A Grã-Bretanha anuncia orgulhosamente um plano para "proteger jornalistas" – mas se realmente se preocupasse libertaria Julian Assange

por George Szamuely [*]

Assange desenhado por Mr. Fish. O novo "plano de ação" do governo do Reino Unido para proteger jornalistas pouco fará para puxar o lustro às credenciais de um projetado paladino da liberdade dos media que continua a manter preso o jornalista dissidente mais conhecido do mundo.

Continuando a promover-se como um soi-disant defensor global da liberdade jornalística, o governo do Reino Unido acabou de revelar um Plano Nacional de Ação para a Segurança dos Jornalistas a fim de proteger jornalistas, homens e mulheres, da perseguição e de ameaças. Segundo parece, os jornalistas do Reino Unido "têm sido vítimas de violências e ataques quando exercem o seu trabalho" e o governo está a correr altruistamente em seu socorro.

O plano envolve "uma formação nova para agentes da polícia assim como para jornalistas aspirantes e existentes, além de compromissos das plataformas de redes sociais e de serviços dos ministérios públicos para exercerem uma ação dura contra os infratores".

Dizem-nos que o Facebook e o Twitter estão empenhados, prometendo "reagir rapidamente a queixas de ameaças à segurança de jornalistas". O governo não faz referência à ameaça que o Facebook e o Twitter representam para o jornalismo. Durante os últimos anos, o Twitter e o Facebook têm encerrado ou ameaçado fechar contas de jornalistas e com grande entusiasmo. Além disso, durante as eleições presidenciais de 2020 nos EUA, os dois gigantes das redes sociais interferiram com o trabalho de jornalistas, impedindo a partilha dos artigos pouco lisonjeiros do New York Post sobre Hunter Biden , filho do então candidato Joe Biden. O Twitter foi mais longe e bloqueou a conta do jornal durante as duas semanas críticas antes das eleições.

O primeiro-ministro (e antigo jornalista) Boris Johnson emitiu uma nobre declaração : "A liberdade de expressão e uma imprensa livre estão no cerne da nossa democracia e os jornalistas devem poder realizar o seu trabalho sem serem ameaçados. Os ataques cobardes e os abusos dirigidos contra os repórteres por fazerem o seu trabalho não podem continuar. O plano de ação é apenas o início do nosso trabalho para proteger os que mantêm o público informado e defender os que obrigam o governo a assumir as suas responsabilidades".

No meio de toda esta verborreia autocongratulatória que emana do governo, é difícil perceber neste plano mais do que uma promessa de coligir dados sobre as alegadas perseguições a jornalistas.

Entre os jornalistas sobre os quais o governo de Boris Johnson não está apressado em coligir dados está, obviamente, Julian Assange. Assange definha há quase dois anos na prisão de Belmarsh, uma prisão de alta segurança, alcunhada de Guantánamo britânica . Os presos que ali se encontram incluem assassinos em série , violadores de crianças e assassinos de crianças , os assassinos de 2013 do soldado do exército americano em Woolwich, o bombista da Arena de Manchester e o bombista de Londres .

Julian Assange só foi condenado pelo crime menor, processual, de infringir a fiança. Claro que Assange não infringiu a fiança. Em novembro de 2010, os procuradores suecos obtiveram um Mandato Europeu de Detenção, exigindo que Assange fosse detido no Reino Unido para ser interrogado sobre acusações de ofensas sexuais feitas por duas mulheres com quem tivera breves relações sexuais e que queriam que ele se submetesse a um teste de VIH. Assange tinha de ser interrogado pessoalmente e apenas na Suécia.

Assange contestou o pedido de extradição, suspeitando que não passava de uma artimanha para o apanhar na Suécia e daí extraditá-lo para os Estados Unidos que, com toda a probabilidade, tinha preparado um processo secreto contra ele. Os tribunais britânicos consistentemente decidiram contra Assange e a favor do pedido de extradição sueco. A 15 de junho de 2012, na sequência da rejeição da sua contestação ao pedido de extradição sueco, Assange refugiou-se na embaixada do Equador em Londres, pedindo asilo político.

Soubemos posteriormente por trocas de emails entre os promotores suecos e os promotores da Coroa do Reino Unido, cujo chefe na altura era o atual líder do Partido Trabalhista, Sir Keir Starmr, que os britânicos encorajaram os suecos a recusarem-se a vir a Londres para entrevistar Assange.

Embora a Suécia tenha anunciado em maio de 2017 que havia abandonado a investigação de Assange, as autoridades britânicas insistiram que Assange continuasse a enfrentar a prisão quando saísse da embaixada, de acordo com a fuga à fiança.

A 11 de abril de 2019, o governo do Equador retirou o estatuto de asilo a Assange e convidou as autoridades britânicas a entrarem na embaixada e a detê-lo. Assange foi apresentado a um juiz e condenado imediatamente a prisão durante 50 semanas. Minutos depois da detenção, os Estados Unidos confirmaram o que Assange sempre tinha afirmado. Anunciaram que iam pedir a sua extradição com base num processo que tinham preparado um ano antes.

A acusação era que Assange tinha conspirado com Chelsea Mannning para piratear um sistema de segurança informático. Um mês depois, os Estados Unidos anunciaram mais 17 acusações contra Assange, ao abrigo da Lei de Espionagem.

