a ALCA seria, em ultima
análise, poderoso instrumento de desenvolvimento da economia brasileira
e para provar o argumento citam o exemplo do México.
16- Alegam ter a economia mexicana superado a brasileira em dimensão
como resultado do NAFTA. Em realidade, a economia brasileira continua maior do
que a mexicana, medido o PIB pelo método do poder de compra equivalente,
segundo os critérios do Banco Mundial. O fato é que o peso
mexicano está sobrevalorizado e o próprio secretário de
Finanças do México alertou para a severa crise que se avizinha,
caso esta situação permaneça por mais tempo.
17- A economia mexicana é hoje dependente do mercado americano para
cerca de 90% das suas exportações e 80% de suas
importações e, portanto, seu crescimento depende do crescimento
americano. Tornou-se uma economia dependente de um só país quando
o ideal para a estabilidade econômica do processo de desenvolvimento
é a diversificação de fornecedores e de compradores
externos de um país e de sua pauta de exportação.
18- A concentração de renda e de riqueza se agravou no
México, o salário médio real do trabalhador caiu desde
1994, a questão social é gravíssima, segundo
declarações do próprio Presidente Fox e a economia se
desnacionalizou e regrediu industrialmente. Agora, para culminar, as industrias
maquiladoras abandonam o México em direção à
Ásia. Nos últimos doze meses, o México perdeu 25% das
empresas maquiladoras e 500 mil empregos dos 1,2 milhões que
teriam sido gerados pelo NAFTA. É em extremo remota a possibilidade de o
México ter êxito em obter melhores condições de
imigração de seus trabalhadores para o mercado americano,
após o enrijecimento recente da legislação de
imigração dos Estados Unidos. Para finalizar, o México tem
3.000 km de fronteiras com os Estados Unidos, há grande número de
imigrantes mexicanos nos Estados Unidos que remetem divisas para seu
país, há um amplo fluxo turístico com os Estados Unidos, a
mão-de-obra mexicana e barata, conjunto de circunstâncias que o
Brasil não têm e em relação às quais
não pode competir com o México.
19- A natureza dos três desafios que a sociedade brasileira tem de
enfrentar com a maior urgência e eficiência, que são reduzir
com firmeza as disparidades sociais e regionais; eliminar as crônicas
vulnerabilidades externas e realizar o potencial brasileiro, exigem
políticas ativas do Estado na área comercial, industrial, de
emprego, de tecnologia, de orientação do capital estrangeiro, de
desempenho dos detentores de patentes, de promoção agressiva das
exportações e de substituição de
importações, políticas que a ALCA impedirá. Uma
estratégia de desenvolvimento eficaz para o Brasil, um verdadeiro
projeto nacional baseado nas necessidades da sociedade e não nos desejos
das empresas multinacionais e de seus Estados de origem, somente é
possível se o Brasil não participar da ALCA. E, portanto,
não há porque continuar a participar das
negociações, cujo resultado será necessariamente adverso.
20- A não participação do Brasil na ALCA
dificultará (ou impedirá) o apoio financeiro dos Estados Unidos
em caso de crise externa (i.e. de moratória ou default).
Quiçá seja este o argumento econômico final dos defensores
da ALCA e, para demonstrá-lo, lembram o apoio que os EUA deram ao
México quando da crise de pagamentos de 1994.
21- Ora, o fato de o Brasil integrar ou não uma área de livre
comércio com os Estados Unidos, no primeiro caso, não garante e,
no segundo, não impede a ajuda financeira que pudesse vir a obter (se os
tempos fossem outros) dos Estados Unidos ou do FMI, i.e. em realidade do
Departamento do Tesouro americano, para enfrentar uma crise financeira externa
importante.
22- A atual política do FMI e do Governo americano para os países
emergentes em crise econômica externa (que rapidamente se transforma em
crise interna) é não fornecer fundos com o objetivo de evitar o
moral hazard e, ao invés, interferir cada vez mais
diretamente na própria condução da política
econômica, como exemplifica o envio recente de uma equipe de
peritos de alto nível supostamente neutros para assessorar o
Governo argentino na solução da crise e em especial arbitrar o
conflito entre Banco Central e o Ministério da Fazenda. O objetivo
monocórdio é sempre impor políticas de ajuste estrutural
ainda mais rigoroso que levam à explosão social. Os
empréstimos feitos recentemente pelo FMI ao Brasil (US$30 mil milhões)
e ao Uruguai são excepcionais e se verifica claramente, quando se os
compara com a política do FMI em relação à
Argentina, terem como objetivo permitir a saída de
investidores americanos, propósitos eleitorais e de lock in
do futuro Governo em relação à intervenção
do FMI (e dos Estados Unidos) na política brasileira.
