Acerca da natureza do sistema económico chinês
Debates (e desacordos) entre marxistas sobre a China
por Tony Andreani
[*]
, Rémy Herrera
[**]
e Zhiming Long
[***]
Hoje em dia, os dirigentes chineses não negam a existência na sua
economia um importante sector privado capitalista, autóctone ou
estrangeiro. Em geral, eles o consideram antes como um dos componentes de uma
economia mista em que a predominância é concedida ao sector
público e em que o poder do Estado deve ser reforçado. Os
discursos de numerosos líderes avançam que a China ainda se
encontraria na "fase primária do socialismo", etapa
considerada incontornável para desenvolver as forças produtivas e
que exige muito tempo até a sua conclusão. O objectivo
histórico permaneceria entretanto o do socialismo desenvolvido
mesmo se, é verdade, seus contornos estarem longe de serem claramente
definidos. Serão tais declarações apenas de fachada, a
roupagem de uma forma de capitalismo? Mereceriam elas serem tomadas a
sério? O socialismo estaria morto e enterrado na China? Não
pensamos assim.
Entretanto, nos debates entre autores marxistas, uma clara maioria deles afirma
que a economia chinesa seria agora capitalista. Assim, Harvey (2005) crê
detectar desde as reformas de 1978 um "neoliberalismo com
características chinesas" em que um tipo singular de economia de
mercado teria incorporado cada vez mais componentes neoliberais accionados no
quadro de um controle centralizado muito autoritário. Arrighi (2009),
para explicar o êxito da economia chinesa, mobiliza por sua vez uma
releitura a contra-corrente da obra de Adam Smith, mais progressista do que o
reconhecem seus discípulos partidários do liberalismo. Segundo
ele, as elites chinesas utilizariam "o mercado como ferramenta de
governo". Panitch e Gindin (2013) analisam as implicações da
integração da China nos circuitos da economia mundial e
vêem nisso menos a oportunidade de reorientar o capitalismo global do que
a duplicação pela China do papel de "complemento"
outrora mantido pelo Japão, fornecendo aos Estados Unidos os fluxos de
capitais necessários para conservar sua hegemonia mundial, de onde uma
tendência à liberalização dos mercados financeiros
conduzindo ao desmantelamento dos instrumentos de controle dos movimentos de
capitais e minando as bases do poder do Partido Comunista Chinês (PCC).
[1]
Outros marxistas, certamente mais raros, mas não menos importantes,
chineses ou estrangeiros,
[2]
continuam entretanto a defender a ideia de que o sistema em vigor na China,
ainda que assimilável a um capitalismo de Estado, deixaria aberto um
vasto leque de trajectórias possíveis para o futuro. No presente
artigo, levaremos mais adiante esta ideia, ao ponto de sustentar que o sistema
chinês hoje contém ainda elementos chaves do socialismo. Assim, a
interpretação da sua natureza torna-se compatível com a de
um socialismo de mercado, ou com mercado, repousando sobre pilares que o
distinguem ainda bastante claramente do capitalismo.
Características do socialismo de mercado à chinesa
Para Marx, o capitalismo implica uma separação muito forte entre
o trabalho e a propriedade dos meios de produção, enquanto os
detentores do capital seriam eles próprios tendencialmente colectivos,
já não efectuando trabalho na produção. Isso se
realiza plenamente no capitalismo financiarizado actual em que a gestão
é delegada a administradores e o lucro da empresa assume a forma de
valor accionista. De acordo com este critério fundamental de
definição do capitalismo, verifica-se que numerosas pequenas
empresas chinesas têm mais a ver com a produção familiar ou
artesanal do que com o modo de produção capitalista estrito.
Além disso, a lógica do capitalismo é a da
maximização do lucro distribuível aos
proprietários. Ora, não é isto que se observa nas grandes
empresas públicas chinesas, como mostra a fraqueza (mesmo a
inexistência) dos dividendos entregues ao Estado, assemelhando-se ao
invés a um imposto sobre o capital. A separação
capital-trabalho é muitas vezes relativa na China: ela é limitada
nas empresas públicas, o que impede de considerá-las
rigorosamente como uma forma de capitalismo de Estado, e mais ainda na economia
dita "colectiva" onde os trabalhadores participam na propriedade do
capital ou têm mesmo a propriedade como nas cooperativas (por
acções ou não) e nas comunas populares preservadas.
