Argentina: "É falso afirmar que a única saída é pactuar com o FMI "Entrevista com Joseph Stiglitz, prémio Nobel de economia 2001 e "dissidente" do Banco Mundial
por María Seoane y Telma Luzzani
[*]
JS: O argumento de que não há senão uma alternativa é basicamente falaz. A Argentina tem outras alternativas. E vou-lhes dar três exemplos que demonstram que se pode tomar um rumo independente. A Malásia, em plena crise, disse ao FMI: Não queremos ajuda. Vamos fazer exactamente o contrário do que os senhores recomendam: controlo de capitais, política fiscal e de gastos e vamos manter as taxas de juro baixas. Resultado: recuperaram-se muito rapidamente e hoje estão numa melhor posição. Todas as coisas terríveis que o FMI afirmou que ocorreriam se não cumprissem suas indicações nunca aconteceram. Inclusive, apesar de o seu historial em direitos humanos não ser o melhor do mundo, há um enorme interesse do investimento externo na Malásia. O segundo exemplo é o que fez a Rússia depois de "defaultear". O Kremlin reconheceu que a maior parte do dinheiro que o FMI emprestaria à Rússia seria para pagar às instituições financeiras internacionais. Sabiam que estes organismos não queriam apresentar uma grande perda na sua contabilidade. O Fundo deixou bem claro que não estava disposto a fazer grandes concessões. A Rússia negociou com o Fundo, obteve o dinheiro e desvalorizou, coisa que o FMI lhe havia que não fizesse. E começou a crescer precisamente porque desvalorizou a moeda. O terceiro exemplo é o de maior êxito: a China. Seguiu um rumo muito diferente: tem controlos de capital, não privatizou muito rapidamente. Fez tudo ao seu modo. E como lhe correu bem obteve mais investimento directo estrangeiro do que qualquer outro país do mundo, fora dos Estados Unidos. A Rússia e a China têm uma dimensão e um poder que a Argentina não tem para dizer "não" ao FMI. E nós talvez tenhamos ido demasiado longe com as concessões... JS: A questão fundamental para a Argentina hoje não é o dinheiro de fora. Não sou o único que pensa assim. Economistas com visões muito diferentes das minhas concordam comigo, como Martin Feldstein que escreveu um artigo intitulado "A Argentina não necessita do FMI" no Wall Street Journal. No caso de a Argentina conseguir satisfazer o Fundo e conseguir mais dinheiro, a maior parte dele irá parar no FMI, no Banco Interamericano de Desenvolvimento e no Banco Mundial. Não ajudará a Argentina de forma alguma. Porque o dinheiro externo oficial não é o que vai ajudar as empresas argentinas a começar a produzir mais. E isso é o que é preciso agora: os sectores produtivos têm que poder produzir bens e exportá-los. E como se faz para começar a produzir sem dinheiro? JS: É preciso obter um pouco de gasolina para fazer o motor arrancar. E grande parte dele pode vir através de créditos à exportação. Quando o México voltou a por em marcha a sua economia não foi o dinheiro do FMI que mudou as coisas. Aquilo que restabeleceu a economia foi o comércio e o dinheiro que foi para financiar as exportações que obtiveram de empresas norte-americanas. O que faz com que uma economia se recupere é que as empresas comecem a produzir. Voltamos sempre ao mesmo ponto, o México recebeu dinheiro mas a Argentina... JS: Insisto. A questão não está apenas em ter o dinheiro e sim em colocá-lo no lugar certo. O dinheiro tem que ir às empresas para financiar a sua produção. Mas o dinheiro do FMI não vai para as empresas. O que lhes convêm é dinheiro do Banco de Desenvolvimento, precisam que o dinheiro financie a actividade creditícia para voltar a por os bancos em andamento, precisam dinheiro para créditos ao comércio, e precisam que hajam investidores para impulsionar o investimento. Aos senhores não lhes convém o dinheiro que entra e sai do país. A outra grande preocupação é o Brasil. Muitos atribuem a culpa pela sua instabilidade a um contágio da crise argentina, outros ao temor de que Lula seja eleito presidente. JS: O que é outra manifestação da instabilidade que geram os fluxos de capitais a curto prazo. O Brasil é uma clara manifestação das dificuldades que enfrentam os países quando se vêm expostos a esses fluxos, que podem ser muito desestabilizadores. Os países ricos podem resistir-lhes. Para os pobres, é muito difícil. O bom é que principiam a entender que é um problema, apesar de ainda não se conhecer a solução nem se saiba o que fazer a respeito. Mas há que observar a realidade: a Índia e a China não abriram seus mercados de capitais