"Pelas cenas que vimos, parecia a guerra entre a Palestina e Israel. Foi um jogo sangrento e brutalidade é uma palavra demasiado pequena para descrever o que estes canalhas sádicos estão a fazer. Quando fugimos dali, havia cadáveres debaixo dos nossos pés. As forças policiais estão agora a disparar de forma aleatória e contínua”.
Estudantes da Universidade Islâmica Internacional – Islamabad (IIU-I)
Os acontecimentos impressionantes das últimas 48 horas no Paquistão, e especificamente na capital Islamabad, continuam à espera de uma cobertura séria por parte do mundo. O regime da lei marcial não conseguiu impedir que manifestantes de todo o país marchassem e entrassem em Islamabad. Apesar de ter sido necessário importar milhares e milhares de contentores de transporte para isolar a cidade e impedir as pessoas de entrarem na capital, o establishment militar não conseguiu impedir a sua entrada. No entanto, o dilúvio de tergiversações incessantes que emanam do Inter-Services Public Relations (ISPR), o serviço de propaganda dos militares, tem continuado incessantemente e de modo nauseabundo.
A ferocidade da selvajaria estatal fez parar temporariamente o movimento de protesto. O antigo primeiro-ministro Imran Khan tem exigido sistematicamente que não só o seu Movimento para a Justiça seja totalmente pacifista como também desista nas situações em que haja a probabilidade de o seu próprio sangue ser derramado às mãos deste regime violento.
No entanto, para além das batalhas na rua, há uma guerra feroz de narrativas nas ondas de rádio.
A imagem dominante é a de que o Estado está a confrontar-se com multidões que atacam violentamente as forças de segurança. Como acontece frequentemente em revoltas populares em massa, a história verdadeira é exatamente o oposto.
A polícia federal não só lançou indiscriminadamente gás lacrimogéneo e balas de borracha sobre as centenas de milhares de pessoas que entraram em Islamabad, como começou agora a disparar ao vivo com balas reais. Milhares de pessoas ficaram feridas e pelo menos dezenas foram mortas. O mérito [da revelação] é da Al Jazeera e de alguns outros meios de comunicação social que se esforçaram por mostrar efetivamente nas ruas as omnipresentes balas disparadas.
O Fórum de Médicos do Paquistão, a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho estão a chamar a atenção para o facto de que uma das principais funções das forças policiais, nesta altura, é impedir que alimentos, medicamentos essenciais e necessidades médicas cheguem aos que conseguiram entrar na capital – especialmente os fornecimentos essenciais para os milhares de feridos, alguns fatalmente.
No entanto, espera-se que acreditemos que são manifestantes completamente desarmados (não foi mostrada uma única imagem que prove o contrário) que estão a infligir a violência.
De facto, e por incrível que pareça, tendo em conta a magnitude destes protestos, nem uma única propriedade foi danificada ou destruída. O único “confronto” com propriedade que ocorreu foi o facto de as pessoas subirem para os contentores e protestarem – e dançarem! – a partir dali.
Nesta fase crítica, os próximos dias serão cruciais para a exigência mais imediata da mobilização nacional: a libertação do antigo Primeiro-Ministro Imran Khan, bem como das dezenas de milhares de outros activistas do Movimento para a Justiça.
Há alguns aspectos cruciais do golpe do povo – bem como da resposta do estado de segurança nacional – a destacar nesta altura, sendo que muita desta informação foi divulgada pelos próprios oficiais e soldados corajosos em revolta:
1) O notoriamente venal Inter-Services Intelligence (ISI) está a dedicar cem por cento dos seus recursos humanos e esforços a infiltrar-se e a conduzir, ele próprio, actos de vandalismo e assassínios que são depois atribuídos aos manifestantes. De facto, houve dezenas de agentes provocadores do ISI apanhados em flagrante, como relatam a Al Jazeera e a CGTN. Mesmo antes desta última fase de desobediência civil em massa, o ISI já dedicava cerca de 80 a 90% da sua atenção aos “distúrbios civis” internos. De facto, muitos funcionários do ISI demitiram-se por estarem desgostosos por passarem todo o seu tempo na “Unidade de Guerra de Quinta Geração” da agência – essencialmente, monitorizando o Twitter/X durante todo o dia, pelo menos quando não é proibido no país.
2) Embora os manifestantes tenham vindo de zonas distantes das várias províncias do país, é evidente que a maioria vem da “terra Pashtun” – a província de KPK e especialmente as zonas tribais (FATA) que fazem fronteira com o Afeganistão. Parece que o círculo se fechou. Aqueles a quem as forças dos EUA-NATO e os militares paquistaneses infligiram um massacre generalizado e deslocações em massa durante os anos da “Guerra ao Terror”, aqueles a quem Khan sempre apoiou e defendeu face ao terrorismo de Estado – desceram agora sobre Islamabad com uma vingança.
3) Os generais paquistaneses anseiam por decretar outro banho de sangue como o de 1971 – o que foi perpetrado contra o então Paquistão Oriental (atual Bangladesh). Mas os dois grupos étnicos provinciais que compõem predominantemente o exército – Punjabis e Pashtuns – não são tão activistas como os seus superiores gostariam que fossem. A relutância dos soldados Pashtun e a sua recusa em atacar as mulheres e os homens do seu país, como já foi referido, deriva do facto de conhecerem perfeitamente o imenso sofrimento suportado pelas suas comunidades durante a “Guerra ao Terror”. Quanto aos Punjabis, sendo da província que tradicionalmente tem sido a mais pró-militar, sofreram uma metamorfose surpreendentemente rápida das suas sensibilidades e consciência sócio-políticas desde a expulsão de Khan na operação de mudança de regime apoiada por Washington em abril de 2022. Como já foi referido, este foi o “crime” mais imperdoável aos olhos das elites militares, o facto de os Punjabis terem passado de os amar ou, pelo menos, respeitar, para os desprezar – e é isto que explica a impiedade diabólica do Estado nos últimos dois anos e meio.
O que era óbvio para muitos, especialmente para aqueles de nós que tinham estudantes como oficiais militares de nível médio e júnior, é agora totalmente transparente: os soldados – e os oficiais – estão a ignorar as ordens e a recusar-se a disparar. Tornou-se claro que a maioria dos oficiais e a esmagadora maioria dos soldados, se não estavam completamente do lado de Khan, estavam, pelo menos, a desprezar totalmente o comportamento tirânico dos seus superiores. É por isso que as altas patentes militares se voltam diretamente para as forças policiais, mal pagas, e lhes dão ordens para que provoquem o caos e façam o seu trabalho sujo.
Os generais não hesitaram em proclamar abertamente as suas ordens de “atirar à vista”. Incapaz de bloquear a entrada das centenas de milhares de pessoas na capital, o alto comando militar paquistanês está a destacar todo e qualquer pessoal de segurança que ainda esteja disposto a seguir as suas ordens para defender as celas da prisão de Adyala, na cidade gémea de Rawalpindi, onde o popularíssimo antigo primeiro-ministro está preso.
Uma das imagens mais animadoras deste momento político alarmantemente precário e perigoso – mas simultaneamente excitante e esperançoso – é a omnipresença de keffiyehs palestinos entre os manifestantes. Tornaram-se ainda mais omnipresentes nos últimos meses, após os assassinatos de Ismail Haniyeh, Hassan Nasrallah e Yahya Sinwar por Israel.
Ligar a sua revolução à resistência contra o genocídio sionista é uma transformação profundamente estimulante na consciência política dos paquistaneses.