Os 150 anos de uma obra magistral
Mesmo os que são contra não se atrevem a negar a
importância germinal do pensamento econômico de Karl Marx, exposto
sobretudo em "O capital". As categorias que cunhou para a
crítica do modo de produção capitalista tornaram-se moedas
correntes, usadas por leigos e profanos, conscientes e inconscientes de suas
origens marxianas.
Porém, ignora-se geralmente a fundamental contribuição do
pensador alemão à historiografia científica. Ao
contrário, tornou-se um quase truísmo a proposta da escassa ou
nula contribuição de Marx e de seus epígonos à
história, em geral, e à história política, em
particular.
Essa esterilidade primordial nasceria da vocação
epistemológica marxista de arrancar a fórceps as
explicações dos acontecimentos políticos dos sucessos
econômicos propõe-se. A violação das
infinitas mediações entre esta e aquela instância
determinaria a incapacidade marxista da compreensão do político,
do cultural, do ideológico afirma-se.
Nas últimas décadas, prometeu-se a superação desse
pecado de nascença do marxismo através de abordagens
metodológicas da realidade social que incendiaram, uma após a
outra, sobretudo os interesses de acadêmicos atraídos pelas
últimas e inofensiva novidades culturais a história das
mentalidades, a história do cotidiano, a nova história cultural,
a nova história política etc.
Tempo e espaço
Karl Marx também revolucionou a historiografia, sobretudo
política. Antes mesmo de desenvolver plenamente sua crítica
categorial sistemática da produção capitalista, em sua
obra magna, de 1867, inaugurou a aplicação do método
sociológico materialista à história, sobretudo numa
sucessão de magistrais trabalhos sobre a história imediata da
França.
O mesmo interesse que atribuiu ao estudo da história econômica
inglesa, devido à situação de vanguarda de sua economia,
atribuiu à análise da história política e social da
França, devido a ter sido o berço da mais acabada
revolução burguesa e possuir o mais combativo, o mais organizado,
o mais politizado e o mais revolucionário proletariado de sua
época.
O historiador Maximilien Rubel lembra que, além de ter pretendido
escrever ensaio sobre a Grande Revolução, Marx, "grande
colecionador de datas", "compôs pacientemente", em oitenta
página, com sua "escritura fina e cerrada", uma
"cronologia da história da França do ano 600 antes de nossa
era até 1589"!
Fato que certamente constitui motivo de escândalo para os que apontam a
preocupação com datas e fatos como desvio positivista, ignorando
que a ciência histórica trata-se de reconstituição e
explicação essencial de processos humanos que se objetivam
necessariamente no espaço e no tempo.
A essência e a consciência
Sobretudo em "As lutas de classe na França", de 1850, "O
Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", de 1852, e "A
guerra civil na França", de 1871, Marx apresentou uma
interpretação da história política e social que
marcou para sempre a historiografia científica. Não deixa de ser
uma fina ironia que não tenham escapado dessa influência sequer
aqueles que negam e ignoram essa revolução copernicana.
A revolução epistemológica marxiana na historiografia
deve-se à explicação dos fenômenos
históricos, políticos, ideológicos, comportamentais etc,
como determinados tendencialmente pelas condições sociais de
existência das classes e, portanto, de seus grandes e pequenos atores. E
jamais segundo as compreensões e justificativas superficiais desses
últimos de seus atos.
"Sobre as diferentes formas de propriedade e as condições
sociais de existência, levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos,
de ilusões, de modos de pensar e de concepções
filosóficas, de expressões infinitamente variadas, criados e
modelados pela classe, como um todo, a partir dos fundamentos materiais e das
condições sociais correspondentes desta última".
Apesar da sua superação radical da simples
reconstituição do evento, através do desvelamento de suas
determinações essenciais, Marx manteve-se, sobretudo, nos quadros
da crítica dos acontecimentos históricos singulares,
circunscritos no espaço e no tempo. Definitivamente, não fez
sociologia, mas historiografia política, em sentido estrito.
Um pensador genial
A leitura do "Dezoito Brumário de Luís Bonaparte",
cento e cinqüenta anos após sua publicação, causa
profunda perplexidade, sobretudo pela radicalidade e atualidade das
lições que o autor retirou de sucessos de uma época em que
as ferrovias eram novidades quase exclusivas dos países mais
avançados do mundo!
Atualidade que não deve surpreender, já que nasce da
confluência do rigor de pensador genial, com método
revolucionário, na análise de uma situação
sócio-econômica que se mantém ainda plenamente vigente,
apesar de sua avançada decrepitude modo de produção
capitalista.