Naturalmente, mesmo nestas entidades colectivas os trabalhadores permanecem
"separados" da gestão, mas toda esta economia colectiva
não estatal não pode ser ignorada e não poderia ser
classificada sob a bandeira do "capitalismo".
Fazemos uma leitura do sistema chinês como um socialismo de mercado, ou
com mercado. Assim, este socialismo repousaria sobre os dez pilares seguintes,
em grande medida estranhos ao capitalismo:
i) a persistência de uma planificação poderosa e
modernizada, que assume modalidades diversas e mobiliza instrumentos distintos
conforme os sectores a que se refere;
ii) uma forma de democracia política tornando possíveis as
escolhas que estão na base desta planificação;
iii) serviços públicos muito extensos, que condicionam a
cidadania política, social e económica e, enquanto tais,
estão fora do mercado ou fracamente mercantilizados;
iv) uma propriedade da terra e dos recursos naturais que permanece no
domínio público, estatal ao nível nacional, colectivo ao
nível local, garantindo assim o acesso à terra pelos camponeses;
v) formas de propriedade diversificadas adequadas à
socialização das forças produtivas: empresas
públicas (diferindo das firmas capitalistas, nomeadamente pela
participação dos trabalhadores na gestão), pequena
propriedade privada individual ou propriedade socializada sendo a
propriedade capitalista, durante uma transição socialista longa,
mantida e mesmo encorajada, para dinamizar a actividade e incitar as outras
formas de propriedade à eficácia;
vi) uma política geral consistente em aumentar os rendimentos do
trabalho em relação às outras fontes de rendimentos;
vii) a promoção manifestada da justiça social numa
perspectiva igualitarista;
viii) a preservação da natureza, considerada como
indissociável, não antagónica do progresso social, como
objectivo do desenvolvimento a fim de maximizar a riqueza efectiva,
ix) relações económicas entre Estados fundamentadas sobre
um princípio ganhador-ganhador;
x) relações políticas entre Estados repousando na busca da
paz e das relações mais equilibradas entre os povos.
A análise de cada um destes pontos não é
indiscutível e é objecto de debates ásperos tanto na China
como no exterior debates que estão longe de estarem resolvidos,
mas que existem e devem ser aprofundados sem
a priori
nem ideias preconcebidas. Apesar das críticas, veremos que ao
confrontar o "socialismo à chinesa" com esta grelha de
leitura, ele não está muito afastado.
[3]
Empresa públicas, serviços públicos,
planificação
Na China, a justificação das empresas públicas é
tripla: elas podem distribuir mais a seus assalariados; o Estado é livre
para nelas definir o modo de gestão (em matéria salarial
nomeadamente); e ele pode mais facilmente colocá-las ao serviço
dos seus projectos. Através das ferramentas ao dispor do organismo de
gestão das participações, o Estado afecta os dividendos
recebidos a um fundo especial de sustentação das empresas
públicas, as quais beneficiam igualmente de vantagens em matéria
de crédito e de taxa de juro. Isto se inscreve portanto numa via
socialista.
Uma explicação para a força destas empresas
públicas é que elas não são geridas como as firmas
privadas ocidentais, cotadas em Bolsa e orientadas para a
maximização do valor das acções por
distribuição de dividendos, valorização das
acções e retorno sobre o investimento porque pressionam
sub-contratantes, locais ou deslocalizados. Se elas se comportassem de modo
tão predatório, estas empresas públicas chinesas agiriam
em detrimento do tecido industrial local, o que manifestamente não
é o caso. Teríamos então negócios sob uma forma
selvagem de "capitalismo de Estado" (como se pretende frequentemente)
e não se vê como ele poderia produzir um crescimento
económico tão dinâmico. Estas empresas públicas
chinesas são (ou são tornadas) rentáveis porque a
bússola que as guia não é o enriquecimento dos
accionistas, mas sim o investimento produtivo e o serviço prestado aos
seus clientes. Pouco importa que os seus lucros sejam menos elevados que os dos
seus concorrentes ocidentais se eles servem parcialmente para estimular o resto
da economia.
