O poder e a hegemonia
Apontamentos sobre a teoria marxista
De que maneira domina a classe dominante? Essa é a pergunta que vale um
milhão. Todos sabem que o capitalismo é um sistema de poder,
exploração e dominação. Não é
preciso esclarecer mais nada. Sofre-se na própria carne todos os dias. A
nossa dolorosa história argentina constitui uma prova irrefutável
desse facto. Mas o que é um tanto mais complexo é decifrar o
emaranhado das formas concretas, através das quais o capital se reproduz
quotidianamente e se exerce esse poder em cada conjuntura. Quando se trata de
resolver esse enigma, aparecem as dores de cabeça. Que não
são poucas...
O MODELO POLÍTICO DO MANIFESTO COMUNISTA
Na sua análise do capitalismo, Karl Marx, como um detective com a sua
lupa, tornou visível e trouxe para o terreno da teoria politica aquela
terrível realidade que viviam e sofriam os trabalhadores do seu tempo.
Toda a sociedade se divide em exploradores e explorados. Toda a história
da sociedade não é mais, sentenciou Marx, que a história
da luta de classes.
Esclavagistas e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos da
gleba, burgueses e proletários. Essa polarização classista
divide em duas partes o conjunto da história da sociedade.
Ainda que a genealogia da luta de classes tenha milénios atrás de
si, Marx não duvidou em identificar dois grandes actores desse drama
moderno: a burguesia e o proletariado.
O Estado era, segundo o autor do Manifesto, uma maquinaria de guerra do capital
contra o trabalho, dos opressores contra os oprimidos.
Pela sua simplicidade, este modelo de análise política fez
história e penetrou no coração de milhares e milhares de
militantes em todo o mundo. Não era preciso matar a cabeça para o
compreender. Dum lado estavam "eles" e do outro estávamos
"nós". Um pólo e outro pólo. Preto no branco.
Claro, límpido, transparente.
O MODELO POLÍTICO DO 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE
Mas, quando Marx se dispôs a analisar uma sociedade pontual, como era o
caso da França, que havia sido abalada pelo golpe de Estado de Luis
Bonaparte em Dezembro de 1851, após a derrota da
insurreição de 1848, elaborou uma análise muito mais
complexa. A luta de classes pode ser preto no branco, sim, mas vem acompanhada
por uma variada gama de cinzentos, que nas ardentes linhas do Manifesto
não apareciam em primeiro plano.
Além destes dois grandes personagens a burguesia e o proletariado
Marx distingue na formação social francesa toda uma gama
de segmentos sociais que integram também a luta de classes. Salienta
ainda o fraccionamento que a burguesia sofre no processo da luta
política. A fracção burguesa dedicada aos negócios
financeiros e a burguesia industrial são coisas diferentes, adverte
Marx. E nenhuma destas duas fracções é idêntica
à burguesia latifundiária. Entre os diversos fraccionamentos das
classes urdem-se alianças políticas onde uma das
fracções dirige e arrasta o resto. Assim, conclui Marx no 18
Brumário, a luta de classes não é linear e horizontal, mas
sim fraccionada e transversal.
No 18 Brumário, Marx fala-nos também de Luis Bonaparte, um
ditador que encabeça um golpe de Estado e permanece duas décadas
à frente do governo francês. Este ditador era uma personagem
secundária, rodeada de marginais, que, graças à
liderança do Exército, se converte em determinado momento da
história de França, numa espécie de
"árbitro" dos conflitos sociais. Uma espécie de
"juiz equidistante", que vem solucionar e moderar os conflitos. Como
este personagem que Marx detestava se chamava Luís Bonaparte
(sobrinho de Napoleão) a tradição marxista,
começando pelo próprio Marx, converteu em categoria
teórica essa análise política e transformou-a no conceito
de "bonapartismo".
Na sua análise de Luís Bonaparte e da situação francesa
daquele período, Marx apresenta elementos fundamentais da sua teoria
política.
Por exemplo, Marx sugere que a melhor forma de dominação
política da burguesia, a mais eficaz, é "a república
parlamentar". Para Marx, república parlamentar não é
sinónimo de democracia, como pretende a filosofia política do
liberalismo. A república parlamentar não garante "a
liberdade"; antes constitui uma forma de dominação. Ao
contrário da monarquia ou da ditadura militar (onde apenas um sector da
burguesia domina), na república parlamentar é a burguesia no seu
conjunto que exerce o domínio através do Estado e das suas
instituições "representativas". Segundo Marx, a
república parlamentar dilui os interesses peculiares das distintas
fracções da burguesia, alcançando uma espécie de
"média" de todos os interesses da classe dominante no seu
conjunto e, deste modo, consegue uma dominação política
geral, ou seja: anónima, impessoal e burocrática.
