A crise chegou
por Samuel Pinheiro Guimarães
[*]
Os resultados das políticas neoliberais se encontram presentes no
quotidiano aterrador dos brasileiros, sob a forma da violência, do
desemprego e da corrupção, mas a culpa é atribuída
a nós.
A crise na Argentina, que se alastra para o Uruguai e o Brasil, não
é o primeiro, único ou último fracasso da
estratégia neoliberal de desenvolvimento dos países da periferia,
ex-colônias, de industrialização precária,
primário-exportadores, dependentes política e ideologicamente.
Procuram-se culpados para a derrocada argentina, sobre a cabeça dos
quais se possa depositar a culpa pelos danos causados. As alternativas se
sucedem, apresentadas ironicamente pelos próprios culpados: acusam eles
o peronismo, o populismo, o corporativismo, o desequilíbrio
orçamentário, a corrupção, os
"ladrões" de Battle, os vizinhos, o Mercosul, enfim, o povo
argentino. Tudo para que a mesma política possa continuar sendo
promovida em outros países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil.
Procura-se isentar de culpa os verdadeiros culpados que são a
visão equivocada do sistema econômico e político nacional e
mundial, as políticas neoliberais implementadas, os organismos e
governos desenvolvidos que apoiaram e até forçaram a
adoção de tais políticas e as elites
político-econômicas na periferia que as assumiram por
convicção, interesse próprio, fraqueza ou desânimo.
Vale a pena relembrar o que ocorreu, como em uma reprise de filme de horror,
para impedir que essa estratégia se consolide: a miséria, o
desespero, a violência e a corrupção que causam.
As premissas da visão neoliberal, na década de 80, eram de que as
causas do subdesenvolvimento, da pobreza, da inflação, do
conflito social, do autoritarismo e da estagnação econômica
na periferia seriam o caráter arcaico, autárquico, estatista,
corporativista, populista e terceiro-mundista dos sistemas econômicos e
políticos daqueles Estados periféricos. Assim, a culpa pelos seus
males seriam deles mesmos e jamais do colonialismo, do imperialismo velho ou
novo, dos oligopólios internacionais, das relações
desiguais de troca, do protecionismo dos países desenvolvidos e das
oligarquias vinculadas aos interesses estrangeiros.
Assim, caso esses países aceitassem serem modernizados pelas
forças dinâmicas do centro do sistema mundial e para tal adotassem
as políticas que os livros recomendam -- desde Adam Smith e David Ricardo
-- como essenciais ao bom funcionamento de qualquer economia, em síntese,
o livre jogo das forças de mercado e a total
desregulamentação estatal, teriam eles seus problemas resolvidos
e ingressariam, triunfais, no Primeiro Mundo.
Os objetivos de tais políticas eram eliminar a inflação,
alcançar o equilíbrio fiscal, estabilizar a taxa de câmbio,
cumprir todos os compromissos com credores e assim criar um ambiente
favorável ao capital estrangeiro, que acorreria abundante e
benéfico aos países periféricos, realizaria novos
investimentos, transferiria e geraria tecnologia, modernizaria as estruturas
produtivas, geraria emprego, criaria plataformas exportadoras, integraria a
estrutura econômica local à estrutura mundial e geraria as divisas
necessárias à remuneração desses capitais - a qual
seria módica e justa. A poupança doméstica, nesse novo
ambiente, se ampliaria e se transformaria em investimento, de forma
autônoma ou em associação com o capital estrangeiro e se
reduziria a crônica evasão de divisas.
A execução técnica desses programas foi confiada a
economistas jovens, sem experiência maior na administração
pública ou na política que, por essa razão, seriam
imparciais e científicos, pois tinham estudado em universidades
americanas e muitos deles foram empregados de agências como o FMI, o
Banco Mundial e o Bird. Nessas instituições, eles se impregnaram
da nova ideologia individualista e utilitarista, para a missão
"salvadora" de reformar suas pátrias corrompidas pelo
desenvolvimentismo cepalino, estatizante, marxizante, inflacionário e
caloteiro.
Essas mesmas agências foram responsáveis pelo gradual processo de
"convencimento" das elites nos países da periferia da extrema
conveniência em adotar reformas estruturais que foram sintetizadas no
chamado Consenso de Washington. As elites e governos recalcitrantes foram
constrangidos pelas chamadas "condicionalidades" exigidas pela
comunidade financeira internacional pública e privada, para renegociar
prazos e juros da asfixiante dívida externa que havia sido gerada pelas
crises do petróleo, pela reciclagem dos petrodólares e pela
estratosférica e súbita elevação dos juros
promovida pelo Federal Reserve Bank americano, sob o comando de Paul Volker.
A execução política dos programas de
modernização por meio de reformas estruturais foi confiada na
América do Sul ou a políticos "novos" -- como Alberto
Fujimori e Fernando Collor -- ou a políticos de passado nacionalista,
populista ou social-democrata. Esses últimos abandonaram suas antigas
convicções e abraçaram sua nova fé. Foi o caso de
Andres Perez, Carlos Menem, Rafael Caldera, Paz Estensoro e Fernando Henrique
Cardoso.
Os resultados desses programas foram muito semelhantes em toda a América
do Sul. Enquanto durou sua primeira etapa, resultados positivos foram
apresentados: queda rápida da inflação para índices
inferiores a dois dígitos, ingresso abundante de capital estrangeiro,
inclusive especulativo, aumento significativo de importações,
rápido processo de desregulamentação e de
privatizações, reformas do Estado com a atribuição
de funções quase públicas a ONGs, programas sociais de
solidariedade assistencialista nas áreas de educação e
saúde e, finalmente, crescimento do PIB ainda que a taxas em geral
modestas.