Uma das especificidades destas empresas públicas é, assim, a de
entregar apenas poucos dividendos ao Estado accionista (cerca de 10%). Hoje,
numerosos peritos internacionais preconizam aumentar estes dividendos e a
Comissão de Regulação da Bolsa parece por vezes estar de
acordo. Esta orientação, inspirada nas práticas
capitalistas ocidentais, não parece a boa fórmula, pois as
empresas públicas ficariam então privadas dos seus trunfos
principais e, mesmo controladas pelo Estado, teriam tendência a
distribuir sempre mais para obterem os favores dos accionistas privados, como
fazem as firmas ocidentais que dependem elas próprias muito
frequentemente das estratégias de carteira dos oligopólios
financeiros mundialmente dominantes. Aqui, mais valeria que o Estado
chinês instaurasse um imposto sobre o capital, na forma de renda
(loyer)
pela colocação à disposição dos seus bens e
que as empresas lucrativas pudessem conservar uma parte maior dos
benefícios para fins de investimento e de I&D.
Na nossa opinião, as empresas públicas chinesas não devem
ser geridas como firmas privadas. O "socialismo de mercado à
chinesa" repousa sobre a manutenção de um poderoso sector
público com papel estratégico na economia. Tudo leva a pensar que
esta é uma das explicações essenciais dos desempenhos da
economia chinesa, não obstante os neoliberais exaltarem a propriedade
privada e a maximização do lucro individual. Isto sem
dúvida também está ligado ao porte destas empresas,
mastodontes a engendrarem economias de escala que reduzem os custos a todos os
níveis e fornecem a uma miríade de pequenas e médias
empresas insumos
(intrants)
baratos que asseguram condições de fabricação
competitivas no mercado.
Uma "superioridade" das empresas públicas chinesas é a
participação (limitada, mas real) do pessoal na gestão,
através dos seus representantes no Conselho de
Fiscalização e no Congresso dos Operários. A lógica
accionista iria ao encontro de uma tal participação, que é
preciso reforçar. Outra vantagem é que as empresas
públicas podem mais facilmente responder aos objectivos da
planificação. Não se trata de lhes impor tarefas
políticas que poriam em causa a sua autonomia e onerariam os seus
resultados. Mas ao controlar a nomeação e a gestão dos
dirigentes, os poderes públicos, de que dependem empresas muito
numerosas, têm os meios de assegurar que eles agem como convém aos
serviços públicos mas também aos sectores
mercantis, que o plano pode orientar (por subvenções,
fiscalidade, ...).
Na China, os serviços sociais (educação, saúde,
reformas, ...) estão na totalidade ou na grande maioria nas mãos
do Estado governo central ou, mais frequentemente, governos locais. Tais
serviços não fornecem bens mercantilizados pelo sector privado,
mas bens sociais, necessários ao exercício da cidadania, dando
aos indivíduos a capacidade de serem simultaneamente sujeitos
políticos, sociais e económicos (formados, em boa saúde,
tendo acesso ao emprego, com equipamentos de transporte, informados, etc). Mas
a concepção chinesa estende os serviços públicos
aos "bens estratégicos", fornecendo insumos essenciais ao
resto da economia: energia, infraestruturas, materiais de base e mesmo
serviços bancários ou investigação. Se o sector
privado serve de complemento ou estimulante, o sector público é
favorecido pelo Estado no exercício da concorrência. Esta
concepção ampla dos serviços públicos
"estratégicos" constitui uma das maiores forças da
economia chinesa. O que está aqui em causa é a soberania nacional.
Um traço notável do sistema político-económico
chinês é a sua possante planificação que, apesar de
ter mudado seus objectivos e instrumentos no decorrer das últimas
décadas, continua a ser aplicada. Os discursos apresentados a cada ano
diante da Assembleia Nacional Popular indicam se os objectivos quantificados
inscritos no plano quinquenal foram realizados e frequentemente é
o caso , e dão a conhecer o que esperar para o ano seguinte. Esta
planificação, que se projecta para o futuro num mundo de
incertezas, é o lugar onde são elaboradas e decididas as escolhas
colectivas, expressão de uma vontade geral. Ela é o espaço
onde uma nação escolhe um destino comum e o meio de um povo de se
tornar o mestre, em todos os domínios da existência: modo de vida,
modos de consumir, de se alojar, de ocupar o espaço... É o PCC
que, hoje, efectua estas escolhas para os cidadãos o
princípio da consulta estando cada vez mais colocado como necessidade.
Esta planificação "estratégica" forte, com
técnicas modernizadas, adaptadas às exigências do tempo
presente e que têm eficácia (taxas bonificadas, controle dos
preços, encomendas públicas, etc) é um traço
distintivo de uma via socialista.