Em menos de um mês, o secretário de Estado para os Assuntos Internos, Sajid Javid, assinou o mandato de extradição que iria permitir a extradição de Assange para os Estados Unidos. Javid fez isso, apesar de o tratado de extradição de 2004 entre os EUA e o Reino Unido afirmar explicitamente que "A extradição não será autorizada se a ofensa para a qual é pedida a extradição por uma ofensa política". A "ofensa" de Assange – publicação de documentos governamentais pormenorizando crimes de guerra e abusos de poder de oficiais – é a mais "política" que qualquer ofensa possa ser.

No início de janeiro de 2021, a juíza Vanessa Baraitser recusou o pedido dos EUA para a extradição de Assange, alegando que as condições desumanas numa prisão de alta segurança dos EUA podiam levar Assange ao suicídio. Depois, com uma inconsistência extraordinária, ordenou que Assange se mantivesse em Belmarsh, a prisão de alta segurança no Reino Unido, enquanto os EUA apelavam dessa decisão – um processo legal que pode durar anos.

Contudo, apesar de Assange definhar na prisão, no meio de uma pandemia mundial e entre alguns dos piores criminosos do país, o governo do Reino Unido desencadeou uma campanha para se gabar de ser o paladino mundial da liberdade jornalística e o flagelo de regimes obscuros que resistem à transparência.

Em julho de 2019, um mês depois de o secretário de Estado dos Assuntos Internos ter aceitado o pedido de extradição dos EUA, o governo do Reino Unido foi o anfitrião, em conjunto com o Canadá, de uma Conferência Mundial sobre a Liberdade dos Media , "parte de uma campanha internacional para chamar a atenção para a liberdade dos media e aumentar as penas para os que tentarem restringi-la". Dentro do espírito de chamar "a atenção para a liberdade dos media", o Gabinete dos Estrangeiros do Reino Unido recusou-se a permitir que a RT e a Sputnik assistissem à conferência. "Não autorizámos a RT nem a Sputnik para assistir à conferência por causa do seu papel ativo em divulgar desinformação", explicou o Foreign Office .

Sem uma ponta de ironia, Jeremy Hunt, o secretário dos Assuntos Estrangeiros declarou aos presentes na conferência: "Estamos do lado dos que procuram noticiar a verdade e esclarecer os factos. Somos contra os que suprimem ou censuram ou exercem vinganças".

Raramente se passa um dia em que o governo do Reino Unido não se refira a perseguição de jornalistas algures – fora do Reino Unido, evidentemente. Dominic Raab, secretário de Estado dos Assuntos Estrangeiros falou da perseguição de jornalistas na Bielorrússia. Ficou perturbado, imaginem, com a recusa de acreditações. "As autoridades da Bielorrússia", publicou num tuíte em agosto de 2020, "continuam a visar os media da @BBCNews, locais e internacionais, cancelando as acreditações para notícias sobre a Bielorrússia". O Reino Unido defendeu a causa de Svetlana Prokopyeva, que foi condenada pela acusação de "justificar o terrorismo", embora não tivesse sido enviada para a prisão. Durante os recentes protestos quanto ao julgamento e prisão de Alexey Navalny, Raab advertiu firmemente a Rússia para não visar jornalistas.

Apesar do auto-regozijo do governo do Reino Unido pelo compromisso com a liberdade dos media, o seu registo é pouco impressionante. A organização de defesa dos jornalistas Repórteres sem Fronteiras publica um estudo anual sobre o estado da liberdade jornalística, a nível mundial. Segundo o mais recente Índice de Liberdade da World Press, o Reino Unido desceu para o 35.º lugar a nível mundial. Entre os problemas levantados pelos Repórteres sem Fronteiras estavam a continuada prisão de Assange, assim como o inquérito criminal à publicação de julho de 2019 sobre telegramas diplomáticos embaraçosos. Os documentos, como os da WikLeaks, nitidamente genuínos desde que apareceram na imprensa, levaram ao rápido pedido de demissão do embaixador britânico em Washington.

O "plano de ação" do governo não só é para sua própria conveniência, como também é desonesto. Porque é que os jornalistas obtêm proteções especiais que são negadas a outros? Qualquer sujeito aos olhares do público – políticos, advogados, juízes, atletas, atores, celebridades da TV – pode sofrer abusos, insultos pessoais e ameaças. Esta pressa em destacar proteção especial para jornalistas cheira a bajulação governamental, uma tentativa grosseira para lisonjear jornalistas, sugerindo que eles fazem uma coisa assustadoramente perigosa, uma coisa que provavelmente provocará interesses poderosos. Muito poucos jornalistas fazem tal coisa. Na verdade, a ansiedade do governo em elogiar as virtudes dos jornalistas indica obviamente que pouco tem a recear deles. O tipo de jornalista que corre riscos, que dedica a sua vida a tornar o governo transparente – um Julian Assange, por outras palavras – não é o tipo de jornalista que o governo do Reino Unido esteja interessado em proteger. Pelo contrário, ajudará e instigará a sua perseguição.

10/março/2021

[*] Bolseiro de investigação no Global Policy Institute (Londres) e autor de Bombs for Peace: NATO's Humanitarian War on Yugoslavia . Twitter: @GeorgeSzamuely

O original encontra-se em www.rt.com/op-ed/517747-britain-protect-journalists-julian-assange/
Tradução de Margarida Ferreira.


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
17/Mar/21