A trágica experiência do Nafta
Se existe um consenso acerca da bombástica proposta dos EUA de
criação da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA) é de que ela será uma extensão de
outro tratado económico já em vigor: o Nafta
(North American Free Trade Agreement).
As negociações entre Estados Unidos, Canadá e
México para a implantação do Acordo de Livre
Comércio da América do Norte foram concluídas em Dezembro
de 1992. Ratificado um ano depois pelos parlamentos dos três
países, o Nafta passou a vingar de facto em Janeiro de 1994.
O conteúdo do acordo é bastante detalhado, com mais de mil itens
e sub-ítens. Entre outras regras, ele impõe:
"Eliminação tarifária progressiva, até sua
eliminação total em dez anos; regras de origem para garantir que
essa eliminação favoreça os países do Nafta e
impedir que outros se utilizem do acordo como plataforma de acesso ao mercado
da América do Norte; acesso dos sócios do Nafta aos programas de
compras governamentais; abertura do comércio transfronteiriço
para os sectores de serviços, incluindo os financeiros; garantia de
direitos de propriedade intelectual; tratamento diferenciado para os sectores
têxtil, vestuário, automotriz, de energia, agricultura, transporte
terrestre e telecomunicações" [1].
A experiência do Nafta, que já dura mais de oito anos, serve de
estrondoso alerta sobre as trágicas perspectivas que decorrem da
imposição da ALCA a todo o continente americano. Uma
rápida pesquisa confirma que este tipo de acordo de "livre
comércio" beneficia única e exclusivamente as
corporações multinacionais, especialmente as dos EUA, e
representa um duro golpe na soberania das nações, um violento
retrocesso nas normas democráticas e uma brutal regressão nos
direitos sociais. Chama a atenção o quase silêncio da venal
comunicação social brasileira e mundial na difusão dos
já tão sentidos efeitos perversos do Nafta.
DESEMPREGO NOS EUA
Nem mesmo os trabalhadores norte-americanos, que aparentemente seriam
favorecidos com o crescimento da economia, têm o que comemorar com a
vigência deste acordo. Várias pesquisas indicam que os
únicos beneficiados são as gigantescas corporações
empresariais. "Os benefícios foram em tal escala que, já em
1994, economias da ordem de US$ 16 mil milhões puderam ser feitas pelas
grandes corporações apenas com gastos em mão-de-obra.
Actualmente, os números são muito maiores", garante o
especialista Gilberto Dupas [2].
Já para os assalariados, o resultado foi o aumento de desemprego, queda
de rendimentos e precarização do trabalho. Estudos de sindicatos
e ONGs norte-americanas comprovam que, entre 1994-2000, o Nafta eliminou 766
mil empregos nos EUA. "Muitas companhias mudaram-se para o México
para tirar proveito dos salários de 5 dólares ao dia pagos aos
trabalhadores. Sem direitos trabalhistas e sindicais, os mexicanos não
se podem organizar para aumentar seus salários. Os trabalhadores dos EUA
hoje encontram trabalho com menos segurança e salários que
equivalem a 77% do que originalmente recebiam" [3].
Noam Chomsky, conceituado intelectual norte-americano, foi um dos primeiros a
alertar sobre os riscos do Nafta para os próprios trabalhadores de seu
país. Conforme demonstrou, o acordo só seria viável para
as corporações com a elevação do desemprego nas
matrizes. Mão-de-obra barata e outras regalias no México eram a
sua razão de existência. Tanto que várias
corporações, como GE, GM e Ford, já apresentaram os seus
planos de reestruturação industrial em outros termos, de
demissões antes mesmo do início da vigência do
Nafta. Além do fluxo de empregos, Chomsky previu a violenta queda de
rendimentos nos EUA. "O pressuposto dos baixos salários do
México pode ter um efeito gravitacional sobre os saldos dos americanos.
Isto é aceito, inclusive, pelos defensores do Nafta, que reconhecem que,
fora os trabalhadores especializados, o restante está exposto a ter
salário mais baixo" [4].
