Luta de classes, "pactismo"
& teóricos transformers
Os novos teóricos pactistas, que começaram muito à
esquerda, agora negam a possibilidade da mudança social. Suas
defecções têm explicação nas suas
falências teóricas, dissolvidas no afã do protagonismo.
A vida e o discurso de uma certa espécie de políticos parece dar
corpo, de uma maneira muito explícita, a uma disposição
inerente à sua maneira de ser, actuar e tornar-se personagem
política.
Surgem com grande espectacularidade e o seu radicalismo provoca arrepios. Mas
uma vez implantados na cena, transformam-se em leitores de piedosas homilias.
De pregadores da luta armada, da impossibilidade de qualquer
conciliação com o inimigo, passam a sustentar a
atenuação da luta de classes ao estabelecer a possibilidade de
"transições pactuadas". Isto tem uma raiz
teórica: aquela que postula o desaparecimento da classe operária
e, consequentemente, a impossibilidade da sua evolução de classe
em si, sem consciência da sua missão histórica, em classe
para si, capaz de emancipar-se e com sua emancipação conseguir a
emancipação de toda a sociedade. As "novas ideias"
vêm envoltas em "novos conceitos", já não se fala
de classe operária, nem sequer do conceito mais vasto de proletariado:
fala-se de "classes subordinadas", como uma categoria que sugere o
congelamento histórico, a impossibilidade de transformar a realidade
actual. Quase como Fukuyama: o desenvolvimento histórico concluiu-se e
o capitalismo é eterno.
A previsível evolução política dos personagens em
causa pode ser resumida num processo de duas vertentes que muitas vezes ocorre
num mesmo indivíduo e de maneira alternativa. Alguém com talento
propôs denominar às duas facetas dessa evolução
"mutações e migrações" políticas.
As migrações referem-se às transferências de umas
organizações partidárias
para outras e, ao que parece, é um fenómeno que tem muito a ver
com a utilização de oportunidades de duas espécies:
oportunidade de
figuração e oportunidade (menos santa) de usufruto de
posições. Num bom número de casos as duas espécies
de oportunidades são aproveitadas em simultâneo. Neste tipo de
trânsfugas, a preparação, a sapiência, o brilho e
outros adornos do intelecto são desnecessários. Pelo
contrário, tornam-se incómodos porque do que se trata é de
aboletar-se e não fazer sombra a ninguém. Sua divisa é o
"pragmatismo". O resultado é, obviamente, um personagem
abominável.
As mutações têm um ar mais aceitável: implicam uma
mudança das essências e a essência, neste caso, está
na esfera das ideias, do conhecimento, da ideologia. Aqui as acrobacias
dialécticas são espectaculares; por vezes não
isentas de certa esquisitice. O ideólogo ultra de ontem,
cultor da simbologia das armas, é agora pouco menos que devoto da Madre
Teresa de Calcutá. Nem sempre mudam de orgaização partidária, estas
importam-lhes pouco; o vital é onde está ele, seu ego, seu
páthos
é a egolatria.
Na vida social enquanto existirem a luta de classes e os agrupamentos e
seitas políticas nunca deixará de haver exemplos, no plano
pessoal ou no grupal, de mutações ou migrações
diante das quais só os ingénuos ou os ignorantes da
história nacional ou mundial ficam de boca aberta. Não lhes cabe
na cabeça que aquele personagem, geralmente jovem, simpático
que diz abraçar com radicalismo e firmeza causas nobres e altos
princípios, pelos quais oferece a vida, o sacrificar da família,
da tranquilidade e das perspectivas de uma existência cómoda
apareça depois teorizando sobre a necessidade de mudar metas, de
ser "realistas" e acaba propondo acções
políticas de sentido e orientação opostas às que
antes abominava altaneiramente. Poderia resumir-se numa guinada linguistica a
mudança de postura: "da prática de uma pirotecnia insulsa,
passa-se às mesas de diálogo, infrutífero e
interminável".
Que é ao que leva a mesa de diálogo. Em primeiro lugar, algo que
se vê, com pessimismo histórico e até metafisicamente, como
empate entre o poder constituinte da multidão confrontada com o poder
constituído
. Num lado estão os homens nas ruas, com articulações
fugazes, inermes e, o que é pior, sem propósito definido e sem
ideia de um programa acerca do que se tem por objectivo. Mais que ideias
há emoções, afectos, broncas contra o estabelecido, contra
o que representa o poder que os marginaliza, os empobrece, os discrimina. Isto
não é pouca coisa, mas é o resultado directo da falta de
organização, da falta de preparação
política, do culto ao "movimento". Exactamente à
Bernstein, para quem "o objectivo não é nada, o movimento
é tudo". À frente está o poder constituído
que não é outra coisa senão a classe ou os sectores da
classe dominante articulada, com poder (inclusive armado), com suas
instituições e com seus partidos e seus órgãos de
produção ideológica esmagadores por sua
extensão e força.
É evidente que opor a "multidão" com as
característica de Le Bon (mera impulsividade, exaltação,
anonimato, etc) à classe constituída em poder é difundir o
pessimismo histórico, a impossibilidade da mudança real.
A classe operária não deixou de existir, inclusive García
Linera o demonstrou. Mas o grave erro metodológico é pensar que
a classe operária (que é evidente ter mudado em vários
aspectos) será sempre
classe em si e não poderá levantar-se em classe para si
. Expliquemo-nos. A classe operária existe desde que aparece o modo
capitalista de produção. A princípio não percebe
ou não sabe que sua existência pode ser diferente da triste
condição que arrasta, sobretudo nos alvores do capitalismo. A
seguir aparecerão os primeiros intérpretes dessa realidade dura e
deixa-se entrever a possibilidade de mudá-la. Nesse momento aparecem
cientistas capazes de explicar não só o funcionamento da
sociedade capitalista como também o carácter iniludível da
sua substituição por outra formação social mais
avançada com o reconhecimento do papel dos homens e mulheres na
regeneração da riqueza social e a necessidade de reconhecer
adequadamente essa contribuição, ou seja, reconhecendo a
necessidade da justiça social. Nesta mudança, o reconhecimento
do papel protagónico da classe operária, do seu carácter
de sujeito da mudança, foi muito bem recordado por Forrest Hilton
("Pulso" nº 193) ao citar Marx: "a classe operária
é revolucionária ou não é nada". De passagem
Hilton, investigador norte-americano, dá uma lição aos
teórico crioulos (seguidores de Antonio Negri) que pretendem
desvalorizar, dissolver a classe operária na informe, passageira e
instintiva multidão.
Mas há algo que não mudou: a teimosia classista que não
poderão dobrar os novos teóricos da conciliação de
classes. Assim o demonstra o processo de reorganização do
movimento operário e sindical que começou com a
depuração das suas direcções e com a
reassunção dos seus objectivos concretos e a consciência da
sua missão histórica de transformação social
revolucionária.
[*]
Primeiro-secretário do Partido Comunista da Bolívia
Este artigo encontra-se em
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