A Grã-Bretanha anuncia orgulhosamente um plano para "proteger
jornalistas" mas se realmente se preocupasse libertaria Julian
Assange
O novo "plano de ação" do governo do Reino Unido para
proteger jornalistas pouco fará para puxar o lustro às
credenciais de um projetado paladino da liberdade dos media
que continua a manter preso o jornalista dissidente mais conhecido do mundo.
Continuando a promover-se como um
soi-disant
defensor global da liberdade jornalística, o governo do Reino Unido
acabou de revelar um
Plano Nacional de Ação para a Segurança dos Jornalistas
a fim de proteger jornalistas, homens e
mulheres, da perseguição e de ameaças. Segundo parece, os
jornalistas do Reino Unido "têm sido vítimas de
violências e ataques quando exercem o seu trabalho" e o governo
está a correr altruistamente em seu socorro.
O
plano
envolve
"uma formação nova para agentes da polícia assim como
para jornalistas aspirantes e existentes, além de compromissos das
plataformas de redes sociais e de serviços dos ministérios
públicos para exercerem uma ação dura contra os
infratores".
Dizem-nos que o Facebook e o Twitter estão empenhados, prometendo
"reagir rapidamente a queixas de ameaças à segurança
de jornalistas". O governo não faz referência à
ameaça que o Facebook e o Twitter representam para o jornalismo.
Durante os últimos anos, o Twitter e o Facebook têm encerrado ou
ameaçado
fechar contas
de jornalistas e com grande entusiasmo.
Além disso, durante as eleições presidenciais de 2020 nos
EUA, os dois gigantes das redes sociais interferiram com o trabalho de
jornalistas, impedindo a partilha dos
artigos pouco lisonjeiros do New York Post sobre Hunter Biden
, filho do então candidato Joe Biden. O Twitter foi mais longe e
bloqueou a conta do jornal durante as duas semanas críticas antes das
eleições.
O primeiro-ministro (e antigo jornalista) Boris Johnson emitiu uma nobre
declaração
:
"A liberdade de expressão e uma imprensa livre estão no
cerne da nossa democracia e os jornalistas devem poder realizar o seu trabalho
sem serem
ameaçados. Os ataques cobardes e os abusos dirigidos contra os
repórteres por fazerem o seu trabalho não podem continuar. O
plano de ação é apenas o início do nosso trabalho
para proteger os que mantêm o público informado e defender os que
obrigam o governo a assumir as suas responsabilidades".
No meio de toda esta verborreia autocongratulatória que emana do
governo, é difícil perceber neste plano mais do que uma promessa
de coligir dados sobre as alegadas perseguições a jornalistas.
Entre os jornalistas sobre os quais o governo de Boris Johnson não
está apressado em coligir dados está, obviamente, Julian Assange.
Assange definha há quase dois anos na prisão de Belmarsh, uma
prisão de alta segurança, alcunhada de
Guantánamo britânica
. Os presos que ali se encontram incluem
assassinos em série
,
violadores de crianças
e
assassinos de crianças
, os
assassinos
de 2013 do soldado do exército americano em Woolwich, o
bombista da
Arena de Manchester
e o
bombista de Londres
.
Julian Assange só foi condenado pelo crime menor, processual, de
infringir a fiança. Claro que Assange não infringiu a
fiança. Em novembro de 2010, os procuradores suecos obtiveram um Mandato
Europeu de Detenção, exigindo que Assange fosse detido no Reino
Unido para ser interrogado sobre acusações de ofensas sexuais
feitas por duas mulheres com quem tivera breves relações sexuais
e que queriam que ele se submetesse a um teste de VIH. Assange tinha de ser
interrogado pessoalmente e apenas na Suécia.
Assange contestou o pedido de extradição, suspeitando que
não passava de uma artimanha para o apanhar na Suécia e
daí extraditá-lo para os Estados Unidos que, com toda a
probabilidade, tinha preparado um processo secreto contra ele. Os tribunais
britânicos consistentemente decidiram contra Assange e a favor do pedido
de extradição sueco. A 15 de junho de 2012, na sequência da
rejeição da sua contestação ao pedido de
extradição sueco, Assange refugiou-se na embaixada do Equador em
Londres, pedindo asilo político.
Soubemos posteriormente por trocas de emails entre os promotores suecos e os
promotores da Coroa do Reino Unido, cujo chefe na altura era o atual
líder do Partido Trabalhista, Sir Keir Starmr, que os britânicos
encorajaram os suecos a recusarem-se a vir a Londres para entrevistar Assange.
Embora a Suécia tenha anunciado em maio de 2017 que havia abandonado a
investigação de Assange, as autoridades britânicas
insistiram que Assange continuasse a enfrentar a prisão quando
saísse da embaixada, de acordo com a fuga à fiança.
A 11 de abril de 2019, o governo do Equador retirou o estatuto de asilo a
Assange e convidou as autoridades britânicas a entrarem na embaixada e a
detê-lo. Assange foi apresentado a um juiz e condenado imediatamente a
prisão durante 50 semanas. Minutos depois da detenção, os
Estados Unidos confirmaram o que Assange sempre tinha afirmado. Anunciaram que
iam pedir a sua extradição com base num processo que tinham
preparado um ano antes.
A acusação era que Assange tinha conspirado com Chelsea Mannning
para piratear um sistema de segurança informático. Um mês
depois, os Estados Unidos anunciaram mais 17 acusações contra
Assange, ao abrigo da Lei de Espionagem.