e são os países que mostraram melhor estabilidade e que melhor atravessaram as crises financeiras mundiais. Os EUA disseram que não vão ajudar o Brasil. Há quem acredite que por trás desta indiferença há uma estratégia: se se aprofundar a crise o Mercosur entrar em colapso será mais fácil para os EUA importem a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Pode haver um propósito por trás disso? JS: Não, não creio que compreendam suficientemente bem o que se passa para que lhes ocorra uma ideia inteligente como essa (ri-se). Obviamente há desde a algum tempo preocupação pela liderança do Brasil no Mercosur e pela competição desse bloco com a ALCA. Isso é assim, sem dúvida. Mas não creio que os EUA arrisquem-se a desestabilizar a América Latina para alcançar esse objectivo. Se fosse assim, estaria em contradição com a nova política agrícola norte-americana que, pelo seu proteccionismo, gerou uma união da América Latina contra a ALCA. Se aquilo que essa suspeita sugere se confirmasse seria preciso admitir que os EUA estão a ter uma estratégia incoerente muito peculiar. Na Wall Street há quem fale do "default" do Brasil no fim do ano? Nesse caso, toda a América Latina está em perigo? Pode haver uma crise financeira global? JS: Não creio. Os mercados de capitais estão muito mais diversificados que antes. Quando a Argentina caiu não houve impacto nos mercados financeiros globais. Puderam resistir-lhe, porque viram-na aproximar-se e conseguiram ajustar-se. Por outro lado, na totalidade dos mercados financeiros globais, a América Latina representa uma porcentagem muito pequena. Pois bem, há dez anos falava-se da globalização, no triunfo do capitalismo de estilo norte-americano que varreria o mundo. Hoje, ninguém mostra esse entusiasmo. E isso tem consequências para o rumo da ideologia global, para o mercado global. A crise na América Latina, por si própria, não vai ser um factor de desestabilização importante mas sim a soma desta crise com outras que ocorrem ao mesmo tempo, como o escândalo da Enron e da Worldcom que redundou numa crise de confiança dessas instituições. Estas crise podem ser indícios de que o capitalismo mundial entrou em outra fase? JS: Sim. Evidentemente, cada década é diferente da outra. Nos anos 70 foi a crise do petróleo; nos 80, os excessos de direita de Thatcher e Reagan; nos 90 a globalização. E agora estamos a começar a perceber alguns dos excessos dos 90 e estamos a pagar o preço. Com sorte poderemos adoptar uma perspectiva mais equilibrada, que reconheça qual deve ser o papel dos governos e o dos mercados. Nos países ricos há claramente uma maior intervenção do Estado. Nesta nova fase haveria menos poder para os mercados e mais protecção estatal? JS: Sim. Creio que se reconhecerão mais os problemas que surgem, a necessidade de normas contabilísticas, de melhor informação; haverá que abandonar uma regulamentação opressiva, redesenhá-la para melhorar os mercados. No seu livro o senhor deixa claro que os erros do FMI têm origem em decisões políticas. Que sectores influenciam e tiram proveito dessas decisões? JS: Há alguns casos nos quais se pode falar de erros de critério. O que eu afirmo é que os erros são tendenciosos. O FMI preocupa-se sistematicamente mais com a inflação do que com o desemprego porque a sua lógica vai nessa direcção. O que tento fazer compreender é que o Fundo inclina-se demasiado para a contracção e isto provoca queda da economia, perda de empregos, deterioração ou interrupção da educação e um aumento perigoso da desnutrição. O Fundo insta: Não devem deixar de cumprir com a dívida. Devem honrar os seus acordos. Mas o resultado é que cumprir com o contrato de crédito significa romper com outro acordo igualmente importante, o contrato social de um governo com o seu povo: manter empregos para os trabalhadores, garantir-lhes segurança social. Custa a crer que o FMI seja inocente quando recomenda esses remédios que pioram a saúde como no caso da Argentina, à qual pressiona pela austeridade fiscal no momento em que há uma recessão profunda. É óbvio que a receita não é boa. JS: Exactamente. Praticamente todos os economistas estariam de acordo com isso. Sobretudo porque o estado das finanças da Argentina não era tão mau como o Fundo tentou descrevê-lo. De facto, se a senhora olhar para a relação défice-PIB ela não era tão alta de acordo com a maioria dos critérios. Se a Meryll Lynch foi a julgamento por dar maus conselhos ou um médico pode ser condenado por práticas