Os impactos da ALCA na agricultura
por Altamiro Borges e João Pedro Stedile
[*]
Dos nove grupos de negociação que se reúnem periodicamente
para agilizar a implantação da Área de Livre Comércio
das Américas (ALCA), um trata especificamente da questão da
agricultura. Segundo o anódino texto de apresentação
deste grupo, sua missão principal é reduzir e, com o tempo,
igualar todas as taxas alfandegárias dos 34 países que
integrarão este bloco econômico. As regras a serem seguidas
seriam as do Acordo Agrícola (AA) negociadas na
Organização Mundial do Comércio (OMC). O objetivo seria o
de liberalizar totalmente a circulação de produtos num continente
que conta com 808 milhões de habitantes.
Na opinião da ativista canadense Maude Barlow, que acompanha atentamente
as rodadas de negociação da ALCA, este grupo visa mesmo é
limitar ao máximo o já precário apoio dos governos locais
aos pequenos e médios proprietários agrícolas e aos
trabalhadores rurais. Com isso, ele pretende fortalecer ainda mais o poder do
agro-business
norte-americano e da agroindústria exportadora dos países
dependentes da região. Para ela, a ALCA causará a falência
de milhões de lavradores latino-americanos, o aumento da
dependência dos produtos agrícolas dos EUA e colocará em
grave perigo a própria segurança alimentar dos povos do
continente, reduzindo os estoques de emergência e eliminando outras
medidas de proteção à agricultura.
Mas não é só o Grupo de Negociação da
Agricultura que ameaça os que vivem do trabalho na terra. Uma outra
comissão, a que trata dos direitos de propriedade
intelectual, também apresenta vários riscos para o futuro.
Entre outras medidas, ela pretende patentear todos os seres vivos
inclusive as plantas utilizadas pelas comunidades locais. Com isso, esse grupo
visa auferir lucros com a industrialização destas culturas. Na
verdade, todos os nove grupos de negociação da ALCA, que
conspiram de maneira frenética e sigilosa, acabarão afetando,
direta ou indiretamente, os produtores rurais e a agricultura dos países
da região.
FALÊNCIA E DESEMPREGO
Um livrete editado pela Via Campesina Brasil, que congrega ativos movimentos
rurais, como o MST e a Comissão Pastoral da Terra, apresenta de forma
bastante didática as principais conseqüências da ALCA
para a agricultura brasileira. Conforme explica, o país é
um importante exportador de produtos agrícolas, como café em
grão, soja, suco de laranja em tonéis, fumo em folha,
açúcar bruto, entre outros. Todos são produzidos pela
agroindústria nacional, que reúne os poderosos fazendeiros
locais. Com a ALCA, esta elite agrária espera contar com maior apoio do
Estado para as exportações. Desta forma, os recursos
públicos seriam ainda mais generosos para este setor abastado, que pouco
produz para o povo brasileiro.
No geral, a produção para o consumo doméstico,
indispensável à alimentação dos brasileiros,
depende basicamente de pequenos e médios proprietários rurais.
Estes já contam com parcos recursos do Estado. Não possuem
preços mínimos para produzir e nem subsídios para
estocagem, transporte, etc. Geralmente, vivem endividados e na penúria.
Com a vigência da ALCA, este cenário calamitoso tenderia a se
agravar. O já precário apoio ao pequeno e médio produtor
rural seria reduzido, já que o grosso dos recursos públicos seria
transferido ainda mais para os setores exportadores. Além da
falência de milhões de lavradores e do desemprego dos
trabalhadores rurais, a tendência seria a de aumentar a crise de
abastecimento no país.