Após a fase inicial, os resultados foram também muito semelhantes
em todos os países da América do Sul, com variações
de ritmo e de intensidade, devidas a peculiaridades dos processos locais, como
o impeachment de Collor. Aumentou brutalmente a concentração de
renda e de riqueza; agravou-se o desemprego, a exclusão e a
violência social; acelerou-se vertiginosamente a
desnacionalização, a desintegração das cadeias
produtivas, os déficits em transações correntes, a
dívida pública e a dívida externa; espraiou-se a
corrupção impune, pública e privada; verificou-se o
colapso externo, às vezes adiados por mega-empréstimos (como os
recentes US$ 10 bilhões pelo Brasil ao FMI) e acentuou-se o
descrédito nas instituições e o risco de regressão
política.
Para os críticos dessas políticas neoliberais, as causas de seus
resultados trágicos são a total inadequação de suas
premissas sobre a estrutura e funcionamento da economia, o desconhecimento das
realidades e causas do subdesenvolvimento e dos interesses das oligarquias
locais, bem como a visão simplista e utópica sobre a
dinâmica do sistema político-econômico internacional. As
regras jurídicas e tendências "naturais" desse sistema
permitem aos países desenvolvidos manter seus privilégios:
concentração de riqueza e de poder militar, político e
tecnológico.
Para os defensores do neoliberalismo, porém, as causas do fracasso
seriam ainda aquele caráter arcaico, autárquico, estatista,
corporativista e populista dos sistemas econômicos e políticos dos
Estados periféricos, cuja resistência aos benefícios das
políticas adotadas tinha se revelado maior do que pensavam. Portanto, a
solução seria aplicar as mesmas políticas com mais vigor,
por meio de lideranças menos corrompidas e, eventualmente, de
administradores internacionais, como chegou a ser sugerido por
indivíduos como Rudiger Dornbush em relação à
Argentina. Em resumo, as suas políticas são corretas, mas seus
executores periféricos não foram suficientemente honestos,
competentes e firmes. O que se necessita, no mundo, é um novo Colonial
Service.
No Brasil, os executores das políticas neoliberais jamais aceitaram a
designação de "neoliberais". Auxiliados pelo passado
ambíguo de seus líderes principais, insistiram em se apresentar
sempre como progressistas, acusando seus opositores de reacionários
defensores de privilégios das oligarquias. Contaram, todavia, com a
cooperação irrestrita dos setores econômicos privilegiados
e dos setores políticos oligárquicos e retrógrados que
não só não se queixaram, como aplaudiram tais
políticas. Apresentaram-se como sociais democratas de terceira via
financista e "globalizante" em sua estratégia econômica,
repleta de "revolucionários" programas sociais.
Em resumo, para concentrar mais renda -- a massa salarial caiu em oito anos de
36% para 26 % da renda nacional e os lucros, juros e aluguéis passaram
de 64% para 74% --, executaram programas "modernos" de defesa dos
direitos humanos e das minorias, iludidas por uma retórica altissonante
e por uma propaganda maciça, acompanhada por verbas mínimas,
insuficientes e contingenciadas. Sobre a excelência das políticas
de direitos humanos, que se manifestem as populações
excluídas, violadas e massacradas das periferias e as
populações encarceradas, saudosas das senzalas.
O regime democrático, louvado em excesso por seus fariseus, foi
afrontado pelas investidas sistemáticas contra a
Constituição, desfigurada pelas emendas conquistadas a peso de
ouro, pela enxurrada de Medidas Provisórias, pelo controle da imprensa
por meio de excepcionais verbas de propaganda e pela cooptação de
muitos formadores de opinião. No lugar das cassações, a
compra dos votos; acaba a censura nas redações dos jornais e
surge a propaganda milionária, as concessões de veículos e
a cooptação.
Agora, os resultados de tais políticas se encontram presentes no
quotidiano aterrador dos brasileiros, sob a forma de extraordinária
violência e insegurança nas cidades e no campo, do desemprego e do
subemprego, da corrupção impune e atrevida, das estradas
esburacadas, do saneamento inexistente, das doenças ressuscitadas, da
desorganização da energia, das tarifas superfaturadas de
serviços, do calote nos fundos de renda fixa (prenúncio de outros
calotes), da crise externa latente que se revela na desconfiança dos
investidores, da alta do dólar, dos índices de risco, dos
relatórios de agências e da crítica dos acadêmicos
não comprometidos, ainda que conservadores.
Os executores dessas políticas alegam as mesmas razões para suas
dificuldades e advogam os mesmos remédios. A culpa é da
oposição, a culpa é do povo brasileiro, a culpa é
dos políticos e das oligarquias. Em suma, a culpa é do Brasil
arcaico e dos brasileiros que não os compreendem. Para eles, foi apenas
uma aposta que perderam, mas que tentarão renovar, viciados no pano
verde da especulação e da finança internacional.
Desejam perpetuar suas políticas na aparência da propaganda
austera, na negociação de acordos internacionais (Alca, por
exemplo), no mega-empréstimo junto ao FMI, em uma eventual ajuda
norte-americana direta e a até na intimidação da
população. As urnas julgarão os nefastos resultados da
-- sem sombra de dúvidas -- pior política da
República.
[*]
Embaixador brasileiro, ex-chefe do Departamento
Econômico do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) e ex-diretor
do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do
Itamaraty.
O original deste artigo encontra-se em
ALAI América Latina en Movimiento
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
|