Entretanto, com toda evidência, estamos hoje bem longe do ideal
igualitarista do socialismo. A China é um país onde as
desigualdades sociais são fortes. A aplicação da linha
igualitarista foi "suspensa" para acelerar o crescimento (daí
a palavra de ordem "enriquecer-se antes dos outros"), depois foi
novamente retomada com a recente promoção de temas de
justiça social. A defesa da "moral socialista" pelos
responsáveis do PCC pode prestar-se ao cepticismo, mesmo aos sarcasmos,
quando se sabe dos comportamentos da China actual: consumismo, negocismo,
arrivismo, gosto do luxo, corrupção... Mas não se deve
tomar este discurso moral com ligeireza: é o do Estado chinês,
constantemente oposto a esta degradação dos costumes. Se ele se
inscreve numa certa continuidade com a tradição, muitas vezes
reivindicada, esta ética reclama-se da modernidade dos ideais do
socialismo e não de uma justiça social restrita a uma
redistribuição limitada dos rendimentos, de uma equidade
justificando uma "justa desigualdade" e definida como ligeira
melhoria da sorte dos destituídos e de uma democracia representativa que
confisca de facto a participação do povo. Mas é no sector
púbico que o Estado dispõe dos meios eficazes para reduzir
realmente estas desigualdades. Podem aqui ser activados a
participação dos trabalhadores na gestão e o papel de
"locomotiva social" desempenhado pelas empresas públicas. Eis
um argumento a mais que milita em favor de um reforço do sector
público.
Controle do sistema bancário e dos mercados financeiros
Alguns julgam o sistema financeiro chinês obsoleto e apelam à sua
modernização, devido ao auge dos mercados financeiros que seria,
segundo eles, indispensável ao crescimento.
[4]
A reformas deste sistema financeiro aceleraram-se desde 2005 e tomaram a forma
de uma abertura do capital dos bancos do Estado e da criação de
bolsas de valores. Elas seguiram as das empresas públicas, tomadas
anteriormente. Estas últimas haviam sido autonomizadas em
relação às orientações do Plano,
transformadas em sociedades por acções e incitadas a adoptar
critérios de gestão mercantis, a inspirarem-se em métodos
da finança de mercado e a desenvolver parcerias com investidores
externos. A introdução em bolsa dos grandes bancos (Bank of
China, Industrial and Commercial Bank of China e China Construction Bank) foi
antecedida pela entrada de instituições estrangeiras na sua
estrutura de capital (respectivamente Goldmann Sachs, UBS et Bank of America),
a fim de facilitar a aprendizagem da
corporate governance
. Entretanto, o sistema de financiamento da economia chinesa hoje continua
fundamentado na intermediação bancária ainda que
tenda a afastar-se bastante rapidamente, pois as autoridades políticas
pretendem encontrar um "equilíbrio" entre os sistemas de
financiamento pelos mercados financeiros e pelo crédito bancário.
Mas não se pode confundir "modernização" e
adopção da via capitalista. Está longe de ser claro que
uma opção em favor da finança de mercado tenha sido feita
definitivamente, pois permanecem maciças as intervenções
das autoridades monetárias no sistema financeiro e é
perceptível o pragmatismo da sua actuação. Os poderes
públicos chineses procedem de facto por solavancos, por avanços e
recuos num contexto de integração mais aprofundado, mas
contraditório, do país na mundialização. Isto
aconteceu sobretudo nas fases de enfraquecimento do crescimento
económico após 2007, marcadas por uma activação dos
créditos bancários corrigindo as falhas da finança. Na
viragem dos anos 1990, os bancos que se haviam empenhado em
operações aventurosas (finança, seguros,
imobiliário...) foram proibidos de o fazer entre 1992 e 1995, na
sequência das desordens provocadas pela crise de 1989-1991 ainda
que tenham sido desde então autorizadas a efectuar
operações mistas combinando crédito bancário e
mercados financeiros. Mais recentemente, depois de 2008, como já vimos,
as autoridades chinesas foram obrigadas a reagir firmemente para limitar o
impacto social desestabilizador da crise mundial, fazendo evoluir o quadro
institucional ao dotarem-se de instrumentos poderosos de controle e
consolidarem suas estratégia de desenvolvimento.
Na China, a tese da "eficiência dos mercados financeiros"
não tem partidários, como testemunham os apelos a uma nova ordem
monetária e financeira mundial lançados regularmente pelos
líderes políticos do país, que conhecem as vantagens da
intermediação bancária e estão conscientes das
graves disfunções dos mercados financeiros. Estes dirigentes
preferem conservar o essencial do sistema bancário sob o controle do
Estado, esforçando-se por melhorá-lo, repugnando-lhes abandonar o
modelo de "banco universal" e orientando-se antes para um esquema
consistente em tolerar operações mistas, mas efectuadas nas
filiais especializadas, separadas do holding público e colocadas sob a
vigilância da Comissão de Regulação bancária.