Esta deterioração das condições de vida dos
trabalhadores norte-americanos inclusive ajuda a entender a mudança de
postura da poderosa central sindical do país, a AFL-CIO. Famosa por sua
longa trajectória conciliadora e pró-imperialista, ela vem
adoptando nos últimos anos um comportamento mais activo em defesa dos
assalariados e dos desempregados, inclusive do enorme contingente de imigrantes
latino-americanos. Actualmente, participa de inúmeras
manifestações antiglobalização, como a ocorrida em
Seattle, em Dezembro de 1999, e faz críticas, mesmo que parciais e
limitadas, ao Nafta e à ALCA.
CANADÁ: COLÓNIA DOS EUA
Deixando os Estados Unidos, que desmentem o mito do "paraíso"
do Nafta, ingressamos no Canadá. Neste país, um dos mais ricos do
mundo e há tempos na liderança entre as nações de
melhores índices de desenvolvimento humano (IDH) da ONU, o quadro piora
bem mais. Nos oito anos de vigência do acordo, o Canadá empacou no
seu crescimento económico, tornou-se mais dependente e vulnerável
e assistiu a degradação social e do meio ambiente. Actualmente,
muitos se questionam sobre o futuro do país enquanto uma
nação soberana.
O jornal norte-americano
The Washington Post
, de Setembro de 2000, indagou: "Haverá mesmo um Canadá
dentro de 25 anos, ou o país vai-se tornar, em questões
práticas, o 51º
Estado americano?" [5]. As respostas surgiram durante seminário,
realizado no Royal York Hotel, que reuniu as 200 personalidades mais influentes
do país para discutir o futuro da economia. Para John McCallum,
economista-chefe do maior banco do país, "a possibilidade do fim do
Canadá, ou do Canadá deixar de ter importância, precisa ser
levada a sério".
Já Maude Barlow, líder da influente
Council of Canadians
, foi mais enfática: "Estamos, para todos os efeitos, tornando-nos
parte dos EUA... A luta pela preservação das
características canadianas está, por assim dizer,
terminada". Peter Newman, o principal historiador de negócios do
país, trilhou o mesmo rumo: "Sem que os canadianos notem, a
americanização da economia tornou-se uma realidade nova e
perturbadora". Em artigo na revista Maclean's, em Dezembro de 1999, ele
já havia advertido: "Estamos, no fim do milénio, em vias de
nos tornarmos colónia dos americanos ainda com governo
próprio, mas dependentes do dólar ianque".
O tom da matéria, em especial para um país com tanta riqueza,
parece apocalíptico. Mas os dados da anexação em curso
são contundentes. Segundo o mesmo artigo, actualmente os investidores
canadianos despejam sua poupança no mercado accionário dos EUA e
as firmas norte-americanas já engoliram várias empresas
nacionais. O Canadá de hoje controla uma parcela bem menor da sua
capacidade produtiva (cerca de 70%), inferior à situação
dos outros países industrializados do mundo.
Neste novo tipo de colonialismo, quem sofre são os trabalhadores. Desde
a implantação do Nafta, 276 mil trabalhadores canadenses perderam
os seus empregos. O rendimento per capita no Canadá corresponde
actualmente a menos de dois terços do rendimento nos EUA e analistas,
como McCallum, prevêem que ela abaixará para 50% nesta
década. Como decorrência da falta de oportunidades, cresce o
número dos melhores cérebros que buscam seu futuro nos EUA.
"Nos últimos anos, cerca de 25 mil canadianos mudam-se todo o ano,
em carácter permanente, para o sul, incluindo 1% de contribuintes que
ganham mais de US$ 100 mil por ano, uma parte dos reitores das maiores
universidades e freiras e médicos suficientes para preencher 25% das
vagas nas escolas de medicina e enfermagem do Canadá".
A colonização não se manifesta apenas no terreno
económico. Ela perverte a cultura e os valores nacionais. "Os 80%
de canadenses que falam inglês agora têm preferências iguais
às dos americanos: lêem os mesmos livros, acompanham os mesmos
clubes desportivos e vêem os mesmos programas de TV e filmes. De modo
geral, também comem os mesmos alimentos e compram os mesmos bens,
consumidos cada vez mais nos mesmos restaurantes e retalhistas. E, com a
desvalorização do dólar canadiano, que vale 67 centavos do
dólar americano, pesquisas mostram que a maioria dos canadianos
prevê que precisará trocar suas moeda pelas 'verdinhas' em 20
anos".
