Luta de classes, "pactismo"
& teóricos transformers

por Marcos Domich [*]

Os novos teóricos pactistas, que começaram muito à esquerda, agora negam a possibilidade da mudança social. Suas defecções têm explicação nas suas falências teóricas, dissolvidas no afã do protagonismo.

A multidão e a tropa.  Cena em La Paz, dia 13/Fev/2003. A vida e o discurso de uma certa espécie de políticos parece dar corpo, de uma maneira muito explícita, a uma disposição inerente à sua maneira de ser, actuar e tornar-se personagem política. Surgem com grande espectacularidade e o seu radicalismo provoca arrepios. Mas uma vez implantados na cena, transformam-se em leitores de piedosas homilias. De pregadores da luta armada, da impossibilidade de qualquer conciliação com o inimigo, passam a sustentar a atenuação da luta de classes ao estabelecer a possibilidade de "transições pactuadas". Isto tem uma raiz teórica: aquela que postula o desaparecimento da classe operária e, consequentemente, a impossibilidade da sua evolução de classe em si, sem consciência da sua missão histórica, em classe para si, capaz de emancipar-se e com sua emancipação conseguir a emancipação de toda a sociedade. As "novas ideias" vêm envoltas em "novos conceitos", já não se fala de classe operária, nem sequer do conceito mais vasto de proletariado: fala-se de "classes subordinadas", como uma categoria que sugere o congelamento histórico, a impossibilidade de transformar a realidade actual. Quase como Fukuyama: o desenvolvimento histórico concluiu-se e o capitalismo é eterno.

A previsível evolução política dos personagens em causa pode ser resumida num processo de duas vertentes que muitas vezes ocorre num mesmo indivíduo e de maneira alternativa. Alguém com talento propôs denominar às duas facetas dessa evolução "mutações e migrações" políticas. As migrações referem-se às transferências de umas organizações partidárias para outras e, ao que parece, é um fenómeno que tem muito a ver com a utilização de oportunidades de duas espécies: oportunidade de figuração e oportunidade (menos santa) de usufruto de posições. Num bom número de casos as duas espécies de oportunidades são aproveitadas em simultâneo. Neste tipo de trânsfugas, a preparação, a sapiência, o brilho e outros adornos do intelecto são desnecessários. Pelo contrário, tornam-se incómodos porque do que se trata é de aboletar-se e não fazer sombra a ninguém. Sua divisa é o "pragmatismo". O resultado é, obviamente, um personagem abominável.

As mutações têm um ar mais aceitável: implicam uma mudança das essências e a essência, neste caso, está na esfera das ideias, do conhecimento, da ideologia. Aqui as acrobacias dialécticas são espectaculares; por vezes não isentas de certa esquisitice. O ideólogo ultra de ontem, cultor da simbologia das armas, é agora pouco menos que devoto da Madre Teresa de Calcutá. Nem sempre mudam de orgaização partidária, estas importam-lhes pouco; o vital é onde está ele, seu ego, seu páthos é a egolatria.

Na vida social — enquanto existirem a luta de classes e os agrupamentos e seitas políticas — nunca deixará de haver exemplos, no plano pessoal ou no grupal, de mutações ou migrações diante das quais só os ingénuos ou os ignorantes da história nacional ou mundial ficam de boca aberta. Não lhes cabe na cabeça que aquele personagem, geralmente jovem, simpático — que diz abraçar com radicalismo e firmeza causas nobres e altos princípios, pelos quais oferece a vida, o sacrificar da família, da tranquilidade e das perspectivas de uma existência cómoda — apareça depois teorizando sobre a necessidade de mudar metas, de ser "realistas" e acaba propondo acções políticas de sentido e orientação opostas às que antes abominava altaneiramente. Poderia resumir-se numa guinada linguistica a mudança de postura: "da prática de uma pirotecnia insulsa, passa-se às mesas de diálogo, infrutífero e interminável".

Que é ao que leva a mesa de diálogo. Em primeiro lugar, algo que se vê, com pessimismo histórico e até metafisicamente, como empate entre o poder constituinte da multidão confrontada com o poder constituído . Num lado estão os homens nas ruas, com articulações fugazes, inermes e, o que é pior, sem propósito definido e sem ideia de um programa acerca do que se tem por objectivo. Mais que ideias há emoções, afectos, broncas contra o estabelecido, contra o que representa o poder que os marginaliza, os empobrece, os discrimina. Isto não é pouca coisa, mas é o resultado directo da falta de organização, da falta de preparação política, do culto ao "movimento". Exactamente à Bernstein, para quem "o objectivo não é nada, o movimento é tudo". À frente está o poder constituído que não é outra coisa senão a classe ou os sectores da classe dominante articulada, com poder (inclusive armado), com suas instituições e com seus partidos e seus órgãos de produção ideológica — esmagadores por sua extensão e força.

É evidente que opor a "multidão" com as característica de Le Bon (mera impulsividade, exaltação, anonimato, etc) à classe constituída em poder é difundir o pessimismo histórico, a impossibilidade da mudança real.

A classe operária não deixou de existir, inclusive García Linera o demonstrou. Mas o grave erro metodológico é pensar que a classe operária (que é evidente ter mudado em vários aspectos) será sempre classe em si e não poderá levantar-se em classe para si . Expliquemo-nos. A classe operária existe desde que aparece o modo capitalista de produção. A princípio não percebe ou não sabe que sua existência pode ser diferente da triste condição que arrasta, sobretudo nos alvores do capitalismo. A seguir aparecerão os primeiros intérpretes dessa realidade dura e deixa-se entrever a possibilidade de mudá-la. Nesse momento aparecem cientistas capazes de explicar não só o funcionamento da sociedade capitalista como também o carácter iniludível da sua substituição por outra formação social mais avançada com o reconhecimento do papel dos homens e mulheres na regeneração da riqueza social e a necessidade de reconhecer adequadamente essa contribuição, ou seja, reconhecendo a necessidade da justiça social. Nesta mudança, o reconhecimento do papel protagónico da classe operária, do seu carácter de sujeito da mudança, foi muito bem recordado por Forrest Hilton ("Pulso" nº 193) ao citar Marx: "a classe operária é revolucionária ou não é nada". De passagem Hilton, investigador norte-americano, dá uma lição aos teórico crioulos (seguidores de Antonio Negri) que pretendem desvalorizar, dissolver a classe operária na informe, passageira e instintiva multidão.

Mas há algo que não mudou: a teimosia classista que não poderão dobrar os novos teóricos da conciliação de classes. Assim o demonstra o processo de reorganização do movimento operário e sindical que começou com a depuração das suas direcções e com a reassunção dos seus objectivos concretos e a consciência da sua missão histórica de transformação social revolucionária.

[*] Primeiro-secretário do Partido Comunista da Bolívia

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

06/Mai/03