Além disso, as taxas de juro permanecem amplamente administradas, apesar
das reformas iniciadas. Para aquelas que foram liberalizadas, a oferta de
crédito é fortemente controlada pelo Banco Central, nomeadamente
através das reservas obrigatórias. E o afrouxamento dos
constrangimentos impostos aos bancos para fixar as taxas aplicadas aos
depósitos não deve fazer esquecer que historicamente as
autoridades monetárias voluntariamente reduziram ao mínimo (sob o
ritmo da inflação) a remuneração destes
depósitos o que não influenciou a taxa de poupança
nacional, muito elevada. Uma das especificidades (e forças) da China
é a torção voluntarista dos preços dos factores. O
governo teve razão em não deixar o mercado fixar
"livremente" o preço do dinheiro de modo a continuar como
mestre da oferta de crédito, difícil de controlar mas vital para
a economia. As autoridades estatais, que têm uma visão
macroscópica dos riscos, são as únicas em
condições de guiar a economia no seu conjunto em
função de um plano. Taxas de juros administradas não
permitem ajustar rapidamente a oferta de poupança das famílias e
as necessidades de financiamento das empresas, conviria talvez preferir um
regime de taxas "semi-administradas", com tectos para a oferta de
créditos e pisos para a remuneração da poupança
modificando estas taxas conforme as necessidades do plano. Mas neste
debate sobre as taxas de juro, pendemos para a manutenção de um
certo dirigismo.
A ampliação da esfera privada implica logicamente uma
expansão do mercado de acções. Mas segundo a nossa
opinião, este último deveria permanecer limitado. Se ele tem a
sua utilidade para o sector privado, as empresas públicas em
contrapartida deveriam ter cada vez menos necessidade na medida em que expandem
suas capacidades de auto-financiamento e dispõem dos fundos de Estado
para realizar aumentos de capital. A abertura do mercado de
acções aos actores internacionais está no momento restrita
aos investidores "qualificados". Os poderes públicos, que
desconfiam com razão dos movimentos de capitais
especulativos, até agora têm proibido às firmas
estrangeiras emitirem acções em yuans sobre o mercado interno.
Afrouxar estes travões, em particular para avançar rumo à
plena convertibilidade do yuan e das suas supostas vantagens, equivaleria a
submeter-se aos oligopólios financeiros, especialmente estado-unidenses.
O recurso ao mercado de acções deveria permanecer tão
limitado quanto possível e não conduzir a um alinhamento na
prática do valor accionista. A poupança chinesa é bastante
abundante para ser mobilizada por investidores institucionais nacionais, aos
quais além disso se pode impor limites de rentabilidade.
Uma estratégia de desenvolvimento coerente e auto-centrada
Um traço frequentemente sublinhado para descrever o êxito desta
economia é o florescimento das suas exportações de bens e
serviços desde o princípio dos anos 1990 e, sobretudo, 2000.
Conclui-se apressadamente que estas exportações seriam o motor do
crescimento do país. Isto é esquecer que a estratégia de
desenvolvimento, concebida e aplicada com regularidade e pragmatismo pelos
dirigentes chineses, apoia-se num modelo mais auto-centrado do que parece,
repousando é um dos "segredos" dos seus desempenhos nos
mercados mundiais, ainda que isso desagrade aos neoliberais na
manutenção de um sector estatal muito poderoso (na energia, nos
transportes, nas telecomunicações, nos materiais de base e
produtos semi-acabados, na construção, mas também no
sistema bancário, etc), com papel dinamizador para o conjunto do tecido
económico local.
Na China, a grande maioria dos empresários dos sectores manufactureiros
chineses interessa-se sobretudo pelos mercados internos para as suas
produções. É sobretudo o florescimento da procura interna,
estimulada por um consumo das famílias em crescimento acentuado e pelas
importantes despesas de capital do Estado que conduz os seus programas de
investimento rumo ao optimismo. Graças aos progressos da
inovação tecnológica em todos os domínios
(inclusive das telecomunicações, na robótica, no
espaço, etc), cada vez mais dominados nacionalmente, o esquema produtivo
do país pôde evoluir do
made in China
para o
made by China.