Outra conseqüência natural será a do aumento da
concentração de terras no país. Principalmente a partir
do governo FHC, investe-se na implantação do modelo
norte-americano das agroindústrias. Cada vez mais, elas são
responsáveis pela industrialização e
padronização dos produtos, por seu armazenamento e transporte a
longas distâncias. O pequeno e médio agricultor passa a ser
apenas o produtor das matérias-primas, que são repassadas
às agroindústrias antes de chegar à mesa do consumidor
urbano. Este modelo gera inúmeras distorções. Entre
outras, reforça a monopolização no campo; agrava a
desnacionalização da agricultura (na agroindústria dos
temperos, por exemplo, apenas três multinacionais detêm o
controle); restringe o acesso à terra do pequeno lavrador; e altera e
encarece o padrão tecnológico de produção.
Como alerta o livrete, todos esses problemas deverão ser agravados
com a implantação da ALCA, pois as grandes empresas
norte-americanas que ainda não atuam no mercado brasileiro, com a
redução dos impedimentos e das barreiras, vão se mudar
para o Brasil. Por conseguinte, vai aumentar a concentração e
desnacionalização das agroindústrias. E, mais grave
ainda, elas vão transferir para o Brasil os setores que são muito
poluentes, como os frigoríficos, a suinocultura, bem como a
indústria do papel e celulose. Um indício do que pode
ocorrer no futuro é a recente instalação da multinacional
estadunidense Carols, que implantou no país um processo industrial que
vai da criação ao abate de suínos e conta com cerca de 30
mil criadeiras. Esse investimento milionário contou com financiamento
público do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social
(BNDES).
Outro fator que deverá fortalecer a agroindústria e,
conseqüentemente, a concentração de terras no país
é o novo padrão tecnológico em expansão no mundo
capitalista. O modelo anterior, da chamada revolução
verde, baseado no uso de adubos, agrotóxicos e
mecanização, dá sinais de esgotamento. Ele atingiu o seu
topo e não consegue elevar muito mais produtividade agrícola.
Por isto, está em curso a implantação de um novo
padrão de produção, baseado na biotecnologia, na
manipulação genética, como mecanismo para elevar a
produtividade dos vegetais e animais e, desta forma, aumentar a lucratividade
das agroindústrias.
Ocorre que este modelo, sob o controle do capital, também produz graves
deformações no campo. Por um lado, ele reforça o
monopólio do conhecimento. Apenas dez grandes corporações
empresariais, a maioria dos EUA, controlam o setor da biotecnologia no planeta.
Por outro, a manipulação genética, a serviço do
lucro, desenvolve experimentos perigosos à humanidade. Os
transgênicos a combinação de genes de diferentes
origens vegetais ou animais ainda não têm
comprovação segura sobre os seus efeitos no meio ambiente e no
organismo humano. Mesmo assim, as multinacionais insistem em
mercantilizá-los.
Com o processo da ALCA, as empresas estão exigindo liberdade total
para a difusão e desenvolvimento das sementes transgênicas,
mantendo-se em todos os países latino-americanos o direito de
propriedade privada destes novos seres vivos, denuncia o documento da Via
Campesina. Isto explica o empenho do governo dos EUA e das
corporações norte-americanas, como a Monsanto, para ampliar a lei
de patentes no continente. No Brasil, esta lei foi aprovada em 1997 e
atualmente existem 2.094 pedidos de registro de patentes de seres vivos, a
maioria solicitada por empresas estadunidenses. Agora, as multinacionais
conseguiram do servil FHC o envio de um projeto de lei que libera totalmente o
cultivo, o comércio e o consumo de sementes e produtos
transgênicos. Há indícios de que o projeto foi redigido
pela Monsanto!
Vingando a ALCA, apenas a agroindústria nacional e estrangeira teria
acesso às sementes patenteadas. Os pequenos e médios produtores
rurais não teriam como comprá-las, já que o seu custo
seria acrescido de inacessíveis
royalties
das corporações. Isto agravaria sobremaneira um processo que
já está em curso. Até 1997, por exemplo, a gigante
norte-americana na biotecnologia, a Monsanto, quase não tinha
participação do mercado brasileiro de sementes de milho. Em
pouco tempo, após a entrada em vigor da lei de patentes, ela comprou
várias firmas nacionais e hoje controla 60% do mercado. Ela e outras
corporações já detêm o comércio de sementes
híbridas do mamão, melancia, hortaliças, etc. Esta brutal
monopolização, além de levar à falência os
pequenos e médios produtores, é um atentado à soberania
alimentar do Brasil.