Numa outra entrevista, Maude Barlow afirma: "Essa história de livre
comércio é um mito. Dizem que promove a competição,
mas, na verdade, dá condições às grandes
corporações de fazer as regras. Assim, elas podem comprar as
empresas menores e tirar dos países o direito de proteger a
indústria local. Foi o que aconteceu com o Canadá no Nafta. Os
norte-americanos compraram nossas empresas de petróleo, gás,
indústrias químicas. Para a América Latina, será
pior ainda" [6]. Ela lembra ainda que o Canadá teve o maior aumento
da taxa de pobreza infantil em todo o mundo industrializado desde o
início do Nafta. "A economia cresceu, mas toda a riqueza ficou
concentrada num pequeno grupo. Passamos a ter pessoas dormindo nas ruas e
crianças passando fome".
Ela cita o "terrível capítulo 11 do Nafta" como prova
da destrutiva hegemonia do capital. "É um capítulo que
permite a uma corporação processar um governo de outro
país. O Canadá, por exemplo, proibiu a Esso de usar determinada
toxina na gasolina com o argumento de que era tóxica para as
crianças. Se a gasolina fosse feita por empresa canadiana, a
proibição teria valido. Mas, pelo acordo do Nafta, uma empresa
pode processar um país e pedir indemnização se seus lucros
forem afectados por mudanças na lei. A Esso processou o Canadá. O
governo não só voltou atrás como deu US$ 20 milhões
para a empresa e escreveu uma carta pedindo desculpas". Daí a sua
conclusão: "Esse acordo é assassino".
O uso constante do Capítulo 11 é hoje um factor de dolorosa
humilhação do povo canadiano. Recentemente, a
SD Myers
, empresa norte-americana de eliminação de resíduos,
forçou o governo a revogar a proibição de
exportação de produtos perigosos. Além disso, impetrou com
sucesso acção no valor de US$ 50 milhões por perdas
durante a breve vigência daquela restrição. Já a
Sun Belt Water
, companhia de exportação de água da Califórnia,
processou o governo canadiano em US$ 14 milhões por sua
proibição à exportação de água a
granel.
Por pressão do Nafta, a Junta de Energia Nacional foi despojada de seus
poderes e a lei de "salvaguarda de provisão vital", que exigia
que o país mantivesse um excedente de 25 anos de gás natural, foi
desmantelada. Actualmente não existe nenhum órgão do
governo ou lei que garanta que os canadianos tenham provisão adequada de
sua própria energia para o futuro. Curiosamente, os EUA impuseram, no
âmbito do Nafta, uma reserva de 25 anos como necessária para
"fins de segurança nacional".
Todo o sistema de distribuição de gás do Canadá foi
abandonado, dando início a um ciclo frenético de
construção de gasodutos de Norte a Sul. Os impostos de
exportação sobre o fornecimento de energia canadiana foram
extintos, retirando do governo uma rica fonte de receitas e proporcionando aos
clientes norte-americanos preços preferenciais como "clientes
domésticos". O Nafta ainda impôs um sistema de
"participação proporcional" pelo qual o fornecimento de
energia canadiana para os EUA está garantido por tempo indeterminado.
POBRE MÉXICO
Chegamos ao México, pobre México! Se o Nafta já causa
estragos nos EUA e no Canadá, o que dizer da situação do
seu sócio mais frágil! Este país é a maior
vítima deste projecto de anexação das
corporações empresariais e do imperialismo norte-americano.
Apesar de toda a propaganda dos media internacionais, ele não ganha
absolutamente nada com a vigência do Nafta. O processo de
regressão nestes oito anos é avassalador em todos os terrenos.
