Duas tendências convergentes
Rumo à implosão económica e à
explosão social
Para onde vai a Argentina? Sua evolução é assinalada por
duas tendências convergentes que em 2018 foram ganhando velocidade:
por
um lado, a marcha rumo à implosão económica e, por outro,
a rota não menos veloz rumo à explosão social.
Não é seguro que cada uma delas, ou ambas em conjunto, cheguem ao
ponto de uma ruptura que mude radicalmente o panorama nacional. Entretanto, o
seu desenvolvimento começa a sobredeterminar o comportamento dos
círculos dirigentes.
Por um lado a economia vai entrando numa recessão pilotada pelo FMI, sem
nenhuma possibilidade de recuperação pelo menos no curto e
médio prazo. A sucessão de ajustes exigida pelo Fundo
diminuirá cada vez mais o mercado interno (que já vinha
declinando desde a chegada de Macri), destruindo o tecido produtivo e
empobrecendo o grosso da população. Essa dinâmica conduz
inevitavelmente à implosão económica, para um momento no
qual se desmoronam o conjunto do aparelho produtivo (só algumas poucas
ilhas poderiam chegar a salvar-se), extensas redes comerciais e uma
multidão de serviços.
Õ teoricamente expectável nessas situações é
que o tecido social e sua trama cultural se desintegrem ao ritmo da
recessão até finalmente entrar em colapso. Entretanto, no caso
argentino está a desenvolver-se um fenómeno pouco frequente que
não seguiria a rota estabelecida pela teoria: enquanto a economia
declina rumo à implosão, a partir da base da sociedade foram-se
gerando formas de acção não só de resistência
como também ofensivas que vão mais além das
reivindicações económicas. Trata-se de uma tendência
que se vai ampliando e que aponta para uma grande explosão popular, um
possível tsunami social que ameaça submergir a trama
institucional e mediática que sustenta o sistema.
De qualquer modo, não é inevitável que se produzam
finalmente a implosão nem a explosão. Diversos factores podem
atrasá-las de maneira significativa ou inclusive diluí-las em
processos de degradação de grande amplitude. A recessão
por exemplo poderia chegar a encontrar um horizonte de
"equilíbrio" sob a forma de uma
"economia de baixa intensidade"
com um mercado interno comprimido, altas percentagens de desemprego,
subemprego, pobreza e indigência e pequenos pólos de altos
rendimentos. Em coincidência com isso as resistências e
rebeliões sociais agora presentes poderiam chegar a declinar, golpeadas
pela crise económica, a manipulação mediática e a
repressão.
Ainda que esse cenário de "paz de cemitério",
ilusão sinistra da elite dominante, se contraponha à
dinâmica financeira, saqueadora, desestabilizante, da referida elite,
componente periférica de um processo parasitário global que a
sobredetermina. E também se contraponha o visível potencial
criativo das forças populares avalizado por toda a sua história.
Sem ir mais longe, recordemos a revolta de 2001 antecedida por uma prolongada
degradação neoliberal e os grandes massacres da ditadura militar.
O caminho da implosão
Em Dezembro de 2015 a equipe governante considerava que a
situação económica lhe permitiria realizar gigantescas
transferências de rendimentos sem que o barco se afundasse. Não
reparou (ou subestimou) que por baixo dessa realidade existiam fragilidades que
se haviam agravado nos últimos anos: os preços internacionais das
matérias-primas haviam sofrido um choque depressivo em 2014, o que
ensombrava o futuro do comércio externo. E a ampliação do
mercado interno, impulsionado pelo governo anterior mediante subidas suaves dos
salários reais acompanhadas por reduções sucessivas do
desemprego, começava a tocar o tecto. Para continuar pela via do mercado
interno teria sido necessário, mais cedo do que tarde, por em andamento
uma estratégia drástica de desconcentração de
rendimentos acompanhada pelo controle estatal de áreas chaves como as do
comércio externo e do sistema financeiro e assim impulsionar um processo
de desenvolvimento produtivo rápido. Alternativa oposta à
dinâmica concreta e às aspirações da alta burguesia
(parasitária, transnacionalizada) que apontavam para a
realização de um grande saqueio de recursos estatais e privados.