No 18 Brumário, Marx acrescenta ainda que, quando a
situação política "transborda", sob a
indisciplina e a rebelião popular, a velha maquinaria republicana (com
os seus partidos, o seu Parlamento, os seus juízes, a sua imprensa
"independente"; em suma: com todas as suas
instituições) torna-se insuficiente para manter a
dominação. Nesses momentos de crise aguda, os velhos partidos
políticos da burguesia deixam de representar essa classe social. Ficam
como que "flutuando no ar" e girando no vazio. Emerge, então,
outro tipo de liderança política para representar a classe
dominante: a burguesia deixa de estar representada pelos liberais, pelos
constitucionalistas ou pelos republicanos, para passar a ser representada pelo
Exército e pelas Forças Armadas que, deste modo, se constituem
como "O Partido da Ordem". O Exército aparece então na
arena política, como se... viesse equilibrar a situação
catastrófica, embora na realidade... venha garantir a
reprodução da dominação política da
burguesia. Argentina 1966, 1976, etc...
LÉNINE: TEÓRICO DA HEGEMONIA
Durante o século XX, diversos pensadores revolucionários tentaram
ampliar a reflexão de Marx. Não com um interêsse puramente
erudito, ainda menos "académico", mas antes apostando na luta
política dos trabalhadores. Tinham em mente o que todo o
revolucionário deve ter: o poder.
Entre muitos outros, Lénine, um dos mais brilhantes, pelas suas
contribuições teóricas e sobretudo pela sua
acção política, investigou profundamente as fontes do
pensamento de Marx sobre a dominação e o poder.
Num mesmo movimento, Lénine conjugou os dois modelos políticos
que Marx manejava, o do Manifesto, e o do 18 Brumário. Contra o que
poderia supor-se, numa análise superficial ou desprevenida, aqueles
não eram contraditórios entre si.
No Manifesto, Marx assinalou os grandes actores estruturais, os principais
contendentes da luta de classes contemporânea que se enfrentariam a longo
prazo. No 18 Brumário, trazia para o terreno prático essa teoria
geral. O estrutural conjugava-se com o conjuntural. A longa
duração da história, com o tempo curto da politica. A
estratégia com a táctica. O lógico com o histórico.
Por isso, Lénine pode definir o marxismo, enquanto método, como
"a análise concreta da situação concreta". Esse
tipo de análise pressupunha conjugar o geral de uma sociedade
capitalista com o particular, o género com a espécie, o comum a
todas as sociedades capitalistas com o específico de cada uma.
O conceito teórico a que Lénine apelou para dar conta dessa
operação de Marx foi o da "formação
económico-social". Uma sociedade pontual suponhamos a
França de 1851, a Rússia de 1905 ou a Argentina de 2003
tem algo de comum que compartilha com todas as sociedades capitalistas. E, ao
mesmo tempo, tem algo de específico e irrepetível.
Como se produz a luta de classes numa formação
económico-social? Através de alianças entre
fracções de classes sociais. Cada aliança constitui uma
"força social". (Quando Lénine emprega o termo de
"aliança" não está a pensar numa aliança
meramente eleitoral, como a da UCR e do FREPASO [dois partidos políticos
burgueses argentinos], mas sim numa aliança em termos de interesses
sociais e experiências políticas). No interior de cada
força social, existe uma fracção de classe que dirige
política e culturalmente o resto. Para o conseguir, esse segmento
social deve poder generalizar os seus próprios valores, a sua
própria cultura, o seu próprio programa político, ao
conjunto da força social. Em suma, deve poder conseguir que o conjunto
da força social interiorize e adopte como própria a
estratégia, os valores e o programa político da
fracção dirigente.
A todo esse complexo processo, através do qual se exerce a
direcção da força social na confrontação
política da luta de classes, Lénine denomina
"hegemonia". A dominação política, então,
não se exerce unicamente com a violência e a repressão do
Estado. Também se consegue através da direcção
política e da consumação da hegemonia.