Nos anos 70, antes da implantação do acordo, a economia mexicana
crescia, em média, 6,6% ao ano. Já nos anos 90, o crescimento
despencou para 3,3%. Agora, com a travagem da economia americana, a
situação degringolou de vez. "O México entrou em
recessão no ano passado. Seu défice na balança comercial
saltou quase 22% e suas exportações encolheram 5%. De resto,
perdeu receita com a queda do preço do petróleo, produto que gera
um terço do seu rendimento" [7]. A previsão do governo
é que a economia cresça apenas 1,7% em 2002.
Todas as maravilhas do Nafta, alardeadas pelos apologistas neoliberais,
mostraram-se um fiasco. Segundo a propaganda, o acordo incentivaria o ingresso
de capital estrangeiro, alavancando o desenvolvimento económico e a
distribuição de rendimento. Mas este milagre não se
confirmou. É certo que houve maior fluxo de capital externo para o
país que atingiu US$ 36 mil milhões entre 1998/2000. Mas,
no mesmo período, o défice em conta corrente, resultado da
remessa de juros e lucros para o exterior, em especial para os EUA, foi de US$
48 mil milhões. "Simplificando os termos: entraram US$ 36 mil
milhões; saíram US$ 48 mil milhões" [8].
Outro desastre no campo económico deu-se com a dívida externa. No
final de 2000, ela já superava os US$ 163 mil milhões, mais do
dobro da sangria em 1982 exactamente quando eclodiu a crise da
dívida externa do México, que abalou o mercado mundial.
Além de elevar a vulnerabilidade externa, o Nafta agravou a
dependência do pais. Antes da sua vigência, o México
mantinha relações comerciais relativamente mais diversificadas,
abrangendo vários parceiros. Hoje, entretanto, o país depende
totalmente dos EUA. De lá provêem 74% das
importações e para lá se dirigem 89% das
exportações do país.
Deste quadro perverso, os cínicos apologistas do "livre
comércio" ainda gostam de frisar o aumento das
exportações como um trunfo do Nafta. Só que eles escondem
alguns factos comprometedores. Essas exportações são
feitas por cerca de 300 empresas, a maioria delas filiais de norte-americanas.
Isto sem falar das maquiladoras, que importam quase tudo do exterior e crescem
às custas da mão-de-obra barata do México 10 vezes
inferior à dos EUA. Somadas, elas são responsáveis por 96%
das exportações mexicanas; os 4% restantes se dispersam entre 2
milhões de pequenas fábricas que ainda não foram
absorvidas pelo capital ianque e que sobrevivem, às duras custas,
à avalanche neoliberal.
A indústria têxtil mexicana, por exemplo, aumentou suas
exportações para os EUA nesta fase; mas, neste ramo, 71% das
empresas são norte-americanas. Segundo vários estudos, para cada
dólar de exportação industrial mexicana para os EUA,
somente 18 centavos provêm de componentes nacionais. Já nas
maquiladoras, para cada dólar exportado, o componente mexicano é
de apenas 2 centavos. O processo de desnacionalização é
violento.
Hoje é até um contra-senso falar em "economia
mexicana". Bastante emblemático desta regressão colonial
é que o actual presidente do país, Vicente Fox, foi gerente da
ianque Coca-Cola. E os golpes não param de se suceder. No primeiro
semestre de 2001, o Citibank comprou, por US$ 12,5 mil milhões, o
segundo maior banco do país, o Banamex. Actualmente, 83% do sistema
financeiro está em mãos de bancos estrangeiros, na maioria dos
EUA. A desnacionalização atingiu o seu cume com o
"entrega" da companhia de petróleo, Pemex, que hoje serve como
fiadora dos empréstimos feitos pelos EUA durante a crise de 1994.
E a devastação não ocorreu somente no sector
manufactureiro. Na agricultura, o cenário é de verdadeira
catástrofe. Em 1982, o México importava US$ 790 milhões de
alimentos; já em 1999, passou a importar US$ 8 mil milhões. De
país exportador de vários produtos agrícolas,
transformou-se num campo minado. Hoje é obrigado a importar dos EUA
cerca de 50% de tudo o que consome. A "livre
competição" com a agricultura norte-americana, que goza de
altos subsídios e conta com uma base técnica mais
avançada, foi fatal para o México. Sob o império do Nafta,
a superfície agrícola plantada foi drasticamente reduzida e 6
milhões de lavradores mexicanos perderam suas terras e suas
ocupações.
