por José Reinaldo Carvalho
A rebelião
popular que sacode a Bolívia desde 15 de setembro, quando os camponeses
da área do Lago Titicaca iniciaram o bloqueio das estradas em protesto
contra a exportação de gás para os Estados Unidos,
intensificada nos últimos dias com as combativas ações nas
ruas de La Paz e outras cidades do país, é um marcante
acontecimento político de enorme significado para as forças
progressistas da América Latina. Não por acaso, ganhou ampla
repercussão em todo o mundo.
No momento em que
escrevemos estas notas, estamos longe, muito longe do desfecho da
situação. Na frente interna, Sanchez de Lozada, agora
desmascarado como tiranete e verdugo, faz piruetas para se aferrar ao poder.
Há não muito tempo, o farsante buscava credenciamento junto
às forças de esquerda do continente em fóruns
multilaterais de partidos políticos. No plano externo, mobilizam-se as
chancelarias. O imperialismo norte-americano aciona os seus mecanismos
diplomáticos e começa a proferir ameaças: Não
toleraremos nenhuma interrupção da ordem constitucional e
não apoiaremos nenhum regime que se instaure por meios não
democráticos na Bolívia, diz um comunicado do Departamento
de Estado. Enquanto isso, o embaixador norte-americano em La Paz se movimenta
com desenvoltura visando a encontrar uma solução que assegure a
permanência do seu acólito no poder. Mas não se descarta,
por enquanto, a decretação do Estado de Sítio, a
suspensão dos direitos individuais e das liberdades democráticas
fundamentais, ou seja, o recurso a medidas não democráticas.
A crise boliviana
contém os ingredientes de uma situação que chegou ao
limite. Somente em casos extremos, de deterioração da
situação econômica, degradação da vida social
e esgotamento do quadro político normal, chega-se a uma
situação semelhante. O centro da política de Sanchez de
Lozada tem sido o arrocho sobre o povo combinado com um descarado entreguismo.
Em determinadas circunstâncias a fórmula é fatal. Sua
aplicação cobra um impagável preço em sangue, suor
e lágrimas de um povo já historicamente depauperado pela
sucessão de governos anti-nacionais e antipopulares.
Em face da inevitável ira popular os governantes comprometidos com
semelhantes orientações se despem das vestes de democratas e se
revelam por inteiro como sanguinários repressores. É por isso
que, diversos em suas particularidades, os acontecimentos em curso na
Bolívia, carregam a mesma essência de violência
política contra-revolucionária acionada pelo governo das
forças conservadoras. Os tanques nas ruas, a repressão sangrenta,
o verdadeiro massacre que já resultou na morte de dezenas de pessoas
são a revelação eloqüente dos limites institucionais
dos regimes conservadores vigentes em nosso continente. E não me refiro
aos aspectos doutrinários do caráter de classe do
Estado, o que por suposto está presente, mas se trata evidentemente de
outra discussão. O que ponho em tela de juízo são os
limites da situação política em estrito senso, quando esta
serve de sustentáculo a políticas que não têm
qualquer liame com os interesses nacionais e as expectativas populares. Na
Bolívia, além disso, a política de arrocho e o
entreguismo se entrelaçaram com uma crise de legitimidade, que vem da
precária maioria obtida por Sanchez de Lozada no pleito presidencial, em
que foi escancarada e abusiva a ingerência norte-americana.
Para governar, o
presidente constituiu uma megacoligação juntando o que há
de pior na constelação política do país e adotou um
programa econômico patrocinado pelos Estados Unidos. Remeto o leitor para
o lúcido artigo de Marcos Domich, primeiro-secretário do Partido
Comunista da Bolívia, publicado ontem no sítio
resistir.info
. Entre outras coisas, o dirigente comunista boliviano revela o que
está por trás da chamada Lei de Hidrocarbonetos e da
decisão de exportar gás para os Estados Unidos: Na
geopolítica ianque, a Bolívia tem um lugar marcado ser
fonte de hidrocarbonetos, colmatar a fome de gás que tem a
Califórnia, a quinta economia mundial, segundo cálculo de
peritos. Conclusão: possuir 1.614 bilhões de metros
cúbicos de gás não só é fonte de
esperança como também de temores bem fundamentados, sabendo-se
das ambições e da falta de escrúpulos de Bush e do seu
petro-poder.
A sangrenta
repressão ao povo cobra alto preço em isolamento político
ao governo de Sanchez de Lozada. Claramente suas posições
claudicam. A megacoligação se esboroou, multiplicam-se as
defecções na base governista, de que é exemplo maior o
rompimento do vice-presidente com o titular. Predomina a incerteza sobre a
durabilidade do mandato presidencial e todas as forças políticas
são assaltadas pela sensação de instabilidade. Até
mesmo o alto comando militar que acionou as armas contra o povo dá
sinais de divisão em suas fileiras e de lealdade relativa ao presidente.
Num quadro como este, faz
todo o sentido a proposta das forças progressistas do país, que
Vermelho
publica em primeira mão de que perante a renúncia do presidente
Lozada exigência
das multidões sublevadas o vice-presidente assuma
constitucionalmente o poder, com o compromisso de formar um governo
provisório que em prazo hábil convoque uma Assembléia
Constituinte para reorganizar o país. É a única
solução para interromper o banho de sangue e abrir caminho
à reconstrução da democracia e da soberania nacional na
Bolívia.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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