O ritmo acelerado dos ganhos de produtividade do trabalho permite acompanhar a
alta rápida dos salários reais industriais, sem que o aumento de
peso dos custos do trabalho chinês relativamente aos outros países
concorrentes do Sul deteriore a competitividade. As exportações
tal como os investimentos directos estrangeiros, pois mais da metade das
exportações são feitas por firmas estrangeiras implantadas
na China desempenham um papel complementar. Isso permite compreender
porque em 2011, por exemplo, a contribuição líquida
negativa das exportações para o crescimento do PIB (-5,8%)
não prejudicou o dinamismo deste último (cerca de +10%), nem
entravou a alta das margens de lucro. A previsão de crescimento do PIB
para 2018 é de 6,7% (com uma taxa de inflação de 1,5%),
com contribuições estimadas de 4,5% para o consumo, 2,0% para o
investimento, mas apenas 0,2% para as exportações.
Ouve-se frequentemente dizer que o êxito das exportações
chinesas seria devido ao custo muito baixo da mão-de-obra. O argumento
é insuficiente: os custos de mão-de-obra não representam
de facto senão uma parte fraca dos preços de venda (5% a 10% em
média), o que não compensa ainda que os salários
chineses tenham tendência para crescer mais rapidamente que os dos
concorrentes do Sul os custos de transporte para os países
importadores. O êxito da China na exportação deve-se numa
grande medida aos custos menos pesados dos insumos fornecidos por empresas
públicas a preços muito mais baixos, pois fixados ou fortemente
controlados pelo Estado (exemplo: os combustíveis). Certamente os
salários chineses são claramente mais baixos do que no Norte, mas
bem mais elevados do que os pretensos "salários de
miséria".
Em resposta à crise de 2008, cujo impacto na China se fez sentir alguns
anos mais tarde, as políticas anti-crise do Estado têm visado
corrigir os desequilíbrios da economia, nomeadamente por um
florescimento maciço das infraestruturas públicas (inclusive em
zonas rurais), pela promoção de novos pólos urbanos de
porte intermediário no interior do país e pela
adopção de medidas favoráveis à
população agrícola.
[5]
Os rendimentos líquidos das famílias rurais aumentaram assim, em
termos reais e per capita, significativamente mais rápido que os das
zonas urbanas. Portanto, as partes consagradas ao consumo no rendimento
nacional aumentam em relação à do investimento. Os
serviços às famílias e às empresas progridem. O
imobiliário também está controlado, em particular pelo
crédito.
O destino do yuan
Ainda assim, o florescimento das exportações chinesas de bens e
serviços além das de capitais (refinanciamento do Tesouro
estado-unidense, reestruturação de dívidas soberanas na
Europa)
[6]
cristaliza um outro ponto de tensão. A moeda chinesa, o
renminbi, cuja unidade monetária é o yuan, estaria sub-avaliada,
lê-se frequentemente no Ocidente, e portanto estaria na origem da
persistência de défices comerciais bilaterais com a maior parte
dos países do Norte, a começar pelos Estados Unidos
[7]
. As pressões exercidas por Washington no sentido de uma
apreciação do renminbi frente ao dólar deparam-se com a
resistência de Beijing, mas redundaram em várias
reavaliações a última datando de Abril de 2012,
após a de Julho de 2005. Entre o Verão de 2005 (quando a China
decide deixar de ligar as variação da sua moeda ao dólar)
e a Primavera de 2012, o valor do renminbi apreciou-se em termos reais em 32%
relativamente ao dólar.
[8]
Mas a lenga-lenga continuou: os produtos exportados pela China, já
baratos, seriam tornados ainda mais competitivos por uma moeda depreciada
artificialmente...
Sabe-se que as discussões sobre o "justo valor" das moedas,
articuladas sobre decisões de políticas comerciais, são
polémicas. Ora, dentre os critérios disponíveis, a
relação saldo da balança das contas correntes sobre PIB
é a mais utilizada pela administração estado-unidense. O
referencial assim considerado para definir a taxa de câmbio "de
equilíbrio" é um rácio excedente ou défice da
balança de pagamentos correntes sobre PIB no intervalo entre +/- 3 ou
4%. Ao aplicar este critério à China, marcado pelo peso das
trocas bilaterais com os Estados Unidos, vê-se que o rácio
retrocede de 10,6% em 2007 para 2,8% em 2011 e 1,4% em 2012. A
"sub-valorização" do renminbi não é
evidente quando se utiliza o
benchmark
mais praticado nos Estados Unidos. O que não impede estes
últimos, apesar dos graves desequilíbrios que caracterizam a sua
economia, de prosseguir o que se assemelha a uma "guerra das moedas",
por depreciação do dólar no mercado de câmbios, para
impor a Beijing os termos daquilo que alguns chamam uma
"capitulação"
[9]
e um de cujos efeitos é desvalorizar as reservas em divisas da
China, maioritariamente detidas em dólar.