Aqui vale citar alguns exemplos. O México era um forte produtor de
arroz. Mas a produção nacional foi substituída pela
importação procedente dos EUA e hoje o país depende desta
para alimentar a sua população. Ele também era exportador
de batatas. Só que elas foram bloqueadas no mercado dos EUA, que
colocaram barreiras fito-sanitárias para impedir o seu ingresso.
Resultado: seu mercado foi invadido pelas batatas norte-americanas. O
país já foi um tradicional exportador de algodão. Hoje,
é um dos maiores importadores dos
States
.
O resumo desta devastação é que hoje o México
encontra-se mais dependente, endividado e vulnerável. Para usar uma
expressão popular, ele está pendurado na brocha! Na
análise sempre instigante de Emir Sader, presidente da
Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), "ao
acoplar seu destino ao dos EUA, aderindo ao Nafta, o México ficou
totalmente submetido ao destino do seu vizinho do norte. Depois da crise de
1994, o país pegou boleia no ciclo expansivo da economia
norte-americana, recuperou seus índices gerais a tal ponto que tem 90%
do seu comércio exterior com os EUA. Seria normal, portanto, que
qualquer espirro ao norte do Rio Grande trouxesse graves
complicações para a margem de baixo do rio... Na segunda parte
dos anos 90, o México foi apresentado como modelo por parte dos
organismos financeiros internacionais funcionando como espécie de
carta de apresentação para a ALCA. Hoje, o México
ameaça transformar-se no seu contrário: o novo epicentro de
crise social aberta das Américas, ou seja, uma carta negativa de
apresentação da ALCA" [9].
INFERNO DAS MAQUILADORAS
Nestes oito anos de imposição do Nafta, as maiorias
vítimas do desmonte nacional foram os trabalhadores. Segundo dados
oficiais, antes havia 11 milhões de pobres no país, cerca de 16%
da população. Em 2001, o número de miseráveis
saltou para 51 milhões, o equivalente a 58% dos mexicanos. Destes, 20
milhões são considerados indigentes. No mesmo período, o
preço da cesta básica de alimentos aumentou 560%; já o
salário real subiu apenas 135%. Actualmente, mais de 50% dos
assalariados mexicanos recebem, em termos reais, menos da metade do que
recebiam há 10 anos atrás. O trabalho informal, precário,
abarca hoje mais de 50% da População Economicamente Activa (PEA),
perto de 20 milhões de pessoas.
"Desde que o Nafta entrou em vigor, o número de mexicanos que
ganham menos de um salário mínimo aumentou em um milhão.
Além disso, 8 milhões de famílias submergiram na
pobreza" despencando da situação anterior de
"classe média" [10]. Relatório recente do Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef) indica que mais de
um milhão de crianças mexicanas começam a trabalhar aos
seis anos de idade e têm jornadas diárias de até 12 horas.
"Tal como os adultos, são contratadas sem direito a
benefícios e sem seguro social, vivem nas propriedades dos contratantes
e geralmente estão expostas aos efeitos daninhos dos pesticidas...
Estima-se que mais de 40% das meninas e meninos jornaleiros de seis a 14 anos
não sabem ler e nem escrever e que 69% não terminam o estudo
primário. Embora a média nacional seja de sete anos de estudo,
nas zonas rurais ela é de apenas 1,3" [11].
Deste quadro deprimente, a situação mais revoltante dá-se
nas maquiladoras as empresas que se instalam na fronteira dos dois
países, em cidades como Tijuana, Mexicali, Matamoros e Ciudad Juarez.
"Maquila é um tipo de empresa que surgiu no México na
década de 60, como forma de gerar empregos nas regiões pobres da
fronteira com os Estados Unidos. Actuavam exclusivamente na montagem e
etiquetagem de produtos exportáveis, a partir de componentes importados
e sem respeitar as leis de trabalho e as normas ambientais. Uma actividade,
portanto, que não agrega nem valor nem tecnologia. Com o advento do
Nafta, o fenómeno expandiu-se devido à inexistência de
tarifas entre os três países, o que favoreceu a
importação de componentes e a exportação de
produtos acabados" [12].