Em menos de um mês, o secretário de Estado para os Assuntos
Internos, Sajid Javid, assinou o mandato de extradição que iria
permitir a extradição de Assange para os Estados Unidos. Javid
fez isso, apesar de o
tratado de extradição
de 2004 entre os EUA e o Reino Unido afirmar explicitamente que
"A extradição não será autorizada se a ofensa
para a qual é pedida a extradição por uma ofensa
política".
A "ofensa" de Assange publicação de
documentos governamentais pormenorizando crimes de guerra e abusos de poder de
oficiais é a mais "política" que qualquer ofensa
possa ser.
No início de janeiro de 2021, a juíza Vanessa Baraitser recusou o
pedido dos EUA para a extradição de Assange, alegando que as
condições desumanas numa prisão de alta segurança
dos EUA podiam levar Assange ao suicídio. Depois, com uma
inconsistência extraordinária, ordenou que Assange se mantivesse
em Belmarsh, a prisão de alta segurança no Reino Unido, enquanto
os EUA apelavam dessa decisão um processo legal que pode durar
anos.
Contudo, apesar de Assange definhar na prisão, no meio de uma pandemia
mundial e entre alguns dos piores criminosos do país, o governo do Reino
Unido desencadeou uma campanha para se gabar de ser o paladino mundial da
liberdade jornalística e o flagelo de regimes obscuros que resistem
à transparência.
Em julho de 2019, um mês depois de o secretário de Estado dos
Assuntos Internos ter aceitado o pedido de extradição dos EUA, o
governo do Reino Unido foi o anfitrião, em conjunto com o Canadá,
de uma
Conferência Mundial sobre a Liberdade dos Media
,
"parte de uma campanha internacional para chamar a atenção
para a
liberdade dos media e aumentar as penas para os que tentarem restringi-la".
Dentro do espírito de chamar
"a atenção para a liberdade dos media",
o Gabinete dos Estrangeiros do Reino Unido recusou-se a permitir que a
RT
e a
Sputnik
assistissem à conferência. "Não autorizámos a
RT
nem a
Sputnik
para assistir à conferência por causa do seu papel ativo em
divulgar desinformação", explicou o
Foreign Office
.
Sem uma ponta de ironia, Jeremy Hunt, o secretário dos Assuntos
Estrangeiros
declarou
aos presentes na conferência:
"Estamos do lado dos que procuram noticiar a verdade e esclarecer os
factos. Somos contra os que suprimem ou censuram ou exercem
vinganças".
Raramente se passa um dia em que o governo do Reino Unido não se refira
a perseguição de jornalistas algures fora do Reino Unido,
evidentemente.
Dominic Raab, secretário de Estado dos Assuntos Estrangeiros falou da
perseguição de jornalistas na Bielorrússia. Ficou
perturbado, imaginem, com a recusa de acreditações.
"As autoridades da Bielorrússia",
publicou num tuíte
em agosto de 2020,
"continuam a visar os media da @BBCNews, locais e internacionais,
cancelando as acreditações para notícias sobre a
Bielorrússia".
O Reino Unido
defendeu
a causa de Svetlana Prokopyeva, que foi condenada pela acusação
de
"justificar o terrorismo",
embora não tivesse sido enviada para a prisão. Durante os
recentes protestos quanto ao julgamento e prisão de Alexey Navalny, Raab
advertiu
firmemente a Rússia para não visar jornalistas.
Apesar do auto-regozijo do governo do Reino Unido pelo compromisso com a
liberdade dos media, o seu registo é pouco impressionante. A
organização de
defesa dos jornalistas Repórteres sem Fronteiras publica um estudo anual
sobre o estado da liberdade jornalística, a nível mundial.
Segundo o mais
recente
Índice de Liberdade da World Press, o Reino Unido
desceu para o 35.º lugar a nível mundial. Entre os problemas
levantados pelos Repórteres sem Fronteiras estavam a continuada
prisão de Assange, assim como o inquérito criminal à
publicação de julho de 2019 sobre telegramas diplomáticos
embaraçosos. Os documentos, como os da WikLeaks, nitidamente
genuínos desde que apareceram na imprensa, levaram ao rápido
pedido de demissão do embaixador britânico em Washington.
O "plano de ação" do governo não só
é para sua própria conveniência, como também
é desonesto. Porque é que os jornalistas obtêm
proteções especiais que são negadas a outros? Qualquer
sujeito aos olhares do público políticos, advogados,
juízes, atletas, atores, celebridades da TV pode sofrer abusos,
insultos pessoais e ameaças. Esta pressa em destacar
proteção especial para jornalistas cheira a
bajulação governamental, uma tentativa grosseira para lisonjear
jornalistas, sugerindo que eles fazem uma coisa assustadoramente perigosa, uma
coisa que provavelmente provocará interesses poderosos. Muito poucos
jornalistas fazem tal coisa. Na verdade, a ansiedade do governo em elogiar as
virtudes dos jornalistas indica obviamente que pouco tem a recear deles. O tipo
de jornalista que corre riscos, que dedica a sua vida a tornar o governo
transparente um Julian Assange, por outras palavras não
é o tipo de jornalista que o governo do Reino Unido esteja interessado
em proteger. Pelo contrário, ajudará e instigará a sua
perseguição.
10/março/2021
[*]
Bolseiro de investigação no Global Policy Institute (Londres) e
autor de
Bombs for Peace: NATO's Humanitarian War on Yugoslavia
. Twitter: @GeorgeSzamuely
O original encontra-se em
www.rt.com/op-ed/517747-britain-protect-journalists-julian-assange/
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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