Um renminbi internacionalizado, especialmente para transformá-lo em
moeda de reserva global, exigiria a adopção de
condições muito estritas: a abertura da conta de capital, assim
como a flexibilidade da taxa de câmbio; a integração dos
mercados financeiros chineses no sistema mundial capitalista; políticas
macroeconómicas (de luta contra a inflação, de
limitação do endividamento público, etc) que visem a
obtenção da "confiança" dos mercados; e uma
dimensão crítica da economia que justificasse esta
ambição de internacionalização da moeda. As duas
primeiras condições são exigências
sine qua non;
as duas últimas, não e aliás nem sempre têm
sido respeitadas pelos países do Norte com moedas utilizadas como
reservas internacionais.
A dimensão crítica evidentemente já foi atingida: o peso
da China coloca-a no segundo lugar mundial quanto ao PIB, atrás dos
Estados Unidos, e entre estes últimos e a zona quanto às
exportações. O critério relativo às
políticas macroeconómicas parece igualmente cumprido, na medida
em que a adopção das medidas anti-inflacionistas, de controle das
contas públicas e de domínio do curso do renminbi trouxeram os
seus frutos nestes últimos anos. Se as pressões inflacionistas
permanecem um perigo, o índice de estabilidade dos preços
é melhor na China do que nos outros BRICS. O endividamento das
administrações públicas está contido a
níveis menos elevados do que na maior parte dos próprios
países ocidentais. Os índices de variabilidade da moeda nacional
mostram também um renminbi menos instável que o real, a rupia, o
rublo e o rand. Contudo, quanto à abertura da conta de capital e
à integração mais profunda dos mercados financeiros
chineses no sistema mundial, é forçoso reconhecer que, apesar da
adopção de mecanismos de mercado em matéria de
política monetária e da flexibilização das
regulamentações relativas à conta de capital e à
paridade do renminbi, as autoridades monetárias chinesas continuam a
dispor de poderosas ferramentas de controle. Além disso, e sem estar
totalmente ausente, o renminbi ainda é pouco utilizado nos mercados de
produtos derivados
over-the-counter
, e concentrado nos instrumentos clássicos de cobertura
(forwards)
[10]
.
A internacionalização da moeda traria benefícios à
China, a começar por um
"direito de seignieuriage"
, bem visível no caso dos Estados Unidos. Entretanto, uma tal
orientação significaria uma submissão prejudicial do
país à alta finança mundial dominante, portanto uma perda
relativa de controle da política monetária. Como é que a
China chegaria a tirar proveito de um renminbi internacionalizado sem pagar
demasiado caro renunciando ao pleno exercício da sua soberania
nacional e vendo recusar a autonomia da sua estratégia de
desenvolvimento? Hoje, as pressões internas em favor de uma
liberalização dos mercados financeiros são fortes, mas
ficam atenuadas por discursos oficiais tranquilizantes, críveis, sobre o
controle do processo de reformas. Mas estas pressões tornam-se
preocupantes quando coincidem com as recomendações dos peritos do
FMI ou dos líderes ocidentais que convidam a China a escolher a via do
neoliberalismo e se necessário, integrando o renminbi no cabaz
monetário dos
Direitos Especiais de Saque
. Sobre o assunto, os dirigentes chineses, em geral com
declarações nuançadas e prudentes, estão
conscientes dos perigos que um renminbi internacionalizado implica para o
futuro do socialismo de mercado. Esperamos que saibam resistir às
sereias do liberalismo. Nesse meio tempo, eles reforçam suas parcerias
com o Sul e o Leste, em particular no quadro do grupo de Shangai, e reabrem uma
rota da sede para afrouxar a morsa do cerco agressivo dos Estados Unidos.