GRAMSCI E AS RELAÇÕES DE PODER
Apropriando-se e retomando essa amplíssima bagagem de reflexões,
análises e modelos de pensamento político, Antonio Gramsci tentou
pensar a hegemonia em sociedades capitalistas complexas. Não só
para aquelas onde a burguesia domina através de uma ditadura feroz, mas
também para aquelas onde os segmentos hegemónicos das classes
dominantes recorrem à forma mais eficaz de dominação
política: a república parlamentar (que, insistimos, não
é sinónimo de "democracia", apesar do que nos dizem os
meios de comunicação do sistema).
O principal objecto de reflexão que tirou o sono a Gramsci, desde a sua
juventude até à maturidade, é o problema do poder. Ao
analisar o problema do poder, Gramsci introduziu uma das grandes
inovações na teoria e na filosofia política do
século XX. Mais de quatro décadas antes de Michel Foucault
formular a sua conhecida e academicamente celebrada tese, segundo
a qual o poder não reside no aparelho de Estado, não é uma
coisa mas sim relações, Antonio Gramsci com menor
reconhecimento académico havia chegado a uma conclusão
análoga.
O italiano, retomando as reflexões de Lénine sobre as
condições de uma "situação
revolucionária", redigiu uma das passagens fundamentais dos
Cadernos do Cárcere
(Caderno N°13, 1932-1934): "Análise de situação
e relações de força".
Aí, Gramsci demarca-se do marxismo catastrofista, segundo o qual da
crise económica do capitalismo surgiria, como por artes mágicas,
a revolução socialista. O capitalismo jamais cai por si mesmo,
pensa Gramsci. É preciso derrubá-lo! Para isso, é
necessário um sujeito organizado que intervenha, que seja activo, que
não espere passivamente a crise, como quem espera que caia um fruto
maduro de uma árvore. Como pode intervir o sujeito? Politicamente.
Mas a intervenção política não se realiza "no
ar", mas sim a partir de determinadas relações de poder e de
forças, porque o poder não se trata de uma coisa, mas de
relações.
A modificação das relações de força deve
partir de uma situação "económica objectiva" mas
nunca deter-se aí. Se não consegue passar ao plano
político geral, onde se transcende o imediatismo económico
corporativista passagem que Gramsci denomina "catarse"
toda a tentativa revolucionária se encaminha para o fracasso. Foi esse
o principal ensinamento que Gramsci extraiu da derrota dos conselhos
operários de Turim em 1920. Servir-nos-ão de tema de
reflexão a actual crise argentina e os desenvolvimentos posteriores ao
19 - 20 de Dezembro?
GRAMSCI E A HEGEMONIA
É nessa especificidade política que se coloca o problema de
alcançar a hegemonia, outro dos fios condutores na sua obra. Ao
reflectir sobre a hegemonia, Gramsci adverte que a homogeneidade da
consciência própria e a desagregação do inimigo se
realiza precisamente no terreno da batalha cultural. É esta a sua
incrível actualidade para operar nas condições abertas
pelo capitalismo tardio! Gramsci embrenha-se na reflexão sobre a
cultura, não para tentar legitimar a governabilidade consensual do
capitalismo, mas para o derrubar.
Que é, então, para Gramsci, a hegemonia? Não é um
sistema formal fechado, absolutamente homogéneo e articulado (estes
sistemas nunca ocorrem na realidade prática, só no papel, por
isso são tão cómodos, fáceis, abstractos e
esmiuçados, mas nunca explicam os acontecimentos numa sociedade
particular determinada). A hegemonia, pelo contrário, é um
processo que expressa a consciência e os valores organizados praticamente
por significados específicos e dominantes, num processo social vivido de
maneira contraditória, incompleta e até muitas vezes difusa.
Numa palavra, a hegemonia de um grupo social equivale à cultura que esse
grupo conseguiu generalizar para outros segmentos sociais. A hegemonia
é idêntica à cultura, mas é algo mais que a cultura
porque, além de tudo, inclui necessariamente uma
distribuição específica de poder, de hierarquia e de
influência. Como direcção política e cultural sobre
os segmentos sociais "aliados" influenciados por ela, a hegemonia
também pressupõe violência e coerção sobre os
inimigos. Não é apenas consenso (como habitualmente se pensa
numa análise trivial social-democrata do pensamento de Gramsci). Por
último, a hegemonia nunca é aceite de forma passiva, está
sujeita à luta, à confrontação, a toda uma
série de "safanões". Por isso quem a exerce, tem de a
renovar continuamente, reelaborar, defender e modificar, procurando neutralizar
o adversário, incorporando as suas reivindicações, embora
desembaraçadas de toda a sua perigosidade.