23- O exemplo da catástrofe social, econômica e política
argentina (e a própria situação do Brasil) deveria ser um
decisivo alerta para a sociedade e as elites brasileiras sobre o destino cruel
de países que fundamentam sua estratégia de desenvolvimento em
uma suposta disponibilidade excessiva, na realidade sempre passageira, de
capital internacional e na possibilidade de acesso aos mercados dos
países altamente desenvolvidos, em resumo, nos humores voláteis
dos especuladores, na estratégia global das megaempresas multinacionais
e na crença ingênua do fim do protecionismo das Grandes
Potências.
24- Assim, participar da ALCA (e, portanto, das negociações que
levarão a ela) agravará a redução da soberania
brasileira para reformular sua política econômica e retirar o
Brasil da beira do abismo em que a atual equipe econômica o colocou,
situação que, paradoxalmente, esta mesma equipe insiste em louvar
e perpetuar, e agravará ainda mais a debilidade estrutural das contas de
transações correntes do Brasil, dadas as assimetrias entre Brasil
e Estados Unidos, entre as empresas brasileiras e as megaempresas americanas.
25- Para encerrar, os defensores da participação do Brasil nas
negociações da ALCA argumentam que o Poder Executivo tem a
competência para negociar tratados internacionais, que os negociadores
brasileiros são experientes, e que, em último caso, o Congresso
Nacional tem competência para rejeitar o eventual tratado de
formação da ALCA.
26- Se é verdade que a Constituição atribuiu ao Poder
Executivo a competência para negociar tratados internacionais e que todo
tratado implica certa limitação de soberania, certamente a
Constituição não atribui competência ao Executivo
para negociar tratados que firam de forma radical os princípios
fundamentais da República e os princípios que regem as
relações internacionais do Brasil. Como o resultado das
negociações é inconstitucional, pois fere tais
princípios, assim também são, portanto, as
negociações que a tal resultado levam.
27- Que os negociadores são competentes e experientes, não
há dúvida. Todavia, deram a esses funcionários do Estado
uma missão impossível que é a de negociar um esquema de
integração assimétrica radical entre a maior
Potência do mundo e um país subdesenvolvido, o Brasil, em grave
crise, esquema que seja favorável a este último e preserve sua
soberania. Os negociadores são experientes, mas os que formularam e
impõem tal objetivo não o são, pois são os mesmos
que implementaram a política econômica e a política externa
que levaram o Brasil à situação atual de crise permanente,
de subserviência diante das agências internacionais, de
desarticulação institucional, de corrupção em altas
esferas, de violência e marginalidade social.
28- O argumento de que o Congresso pode rejeitar o tratado de
constituição da ALCA é formalmente correto e politicamente
absurdo. À medida em que se passam os anos de negociação,
o texto do acordo vai se cristalizando, o país vai assumindo
compromissos provisórios, o texto final é apresentado como sendo
o melhor possível e o Executivo, comprometido em sua palavra e sofrendo
enorme pressão externa, articula e desencadeia toda sua força
política para fazer o Congresso aprovar o texto final, com o argumento
de que é preciso honrar a palavra do Brasil.
29- Por esta razão, todos os segmentos, setores, classes e
organizações que compõem a sociedade brasileira devem se
mobilizar e solicitar ao Congresso brasileiro que impeça a continuidade
dessas negociações, pois elas levarão inexoravelmente a um
acordo que, de um lado impedirá o enfrentamento com êxito dos
grandes desafios sociais brasileiros e, por outro, reduzirá a soberania
e frustrará a possibilidade de o Brasil, realizando seu potencial, se
tornar uma potência tão importante como qualquer outra, como
permitem seu território, seu povo e o seu capital acumulado.
15/Ago/02
versão preliminar, sujeita a revisão.
[*]
Embaixador brasileiro, ex-chefe do Departamento
Econômico do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) e ex-diretor
do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do
Itamaraty.
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