A cusparada premonitória de Jair Bolsonaro
por Chico Paiva Avelino
[*]
Em 2014, a Câmara dos Deputados fez uma tocante homenagem ao meu
avô, Rubens Paiva: inauguraram um busto com a sua imagem em
função de sua incessante luta pela democracia causa pela
qual ele literalmente deu a vida. Minha família foi em peso.
Emocionadas, minha mãe e minha tia fizeram discursos lindos e orgulhosos
sobre a memória do pai. No meio de um deles, fomos interrompidos por um
pequeno grupo que veio se manifestar. Era Jair Bolsonaro, junto com alguns
amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem
eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa
direção, gritando que "Rubens Paiva teve o que mereceu,
comunista desgraçado, vagabundo!". Ao passar por nós, deu
uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado
brutalmente assassinado.
Gostaria muito de poder conversar com o meu avô nesse momento
político pelo qual passamos. Teria muito a acrescentar: foi eleito
Deputado Federal por São Paulo em 1962, e cassado pelo AI-1 em 10 de
abril de 1964. Como democrata exemplar que era, sempre lutou contra o
autoritarismo e nunca encostou numa arma. Infelizmente essa oportunidade me foi
arrancada quando, em janeiro de 1971, ele foi levado de casa junto com minha
avó e minha tia, que na época tinha 15 anos, para os
porões do DOI-Codi do Rio de Janeiro, na Tijuca. Lá, foi
torturado até morrer pelo aparelho de repressão montado pelo
regime militar, cuja filial paulista era comandada por ninguém mais nem
menos do que o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Na época, não havia ficado claro o motivo dos militares levarem
também a minha avó e minha tia. Hoje, conhecendo os
métodos praticados por Ustra, sabemos que era para trazê-las
à sala de tortura e pressionar o meu avô. Elas, em celas ao lado,
separadas, ouviram seus gritos antes que ele fosse morto.
O atestado de óbito só foi entregue à família 25
anos após o assassinato, em 1995. O corpo jamais foi entregue. Na
Comissão Nacional da Verdade, outros militares envolvidos no crime
disseram que o corpo foi enterrado e desenterrado duas vezes. Sobre o assunto,
Bolsonaro debochou: pendurou na entrada do seu gabinete em Brasília uma
placa que dizia "quem procura osso é cachorro".
Hoje em dia, Ustra é mais famoso não pelas atrocidades que
cometeu, como torturar mães na frente de suas crianças, colocar
ratos e baratas vivas dentro da vagina das mulheres, estupros, pau de arara,
choques, entre outras; mas por ser o grande ídolo, chamado de
herói, pelo nosso provável novo presidente, Jair Bolsonaro
que diz que seu livro de cabeceira é a história do coronel.
Em seu voto a favor do impeachment, Bolsonaro prestou homenagem ao torturador
da ex-presidente. No púlpito do Congresso Nacional, com o país
inteiro assistindo, ele decidiu lembrar de um ser asqueroso que era o
contrário de tudo que a democracia representa, e que havia covardemente
torturado a mulher que ele ali teve o sadismo de torturar psicologicamente mais
uma vez.
Desde que me dou por gente, essa cicatriz já havia sido fechada na
família. Não era um assunto tabu. E sempre fui ensinado que essa
não era uma luta pessoal, que não devíamos denunciar e
brigar contra essas práticas como vingança familiar, mas para
evitar que isso ocorresse com outros. Não era uma briga nossa, mas de
todo o país. Minha mãe foi a muitos eventos e deu muitas
entrevistas naquele ano por ocasião dos 50 anos do golpe de 1964. Em
todas elas fazia questão de lembrar do caso Amarildo, pedreiro
desaparecido e assassinado pela PM do Rio de Janeiro em 2013 como aquela
prática seguia mesmo na nossa frágil democracia, e como a dor da
família de Amarildo era a mesma pela qual a nossa havia passado.
Estamos às vésperas de uma eleição na qual
Bolsonaro não só reafirmou sua admiração por
Brilhante Ustra, mas a todo aparato do regime militar. Meu avô lutou
contra discursos como esse e por isso foi covardemente preso, torturado e
assassinado. Deu a vida pela democracia. Hoje, fica evidente que aquela
cusparada não era algo meramente simbólico, mas um
prenúncio daquilo que ele pretende fazer como Presidente, e que vem
incansavelmente repetindo durante a campanha: prender e exilar seus
adversários políticos, eliminar militâncias e desaparecer
com as minorias.
Ainda dá tempo de evitar isso, e o poder está em nossas
mãos, com nosso voto. Eu nunca imaginei que, em 2018, essas
informações não bastassem para que as pessoas pudessem ter
repulsa a um político que defende isso. Espero que ajude alguém a
refletir, a tornar mais palpável quem é Jair Bolsonaro. Em 1964,
foi Rubens Paiva e milhares de outros. Em 2018, pode ser eu, você, as
pessoas que amamos.
25/outubro/2018
[*]
Neto de Rubens Paiva.
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/21199/a-cusparada-premonitoria-de-jair-bolsonaro/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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