BANQUETE NEOCOLONIALISTA
Mas o principal beneficiado da ALCA, como reconhece o livrete, nem seria a
agroindústria exportadora do Brasil. Esta ficaria apenas com as
migalhas deste banquete neocolonialista. No essencial, este acordo visa
fortalecer a economia dos EUA, favorecendo a circulação das suas
mercadorias e serviços. Os produtos agrícolas norte-americanos,
por exemplo, são altamente subsidiados, contam com poderosa
infra-estrutura (transporte, armazenagem, etc) e larga vantagem
tecnológica. Com o fim das barreiras alfandegárias, eles
invadiriam os mercados dos países do continente, arruinando as
agriculturas locais. O Brasil, com o seu elevado potencial produtivo, seria
uma das ou a principal vítima deste livre comércio na
região.
Prova disto é que depois que a OMC aprovou acordos liberalizando o
comércio agrícola, em apenas três anos de 1994 a
1996 os EUA aumentaram suas exportações em US$ 12 mil
milhões. A disputa entre estas duas economias tornou-se mais desigual.
O Brasil exporta por ano cerca de US$ 15 mil milhões em produtos
agrícolas; já os Estados Unidos vendem algo em torno de US$ 55
bilhões. No mesmo período em que a agricultura norte-americana
expandiu suas exportações, devastando os mercados da periferia, a
política servil do governo FHC foi responsável pelo aumento das
importações e pela desestruturação de vastos
setores da nossa agricultura. Cerca de um milhão de estabelecimentos
agropecuários faliu no país entre 1985 e 1996, fruto da
abertura comercial de FHC. A ALCA pretende consolidar este
servilismo!
Ela também dificultaria ainda mais a presença brasileira no
mercado mundial. Atualmente, em função dos preços, do
volume e da qualidade, o Brasil exporta seus produtos agrícolas para
vários continentes 60% destinados à Europa, 24% para os
EUA e 16% para Ásia e Oriente Médio. O país sempre contou
com um amplo potencial neste campo território da dimensão
continental, vastos recursos naturais, clima propício à
agricultura e um trabalhador laborioso. A ALCA pretende exatamente eliminar
essa vantagem competitiva da economia nacional. Visa subjugar a nossa
agricultura, inibindo a sua democratização e expansão. Ao
igualar os preços agrícolas, ela beneficiará os produtos
dos EUA nos mercados dos outros continentes.
Apesar de toda a propaganda em favor do tal livre comércio,
que embala hoje a falaciosa ALCA, o Brasil nada ganhou com as medidas
liberalizantes aplicadas pelos governos neoliberais de plantão. Em
1975, por exemplo, os produtos agrícolas brasileiros representavam 7,27%
do comércio mundial; já depois dos reinados de Collor e FHC, hoje
o país despencou para apenas 3,61% no comércio mundial de
produtos agrícolas. Embora o PIB agrícola brasileiro seja de
aproximadamente US$ 86 mil milhões, incluindo o setor da
agroindústria, as nossas exportações atualmente atingem a
medíocre cifra de US$ 15 mil milhões ao ano.
Diante destes fatos incontestáveis, até mesmo setores da
agroindústria nacional já duvidam dos benefícios da ALCA.
Durante algum tempo, nas pesquisas realizadas por institutos empresariais, este
agrupamento era um dos poucos a afirmar que levaria vantagens com o livre
comércio, ampliando suas exportações. Mas esta
ilusão durou até o presidente George W. Bush aprovar, em maio
passado, a nova Lei Agrícola dos EUA a
Farm Bill
. Ela elevou ainda mais os subsídios à agricultura
norte-americana, concedendo quase US$ 180 mil milhões para os
próximos dez anos. Os efeitos desta medida protecionista são
devastadores, com a queda dos preços mundiais das
commodities
agrícolas e o aumento da capacidade competitiva dos EUA.