Assim, com a vitória de Macri, produziram-se mega transferências
para os grandes grupos económicos através de
isenções e reduções tributárias que
aumentaram o défice orçamental. Estes factos, somados à
libertação das importações geradora de um enorme
défice comercial e às desvalorizações do peso,
provocaram concentração de rendimentos, inflação e
arrefecimento económico. A avalanche de défices foi coberta com
dívidas em dólares ao que se acrescentou um insólito
casino especulativo em pesos convertíveis em dólares a
altíssimas taxas de juro (a orgia das Lebacs
[NR]
).
No segundo ano do seu mandato o governo procurou amortecer a recessão
com obras públicas financiadas com mais dívidas, dólares
que além disso serviam para tapar buracos orçamentais e
comerciais e para aceitar as fugas de capitais resultantes das diversas rapinas
e da retracção dos investimentos produtivos. A bolha de
dívidas não podia continuar a crescer indefinidamente e a festa
acabou em 2018 quando assomou o fantasma da insolvência e o governo
desesperado pediu auxílio ao FMI. Este, como não podia deixar de
ser, impôs-lhe um plano de ajuste que vai afundando a economia na
depressão.
O governo costuma lançar a culpa do descalabro financeiro à
subida "inesperada" das taxas de juro nos Estados Unidos que
provocaram uma espécie de efeito aspirador sobre os capitais
periféricos. A crise o endividamento acelerado argentino era
inevitável, talvez a subida das taxas norte-americanas a tenha
antecipado um pouco mas não muito. O globo das Lebacs tinha um
limite físico marcado pelas reservas líquidas do Banco Central,
claramente inferiores ao montante dolarizado desses papéis. A isso
há que somar os pagamentos exigidos pela dívida pública
directa em dólares numa conjuntura caracterizada por um forte
défice do comércio exterior e uma fuga de capitais persistente.
Isso já era visível em 2017 e a situação foi-se
agravando nos primeiros meses de 2018. O poder de fogo debilitado do Banco
Central perante possíveis turbulências ficou a nu e os credores
começaram a cheirar cenários de insolvência.
A pergunta a ser feita é o que tinham dentro das suas cabeças
Macri e os integrantes da sua equipe económica, entre fins de 2017 e
princípios de 2018, perante a iminência do desenlace. Alguns
analistas supõem que se tratou uma avaliação
errónea (ou de má informação) do comportamento dos
grupos financeiros empenhados na rapina especulativa, coisa difícil de
aceitar uma vez que aqueles que pilotavam o negócio dentro do governo
faziam parte desses grupos. O mistério aumenta quando constatamos que a
subida das taxas de juros nos Estados Unidos era completamente
previsível pois fazia parte da estratégia monetária
anunciada muito tempo antes pelas autoridades desse país. A
explicação mais razoável é que a mega
operação financeira montada pelo governo converteu-se numa
armadilha da qual não pôde (e não pode) sair. A
convergência de interesses que a sobredetermina constitui um super poder
saqueador cuja dinâmica ultrapassa os actores governamentais. De qualquer
modo, a psicologia de Macri, nutrida pela brutalidade curto-prazista dos
negócios mafiosos
[1]
, adapta-se comodamente a essa louca fuga para a frente.
Os crápulas transparentes
Enquanto isso a impopularidade do governo cresce dia a dia e os protestos
sociais multiplicam-se. A Argentina encaminha-se a passo rápido para uma
crise de governabilidade provavelmente muito superior à de 2001,
alentada pelo ruir económico em curso.
A alternativa repressiva não deve ser descartada. O carácter
aventureiro do macrismo, sua raiz lumpen-burguesa, o núcleo duro social
neofascista que o cerca, podem dar pé a uma tentativa desesperada desse
tipo impulsionada pela viabilidade declinante de um Plano B sob controle
oficialista em torno da hipotética candidatura de Maria Eugenia Vidal, a
qual vai perdendo peso arrastada pela impopularidade do presidente. A isso
acrescentam-se não poucos méritos próprios como o
escândalo recente devido ao descobrimento da utilização de
fundos negros nas suas campanhas eleitorais.
Uma peça importante tanto na instalação como no
funcionamento posterior do governo foi e continua a ser o
opoficialismo,
mistura gelatinosa de dirigentes políticos e sindicais, onde predomina
a direita peronista mas povoada também por não poucos gorilas
soltos, que costumam combinar "críticas sensatas" ao
oficialismo, uma ou outra rebeldia de pouca monta e uma obsequência
prática. À medida que a crise se agrava vão surgindo desse
lado toda classe de opções, algumas fantasiosas e outras mais
realistas, destinadas a preservar os interesses dominantes. Elas vão
desde a ampliação do gabinete presidencial numa espécie de
governo de "unidade nacional" até à
formação de uma variante eleitoral leopardista
[NR]
que substituiria Macri em 2019 (ou antes).