"Com o aval e a protecção dos EUA, sob o arcabouço do
Nafta, o México se tornou uma das opções mais
rentáveis e estáveis para os investimentos privados. As
agências avaliadoras de riscos atestam que o produto-país é
confiável e lucrativo... Os atractivos são conhecidos: os
salários mexicanos são em média 10 vezes inferiores aos
norte-americanos, os impostos são reduzidos, a
fiscalização é discreta e os lucros e os investimentos
podem passear à vontade antes de voltar ao sólido terreno
pátrio. Era o que faltava para proporcionar grande competitividade
às cadeias produtivas norte-americanas" [13].
Actualmente existem no México cerca de 4 mil empresas deste tipo,
também chamadas de "processadoras para
exportação", produzindo acessórios
electrónicos, equipamentos mecânicos, produtos têxteis,
brinquedos, comida enlatada e produtos químicos. A maior parte do
capital, da matéria prima e até do gerenciamento é
norte-americano, e quase toda a produção é exportada
a maioria sem qualquer tributação ou
fiscalização. A violência da exploração nas
maquiladoras beira a barbárie.
Segundo depoimentos de trabalhadores e sindicalistas, as maquiladoras se
assemelham ao "inferno". São comuns as
violações da precária legislação trabalhista
mexicana; a repressão ou simples proibição da
organização sindical; horas extras forçadas e maus tratos.
Como 60% da mão-de-obra é formada por mulheres, são
frequentes as denúncias de abuso sexual. As mulheres, inclusive,
são obrigadas a apresentar testes de gravidez como
condição para sua contratação. Aquelas que
engravidam e continuam no emprego correm o risco de gerar crianças com
deficiências físicas, causadas pelo trabalho pesado e pela
exposição a agentes químicos. Pesquisa do
Comité de Apoyo Fronteirizo Obrero Regional
(Cafor) comprova que 76% das trabalhadoras apresentam dores pulmonares e 62%
desenvolvem alergias e doenças de pele em consequência do
constante contacto com produtos químicos [14].
A cada ano, somente nas 800 indústrias maquiladoras instaladas em
Tijuana cerca de 900 trabalhadoras são demitidas por estarem
grávidas. Na Samsung, por exemplo, esta prática é comum.
"A empresa, com três plantas na localidade e mais de 1.800
trabalhadoras por turno em idade reprodutiva entre 16 e 35 anos ,
obriga as mulheres grávidas a renunciar ou as colocam em postos de
trabalho que requerem um esforço físico maior, segundo denuncia
Elza Jiménez, coordenadora em Tijuana da organização
Yeuani
. Esta organização é a única que desde 1998
consegue documentar este tipo de abuso e levar aos tribunais trabalhistas uns
20 casos de mulheres despedidas por estarem grávidas" [15].
Além das péssimas condições de trabalho, a
média salarial nas maquiladoras é de somente três
dólares por dia. Normalmente os trabalhadores vivem nas chamadas
"colónias" ou em favelas, sem electricidade, esgotos ou
água canalizada. A instabilidade e a precariedade dos empregos gera
enormes transtornos sociais. Tanto que muitos mexicanos procuram melhor sorte
atravessando a fronteira com os EUA, iniciativa de alto risco nos
últimos anos. Desde 1994, com a introdução do Nafta,
aumentou a repressão nas áreas fronteiriças, inclusive com
a criação da operação paramilitar racista
Gatekeeper
de caça aos imigrantes. Em 1999, o número de mortes
registadas nas tentativas de cruzar as fronteiras foi de 325; em 2000, saltou
para 491. Já morreram mais pessoas no chamado "Muro da
Vergonha", a cerca que separa o México dos EUA, do que em toda a
história do Muro de Berlim.
