Argentina: O massacre anunciado
Um juiz da Nação antecipou a este cronista, há 72 horas,
que estava em preparação "uma violenta repressão
contra os manifestantes
(piqueteros)
na Ponte Pueyrredón".
"Atenção disse o magistrado vão dar
tiros". O magistrado soube-o através do pessoal de
segurança com quem está em contacto devido às suas
funções. Este cronista tentou, por diversos meios, transmitir a
informação às organizações piqueteiras que
hoje foram sangrentamente reprimidas, mas não sabe se as mensagens
chegaram ao seu destino. Se não avisou nestas páginas (como
costuma fazê-lo) foi porque não pôde confirmar a
informação de modo claro e receou actuar como repetidor de um
rumor nascido nas activas fábricas de espionagem deste governo. Agora,
desgraçadamente para mortos, feridos e familiares, a realidade confirmou
tragicamente a informação antecipada. O governo interino de
Duhalde já tem seus mortos, novos sacrificados na fogueira do darwinismo
económico.
A forma como actuaram as forças provinciais, coordenadas com as
nacionais da Gendarmaria, Prefeitura e Polícia Federal, demonstra que a
emboscada estava adrede preparada e que não houve aqui qualquer excesso
e sim a adesão das nossas forças de segurança aos
procedimentos em vigor na ditadura militar. E também uma mensagem
inequívoca do poder central. Se não fosse assim, como poderiam
haver entrado efectivos da Federal 400 metros no terreno bonaerense?, como
poderia ter sido levado a cabo sem ordem judicial o local da Esquerda Unida em
que feriram e sequestraram militantes de um partido presente no Parlamento?
Como poderia a Bonaerense haver ocupado o Fiorito para sequestrar pessoas?
As denúncias abundam. Faze-las a quem? Acaso perante a Justiça
da província de Buenos Aires? A quem o pode denunciar este cronista que
ontem à tarde dois polícias bonaerenses foram vistos levando da
guarda do Fiorito dois sacos de nylon, contendo roupas manchadas de sangue,
obviamente dos caídos na repressão? Que mais uma vez
a Melhor Polícia do Mundo (Duhalde
dixit
) fez o que se sabe e roubou as provas do crime? A quem?
Por acaso ao secretário de Segurança Juan José Alvarez que
costumava comparar o preço de uma vida com o de uma lata de tomate?
Perante o senhor Governador da maior e mais injusta província da
Argentina, um progressista chamado Felipe Solá? Ou perante o patriota
da máscara de borracha que está (interinamente) no comando da
Nação a fim de esconder, dentre muitas outras coisas obscuras, os
desfalques e tropelias perpetrados na sua Província?
A nós cabe-nos gritar: "Vai-se acabar, vai-se acabar esse costume
de matar" e a eles cabe-lhes crivar-nos de balas ao longo de todas as
nossas vidas, para que Moneta, Rohm e outros rapazes que levaram alguma fruta
continuem em liberdade, impunes.
"Tornaria a assinar com gosto", declarou há poucos dias Carlos
Ruckauf, referindo-se ao decreto de Italo Luder que ordenava o aniquilamento de
uma geração. Seguramente também voltaria a aplaudir a
morte de rapazinhos argentinos nas Malvinas, que foi apoiada até ao
extremo por uma classe política que não tem entranhas e sim
bolsos. E também o longo genocídio silencioso perpetrado contra
os excluídos por presidentes como Menem, De la Rúa ou Duhalde,
que são implacáveis com os humildes e ajoelham-se diante dos
poderosos.
Uma vez mais os paladinos da morte arrancaram a máscara de
centuriões da democracia. Que nenhum homem prudente venha dizer-nos que
os piqueteiros foram mortos por "infiltrados, por loucos ou por
inconsequentes". Porque isso equivale ao "em algo andariam" com
que se
justificou o desaparecimento de 30 mil argentinos. Que nenhum
comissário de maus bofes venha desfigurar aquilo que todos viram com
grosseiras explicações sobre o calibre do crime. Que nenhum
denunciante dos meios de comunicação esconde a onde podre e
faça propaganda do caos. Uma vez mais, mataram manifestantes populares
que saem às ruas para gritar sua fome, seu desespêro, o roubo do
futuro.
Por vezes o jornalista deve dar lugar ao cidadão e animar-se a arvorar
um sonho: Isto não vai parar até que centenas de milhares de
compatriotas saiam pacificamente para encher e ocupar a Nove de Julho para
gritar "Basta! A democracia não é uma partida de jogadores
profissionais, nem um filme de gangsters. Ponham-se de lado para sempre, e
deixem que falem as urnas". Ou a Nação afundar-se-á,
irremediavelmente, numa nova tragédia.
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[*)
Diário "Página 12", 26/Jun/02,
tradução de J. Figueiredo
Este artigo encontra-se em
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