Como parte do show não podiam faltar as declarações de
Eduardo Duhalde que, depois de vaticinar que "o próximo
presidente... vai ser Roberto Lavagna" e de elogiá-lo a seguir,
acrescentava que "o acordo com o FMI ajuda a sair (da crise) apesar de a
maioria dos argentinos estar contra essa medida"
[2]
. O rosto de empregado de pompas fúnebres de Lavagna encaixa bastante
bem com o destino fundo-monetarista que Duhalde assinala para a Argentina.
Contudo, não é nada evidente que perante a tormenta que se
avizinha essa alternativa ou outra parecida funcionem .
O caminho da explosão
Ao contrário das danças nas cúpulas, desde o começo
do governo macrista vèem-se desdobrando uma ampla variedade de protestos
populares. Como o correr dos meses não só foram ganhando
carácter maciço como também autonomia. Esta não
é total pois surge como uma espécie de fenómeno complexo
que inclui desde manifestações sociais independentes dos
dirigentes políticos e sindicais, onde se torna visível o
carácter auto-convocatório, até chegar àquelas
enquadradas por dirigentes, sobretudo sindicais, passando por outras que
acompanham os dirigentes orgânicos ultrapassando-os em certos casos e em
colocando-os em situações incómodas.
Trata-se de uma sucessão interminável de
mobilizações populares de todo tipo, muitas delas gigantescas, na
maior parte pacíficas mas com alguns rebentos de
radicalização (exemplo: os protesto de 18 de Dezembro de 2017
frente ao Congresso) preocupantes para oficialistas e upoficialistas pois
fazem-lhes temer revoltas de grande magnitude num futuro não muito
longínquo. À medida que a crise se vá aprofundando esse
cenário será cada vez mais provável. A onda pode continuar
a crescer até engendrar uma explosão social de dimensão
oceânica, muito mais devastadora que o furacão de 2001.
A intoxicação mediática não pôde
arrefecê-la, mas o seu rendimento manipulador é decrescente. As
repressões pontuais tornaram-se ineficazes, não geraram temor e
sim indignação. De qualquer modo, desde o primeiro dia e de modo
sistemático o governo tem formado uma espécie de polícia
militar integrando forças convencionais (polícias, gendarmeria,
etc), treinando-as com assessoria norteamericana-israelense, dotando-as de
armamento adequado. A última novidade foi a decisão de incorporar
as Forças Armadas a tarefas de repressão interna. Mas nada
assegura ao governo a utilização eficaz desse engendro perante
uma revolta popular em grande escala.
A blindagem mediática está a enferrujar-se e a blindagem
militar-policial tem um destino incerto. Enquanto isso o governo continua a
fazer mais (muito mais) do mesmo: continua com a sua estratégia de
controle mediático total atacando agora os últimos (e já
marginais) redutos críticos e desenvolvendo o aparelho repressivo
convencido da iminência de explosões sociais. Ele não sabe
quando se verificará uma nova corrida cambial, nem qual será o
ritmo do afundamento económico (os últimos dados comparativos,
Maio 2017 Maio 2018 mostram, segundo dados oficiais, uma queda do
Produto Interno Bruto da ordem dos 5,8%). Tão pouco sabe quando nem como
se exprimirá a bronca popular no que resta do ano, mas enfrenta esses e
outros perigos acentuando sua dinâmica ditatorial. A Argentina entrou em
Terra Incognita.
30/Julho/2018
Notas
1. Jorge Beinstein, "Macri, orígenes e instalación de una
dictadura mafiosa", a descarregar em
resistir.info/livros/beinstein_macri_mafia.pdf
2. Declaraciones de Eduardo Duhalde a Radio Cooperativa, "Duhalde pide las
PASO en el PJ: "El que quiera presentarse tiene que ir",
El Destape,
www.eldestapeweb.com/...
NR
[1] LEBACS: Letras do Banco Central. títulos de curtíssimo prazo
que constituem o principal meio de financiamento do governo argentino.
[2] Leopardismo: De
Il gattopardo
, livro de Lampedusa em que o príncipe Tommasi diz a famosa frase
"É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma".
[*]
Economista.
O original encontra-se em
beinstein.lahaine.org/b2-img/Beinstein_dostendencias_26Julio2018.pdf
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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