deficientes, poder-se-ia julgar e condenar o FMI por erros que provocam a fome de milhões? JS: Correcto. Uma das minhas principais críticas é que o Fundo como assessor económico deveria mostrar quais são as alternativas, quais são os impactos nos diferentes grupos, quais são os riscos e as incertezas e deixar que o país tome as decisões. O FMI pretende ditar uma determinada política, pretende que haja uma só política, pretende estar mais seguro acerca dos efeitos dessa política do que realmente está. Essa é uma função inadequada para um assessor. Outra crítica ao FMI é que alguns dos seus membros estão vinculados aos grandes bancos ou às grandes indústrias. Isto é "conflito de interesses". JS: Nos EUA temos fortes restrições àquilo que denominamos "portas giratórias". Para evitar o conflito de interesses, se alguém trabalhou numa instituição pública não pode fazê-lo numa privada senão depois de decorridos cinco anos. Mas o Fundo não está suficientemente atento, nem na aparência nem na realidade, para estes conflitos de interesses. Essas políticas que geram miséria mundial voltam-se, cedo ou tarde, como um boomerang contra os países ricos: imigrações maciças, aumento do terrorismo, doenças epidémicas. Quando o FMI ou os EUA tomam essas decisões vêm só os lucros a curto prazo ou calculam também as consequências e ameaças que podem resultar a longo prazo? JS: Não representam necessariamente o interesse dos EUA. Representam antes o interesse a curto prazo de grupos particulares dentro dos EUA. Veja-se o caso da Indonésia, por exemplo. Havia muita gente na Casa Branca e, especialmente, no Departamento de Estado preocupada porque o FMI e o Tesouro estavam a impor políticas excessivamente austeras que desestabilizariam o país e, por fim, a região e a estabilidade global. E estavam certos. O Tesouro foi excessivamente míope, não mediu as consequências. Esses grupos particulares tão influentes são sempre os mesmos ou são uns no caso da Indonésia, outros no caso da Rússia ou da Argentina? JS: São diferentes grupos de lobby. Mas não se podem por todos no mesmo saco. Por exemplo: as contas bancárias secretas offshore. Há muita gente em Wall Street que não aprova estas contas e condena a falta de transparência. E há outra quantidade de pessoas, também em Wall Street, que soube aproveitar as poupanças clandestinas de dinheiro efectivo, a maquia da lavagem de dinheiro, e que utilizou seu poder para exercer pressão. Até ao 11 de Setembro, a Casa Branca resistiu às correntes que apoiavam a redução ou a abertura directa desse segredo bancário. É importante compreender que a comunidade financeira não é um bloco homogéneo. Mas os que ganham no jogo de força são sempre os mesmos. Como se podem travar forças tão poderosas? JS: Há muita bibliografia que apoia esse ponto de vista. O problema é que os que se beneficiam fazem-se ouvir muito mais do que a grande maioria que fica prejudicada. Nisto a imprensa tem um papel fundamental. É importante que as pessoas saibam o que se passa. Há que mobilizar um espectro amplo da opinião pública. Porque uma vez mobilizada pode chegar as mudar as coisas consideravelmente. No seu livro o senhor diz que a ciência económica pode fazer muito pelos pobres. JS: Por isso a democratização é tão importante. Se há debates e discussões sobre as diferentes alternativas, quando estas são dadas a conhecer, aí as pessoas dizem: Ah, esta política tem tais consequências... Humm. Vamos ver esta outra e assim as pessoas podem escolher com o seu voto qual lhe parece melhor. Normalmente os economistas falam em jargão e depois sentenciam: "Isto é o melhor para o nosso país". JS: Por isso tão importante quanto os economistas apresentarem as alternativas é que a sociedade civil exija ouvir quais são para poder escolher aquelas que a beneficiem. Tem que haver mais compromisso. E não dizer: Isto é muito complicado, vamos deixar aos peritos. Porque os peritos que escolhem são sempre da comunidade financeira e vêm o mundo do seu ponto de vista. Dizem: Confiem em nós. Claro, sempre a partir da sua perspectiva, que nem sempre coincide com aquela que escolheria a maioria. E que fazemos com o medo ao FMI? JS: Já lhe disse: primeiro, reconhecer que o que vai atrair os investidores a longo prazo é o êxito. E o crescimento. Não se atrai investidores quando há depressão. E se o FMI o aconselha a ter depressão isso não lhe vai servir para nada. [*] do diário "Clarín", de Buenos Aires. Este artigo encontra-se em http://resistir.info |