Em "O Dezoito Brumário", Marx escolheu o parlamento como
grande locus de análise dos sucessos que levaram ao golpe de Estado de
dezembro de 1851, através do qual um aventureiro, que tinha como grande
trunfo ser o sobrinho putativo de Napoleão, vergou vilmente o governo
republicano e constitucional francês.
Mantendo sempre sua crítica nos quadros da história
política, analisando detidamente o comportamento dos grandes
protagonistas, Marx desvelou diante dos olhos dos seus leitores os complexos
mas inquebrantáveis fios de Ariadne que uniam as classes sociais aos
seus representantes políticos.
Política e poder
Sobretudo, mostrou que o poder político é expressão direta
da força social real dos grupos e classes em confronto; que a
representação parlamentar de classe vergada na luta social tem a
força de um grito afônico contra o vento.
Sua análise dos fatos parte da derrota do proletariado francês nas
jornadas de junho de 1848, que transformou a representação
parlamentar popular em espécie de sombra sem corpo, despida de poder
real, diante da ditadura constitucional da burguesia republicana vitoriosa.
Assinala que, a seguir, a debilidade das forças proletárias e,
portando, dos seus representantes parlamentares, permitiu a derrota da
burguesia e da pequena-burguesia republicanas pelo "partido da
ordem", constituído sobretudo pelas facções
bourbônicas e orleanistas das elites dominantes.
Sua fina análise registrou o fracasso das tentativas de
unificação dos partidos realistas devido sobretudo ao fato de
defenderem interesses concorrentes o pró-Bourbons, a grande
propriedade fundiária, o pró-Orléans, a burguesia
industrial-financeira. Esforços que assinalaram, igualmente, a
compreensão muito parcialpelos protagonistas políticos dos
interesses profundos que defendiam.
Representantes e representados
Ao analisar o abandono das elites proprietárias de seus representantes
parlamentares na procura de proteção - sob a espada de Bonaparte
- contra as classes populares, registrou a cômica tragicidade do
espetáculo de artista pretensioso que move inutilmente dedos já
não mais ligados por finos barbantes à marionete que se nega
teimosa a obedecer suas ordens.
A burguesia, lembrava Marx, "declarava sem ambigüidade que ela ardia
de desejo de se desembaraçar de seu próprio poder político
a fim de se desembaraçar das incomodações e dos perigos do
poder". Porém, os parlamentares burgueses faziam ouvidos moucos
às ordens de se eclipsarem da vida política, deixando o palco
livre ao general, ao capitão, ao sargento, ao sacerdote.
O cretinismo parlamentar
Na análise do autismo do parlamentar o qual crê que o sol
nasça quando desperta e eclipse quando adormece, fundiu categoria
sócio-histórica de imorredoura pertinência. "[...]
esta enfermidade bem particular que, depois de 1848, golpeou todo o continente,
o cretinismo parlamentar, que encerrou em um mundo imaginário aqueles
que são por ela atingidos, retirando-os todo sentido, toda
recordação, toda compreensão do rude mundo exterior
[
]".
Em "O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", Marx
expressou, em forma dura, seu desprezo pelo parlamentar filisteu, eternamente
disposto a dobrar-se aos poderosos "por medo ao combate; por lassitude;
por consideração [
] por seus familiares dependentes do
dinheiro público; por sonharem com uma próxima vacância de
cargo ministerial [
]; por puro egoísmo [
]".
Operários e camponeses
Sua crítica percutante fulmina igualmente a própria
social-democracia que apenas engatinhava, como vã tentativa de
harmonizar capital e trabalho, como sonho irreal de transformar a sociedade,
nos limites estreitos dos horizonte de classe do pequeno-burguês, por
meios democráticos.
A lição que Marx tirou dos sucessos de 1850 é clara: a
"força do partido proletário" encontra-se "na
rua". Portanto, é sempre interessado no seu fortalecimento social
que ele deve participar do jogo parlamentar, palco por excelência das
classes exploradoras. Essas, se ameaçadas nos seus privilégios,
pegam a bola e abandonam o jogo, para irem esconder-se por detrás da
baioneta do juiz fardado.
Marx explica a vitória da ditadura napoleônica e a derrota das
classes sociais como resultados do atraso político dos camponeses
franceses de então. Para ele, superado esse impasse, realizada a
imprescindível aliança operário-camponesa, "a
revolução proletária" conquistaria "o coro sem o
qual seu solo torna-se um canto fúnebre em todas as nações
camponesas".
(*)
Professor do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil.
Publicado originalmente em
Correio da Cidadania
Este artigo encontra-se em
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