Se a hegemonia não é um sistema formal fechado, as suas
articulações internas são elásticas e deixam a
possibilidade de operar sobre ele por outro lado, a partir da crítica ao
sistema, da contra-hegemonia (à qual a hegemonia permanentemente se
vê obrigada a resistir). Se, por outro lado, a hegemonia fosse
absolutamente determinante excluindo toda a contradição e
toda a tensão seria impensável qualquer mudança na
sociedade.
Assim, ao reflectir analiticamente sobre as relações de poder e
de forças que caracterizam uma situação, Gramsci parte
duma relação "económica objectiva", para passar
de seguida à dimensão especificamente política e cultural
onde se constrói a hegemonia.
A conclusão a que Gramsci chega nos
Cadernos do Cárcere
, visualizando as relações de forças no seu conjunto,
é a seguinte: "Pode assim dizer-se que todos estes elementos
são a manifestação concreta das flutuações
de conjuntura do conjunto das relações sociais de força,
em cujo terreno tem lugar a sua passagem a relações
políticas de força para culminar na relação militar
decisiva".
Portanto, no pensamento de Gramsci "economia",
"política-cultura" e "guerra" são três
momentos internos de uma mesma totalidade social. Não se podem separar.
São graus e níveis diferentes de uma mesma relação
de poder, que pode resolver-se, tanto num sentido reaccionário (mantendo
o actual tipo de sociedade) como num sentido progressivo, através de uma
revolução.
Nem mesmo os especialistas, apesar de grandes conhecedores da obra do italiano,
entreviram as consequências que se deduziam desta concepção
do poder e da política. Ao fazer levianamente a separação
entre a cristalização económica por um lado
designando-a por "estrutura" e a
institucionalização política por outro
chamando-lhe "superestrutura" não se deram conta que,
concebendo o poder em termos relacionais, se podiam resolver grande parte das
aporias
[NT]
que o marxismo "ortodoxo" tinha deixado sem resposta.
Fundamentalmente, no que se refere à leitura de
O Capital
, de Karl Marx.
O INIMIGO TOMA A INICIATIVA: A REVOLUÇÃO PASSIVA
De Marx e Engels a Lénine, Trotsky e Mao, de Mariátegui a Che
Guevara e Fidel, grande parte das reflexões dos marxistas sobre a luta
de classes, giraram em torno da necessidade de os trabalhadores e o povo
assumirem a iniciativa política.
Mas o que acontece quando a iniciativa é tomada pelos nossos inimigos?
Que fazer quando os segmentos hegemónicos da burguesia tentam, com
medidas "progressistas", pôr-se à cabeça das
mudanças, a fim de desarmar, dividir e neutralizar os mas intransigentes
e radicais?
Para pensar esses momentos difíceis, que tanto se assemelham à
situação actualmente vivida na Argentina [Dezembro de 2003],
Gramsci elaborou uma categoria: a "revolução passiva".
Tomou-a de historiadores italianos, mas deu-lhe outro significado.
A revolução passiva é para Gramsci uma
"revolução-restauração", ou seja uma
transformação a partir de cima, pela qual os poderosos modificam
lentamente as relações de força para neutralizar os seus
inimigos de baixo.
Através da revolução passiva, os segmentos politicamente
hegemónicos da classe dominante e dirigente tentam "meter no
bolso" (a expressão é de Gramsci) os seus adversários
e opositores políticos, incorporando parte das suas
reivindicações, embora despojadas de todo o perigo
revolucionário.
Como enfrentar essa iniciativa? De que maneira podemos desmontar essa
estratégia burguesa? A resposta não está em nenhum livro.
Tem de ser dada pelo movimento popular.
É relativamente fácil identificar os nossos inimigos quando eles
adoptam um programa político de choque ou repressivo (pensemos em Videla
ou em Menem...). A questão complica-se quando certos sectores do poder
aplicam medidas "progressistas". Nesses momentos, torna-se mais
complexo e delicado navegar no tormentoso oceano da luta de classes...
* Coordenador do Seminário El Capital e da Cátedra de
Formação Política Ernesto Che Guevara da Universidad
Popular Madres de Plaza de Mayo.
________
[NT]
Aporia: Expressão filosófica que designa uma dificuldade de
ordem racional que pareça decorrer exclusivamente de um
raciocínio ou do conteúdo dele.
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/argentina/031221kohan.htm
.
Tradução de Carlos Coutinho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
|