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que reúne a
nata da agroindústria tupiniquim, sentiu o baque de imediato. Uma
pesquisa encomendada pela entidade, que ouviu 1.884 produtores, revelou que 97%
dos entrevistados estavam temerosos dos efeitos negativos da medida. A
mudança da Lei Agrícola norte-americana trará expressivos
impactos no mercado agrícola mundial, afetando a rentabilidade das
exportações brasileiras, garantiu o boletim oficial da CNA.
O golpe foi tão violento que até o dócil governo FHC foi
obrigado a chiar. As negociações da ALCA ficaram muito
difíceis, esperneou o ministro da Agricultura, Pratini de Moraes.
Segundo cálculos deste ministério, antes mesmo da
Farm Bill
, o Brasil já deixara de exportar US$ 1,2 mil milhão em soja em
função das medidas protecionistas dos EUA.
DEVASTAÇÃO NO MÉXICO
Para quem dúvida dos efeitos desastrosos da ALCA e ainda tem
ilusões com a falácia do livre comércio, vale
a pena conhecer um pouco a experiência do Nafta, o acordo que
reúne EUA, Canadá e México e que vigora deste 1994. Para
a agricultura mexicana, a mais frágil deste bloco econômico
regional, os impactos foram altamente destrutivos e regressivos. As
próprias estatísticas oficiais confirmam que houve aumento da
concentração fundiária, falência de pequenos e
médios produtores rurais, explosão do desemprego de trabalhadores
rurais, violento êxodo para os centros urbanos e da
migração para o exterior. Hoje a agricultura do país
está totalmente submetida à ditadura do
agro-business
dos EUA.
Em 1982, o México importava US$ 790 milhões em alimentos.
Já em 1999, após cinco anos de vigência do Nafta, passou a
importar US$ 8 mil milhões! De país exportador de vários
produtos agrícolas, transformou-se num campo devastado. Hoje é
obrigado a importar dos EUA cerca de 50% de tudo o que consome. A livre
competição com a agricultura norte-americana, que goza de
altos subsídios e conta com uma base tecnológica mais
avançada, foi fatal para o México. Ele era um forte produtor de
arroz, mas hoje depende da importação deste produto dos EUA para
alimentar a sua população. Também era exportador de
batatas, só que elas foram bloqueadas no mercado estadunidense
através de questionáveis barreiras fitosanitárias. O
país também já foi um tradicional exportador de
algodão, mas hoje depende do produto
made USA
.
Sob o império do Nafta, a superfície agrícola plantada foi
drasticamente reduzida e, num curto prazo, cerca de 6 milhões de
lavradores mexicanos perderam suas terras e seus empregos! Muitos hoje residem
nas favelas da capital e dos demais conglomerados urbanos. Outros trabalham
nas maquiladoras da fronteira, recebendo míseros salários nestes
novos campos de concentração. Milhões
também tentaram atravessar o Muro da Vergonha, que separa o 3º do
1º Mundo, para realizar trabalhos precários nos EUA. Destes,
muitos já morreram na fronteira. E outros, como os indígenas e
camponeses de Chiapas, resistem ao império norte-americano e demonstram
ao mundo os malefícios do tal livre comércio.
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Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB,
editor da revista Debate Sindical e organizador do livro Para entender e
combater a ALCA (Editora Anita Garibaldi, 2002).
João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da
coordenação do Comitê Nacional de Luta contra a ALCA e da
Via Campesina-Brasil.
Panfleto electrónico contra a ALCA
(ficheiro Power Point, 28 kB zipado)
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Mais informações sobre a ALCA e o Plebiscito em
http://www.jubileubrasil.org.br
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http://resistir.info
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