O crescimento vertiginoso das maquiladoras também acelerou a
degradação ambiental na região fronteiriça em
decorrência da supremacia absoluta dos interesses económicos das
corporações empresariais. Em Matamoros, na fronteira do Texas,
onde estão instaladas multinacionais como GM e AT&T, são comuns
denúncias de crime contra a ecologia. O nível de agentes
químicos nas fontes de água potável subiu 50 mil vezes.
Segundo a ONG
Texas Center for Policy Studies
, somente em 1996, as maquiladoras depositaram cerca de 8 mil toneladas de
agentes poluentes na fronteira. "No estado mexicano de Guerrero, 40% das
florestas foram devastadas pela exploração predatória dos
últimos anos, o que também provocou erosão do solo e
destruição do habitat natural de inúmeras
espécies" [16].
A degradação do meio ambiente gerou aumento vertiginoso de
doenças em adultos e de deficiências em recém-nascidos.
"Ao longo da fronteira, a incidência de algumas doenças,
entre elas a hepatite, é duas ou três vezes mais elevada do que a
média nacional", garante a Global Trade Watch, umas das mais
renomadas ONGs do mundo [17]. E pelas normas do Nafta, o governo mexicano nem
sequer tem poderes para adoptar medidas de preservação ambiental
já que estas são consideradas "obstáculos aos
investimentos".
Diante do exposto, tornam-se ainda mais sombrias as perspectivas da
implantação da ALCA. Se para os trabalhadores dos EUA,
Canadá e México o Nafta representou, nestes oito anos, menos
soberania, menos democracia e mais regressão social, o mesmo destino ou
pior está reservado aos povos de todo o continente. Como afirma uma das
maiores autoridades neste tema, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães,
"é possível saber com razoável precisão como
será a ALCA. A ALCA será como o Nafta. E naquilo que for
diferente será diferente para ser mais favorável aos Estados
Unidos" [18].
NOTAS
1- Kjeld Jakobsen e Renato Martins.
ALCA: quem ganha e quem perde com o livre comércio nas Américas.
Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2002.
2- Gilberto Dupas.
"Assimetrias económicas, lógica das cadeias produtivas e
políticas de bloco no continente americano"
. Agosto de 2000.
3- "O que é a ALCA e o Nafta para as Américas?"
. Public Citizen:
http://www.citizen.org
4- "Noam Chomsky comenta levante zapatista". Jornal
Lucha Libertária
, Junho de 1994.
5- Steven Pearlstein. "Canadá receia virar o 51º
Estado americano". Artigo do
The Washington Post
publicado no jornal
O Estado de S.Paulo
, de 10/09/2000.
6- "Para activista, ALCA é neocolonialismo".
Folha de S. Paulo
, 22/04/2001.
7- "Recessão mexicana não assusta investidor".
Folha de S. Paulo
, 10/02/2002.
8- Osvaldo Martínez. "Posición de Cuba sobre el ALCA".
Cuba Siglo XXI
, Junho de 2001.
9- Emir Sader. Coluna "O mundo pelo avesso", publicada na
agência
Carta Maior:
http://www.cartamaior.com.br
10- Jorge Beinstein. "Dez razões para dizer não à
ALCA".
Revista Movimento
da União Nacional dos Estudantes.
11- "Escravidão e miséria".
Adital
, Agosto de 2001.
12- Kjeld Jakobsen e Renato Martins.
13- Luis Fernando Garzon.
"Nafta: o antiexemplo mexicano para a ALCA".
14- Maria Luisa Mendonça.
"Plano Puebla-Panamá: Mais uma peça no tabuleiro
continental"
, 17/08/2001.
15- "Maquiladoras tijuanenses despiden cada año a 900
embarazadas".
La Jornada
, 21/11/2001.
16- Jorge Beinstein. "Dez razões para dizer não à
ALCA".
17- "ONG critica projecto de formação da ALCA".
O Estado de S.Paulo
, 19/04/2001.
18- Samuel Pinheiro Guimarães. "ALCA será igual ao Nafta,
excepto se mudança favorecer os EUA",
Carta Maior.
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Jornalista. Editor da revista brasileira "Debate Sindical". Texto
adaptado por resistir.info.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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