Conclusão
A evolução das relações entre, por um lado, o PCC
no poder e o bloco social sobre o qual ele se apoia classes
médias beneficiárias do crescimento e empresários privados
, e, por outro, massas operárias e camponesas, que vão no
sentido de uma restauração do capitalismo ou então de uma
reactivação de um compromisso social mais favorável
às classes populares, opera sobre perspectivas de
confrontações de grande amplitude entre as forças
políticas em presença, e sobre trajectórias divergentes de
estruturas da economia.
[11]
Uma questão subsiste: como as elites dirigentes, cuja legitimidade se
vê reforçada pelas repercussões positivas geradas pelo
crescimento, chegariam a renovar as condições da
"success story"
do país sem se apoiarem sobre uma modificação da
correlação de forças interna em favor das classes
populares e sem reorientar o "projecto nacional" para uma prioridade
às políticas sociais? Pois a escolha da via capitalista assumida
francamente por estas elites, conducente a quebrar o equilíbrio
dinâmico do sistema e a perder o controle sobre
contradições crescentes, não garantiria o fracasso da
estratégia adoptada até agora? Uma outra
preocupação surge: qual será a atitude dos Estados Unidos,
inclusive do ponto de vista militar, frente ao reforço de poder da
China? O futuro desta última permanece em grande medida indeterminado,
pela sua dinâmica própria, mas também porque o capitalismo
dos oligopólios financeiros do Norte parece querer entrar frontalmente
em conflito com ela apesar da sua estreita interdependência. Por
isso, continuamos a pensar, o sistema político-económico em vigor
na China continua a conter elementos (e potencialidades de
reactivação) do socialismo, assim como possibilidades de
transformação da ordem global, no sentido da
construção lenta e progressiva de um mundo multipolar, frente ao
hegemonismo estado-unidense.
26/Abril/2018
[1] Ver: Harvey D. (2005),
A Brief History of Neoliberalism,
New York: Oxford University Press; Arrighi G. (2009),
Adam Smith in Beijing: Lineages of the 21st Century,
London: Verso; Panitch L. and S. Gindin (2013), "The Integration of
China into Global Capitalism",
International Critical Thought,
(3)2, 146-158.
[2] Por exemplo: Wen T. (2001), "Centenary Reflections on the '
Three Dimensional Problem,
' of Rural China",
Inter-Asia Cultural Studies
, 2(2), 287-295. Amin S. (2013), "China 2013",
Monthly Review
, 64(10), online.
[3] Andreani T. and R. Herrera (2015), "Which Economic Model for
China?",
International Critical Thought,
5(1), 111-125.
[4] Mishkin F. (2010),
The Economics of Money Banking and Financial Markets,
Upper Saddle River: Pearson.
[5] Wong E. e T. Sit (2015), "Rethinking 'Rural China'",
in
Herrera R. and K.-C. Lau (dir.),
The Struggle for Food Sovereignty,
83-108, London: Pluto Press.
[6] Ler: "More UK equities for China?",
Financial Times,
3 June 2011.
[7] Ver os relatórios do US Congressional Research Service.
[8] Bank for International Settlements (BIS).
[9] Wolff M. (2010), Financial Times, 12 October 2010.
[10] Herrera R. (2014), "A Marxist Interpretation of the Current
Crisis",
World Review of Political Economy,
5(2), 128-148.
[11] Amin S. (2010), "Prefacio",
in
Herrera R.,
Avances revolucionarios en América Latina,
Quito: FEDAEPS.
NR: A seriedade dos autores deste artigo e os elementos informativos que
contém levou à sua publicação por
resistir.info.
Isso não significa necessariamente endossar o optimismo dos mesmos
quando consideram que o socialismo continua dentro do leque das possibilidades
no futuro previsível da China. A presente acumulação de
reservas ouro pelo banco central da China no momento em que já se
antevê o fracasso das moedas fiduciárias que servem de reserva mundial,
nomeadamente o US dólar pode ter duas explicações
alternativas: 1) uma garantia
(hedging)
contra a previsível ruína do dólar; ou 2) que as
autoridades chinesas poderiam estar a preparar o renminbi para vir a substituir
o dólar no papel de moeda de reserva mundial. Se esta última
explicação se verificasse a possibilidade da retomada do
caminho socialista pela China ficaria comprometida.
[*] Professor Emérito de Ciência Política na Universidade
de Paris 8 Saint-Denis, Saint-Denis, França.
[**] Investigador do Centro Nacional de Investigação
Científica (CNRS), Centre d'Économie de la Sorbonne, Paris,
França.
[*** ] Professor Assistente na Escola de Marxismo da Universidade Tsinghua,
Beijing, República Popular da China.
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