Reler Gramsci
(A propósito da edição completa dos seus
Cadernos do cárcere
em castelhano)
por Néstor Kohan e Miguel Bologna
[*]
Muitos revolucionários foram prisioneiros ao longo da história.
Juntamente com o longo cativeiro do líder negro Nelson Mandela, a
prisão que o regime fascista de Benito Mussolini impôs a
António Gramsci [1891-1937] constitui uma das mais célebres do
mundo.
Apesar de estar protegido pela imunidade parlamentar, por ser deputado
comunista de Veneza, Gramsci foi detido em 8 de Novembro de 1926 (tinha 35 anos
de idade). Durante o julgamento que se realizou em Roma em 1928, o promotor
fascista Michele Isgrò foi categórico: "Durante vinte ano
devemos impedir este cérebro de funcionar". Gramsci foi condenado
a 20 anos, 4 meses e 5 dias de reclusão.
Assim que foi preso solicitou que o deixassem escrever, mas a permissão
foi-lhe negada. Transportaram-no de prisão em prisão por toda a
Itália. Cada vez que podia ia às bibliotecas das prisões.
Em 1927, por exemplo, pediu aos seus amigos as obras de Maquiavel.
Só em Janeiro de 1929, depois de dois anos e quatro meses, obteve
permissão para escrever. O primeiro caderno começa em 8 de
Fevereiro de 1929. O seu primeiro plano de redacção tem essa
data. Volta a este plano numa carta desse ano a sua cunhada Tatiana Schucht
(que dele cuidou durante seu cativeiro).
Desde 1910 até 1926 a produção teórica de Gramsci
(em grande parte jornalística), ainda que de grande fôlego,
correspondeu sobretudo a necessidades políticas conjunturais. Mas
quatro meses após a sua detenção, a 19 de Março de
1927, contou a Tatiana, com uma expressão que pertence a Goethe, sua
ideia de escrever "para a eternidade". Essa carta marca a
génese de uma escrita que nos
Cadernos do cárcere
retoma as análises e as experiências anteriores à
prisão mas desenvolve uma reflexão política
estratégica e de longo prazo sobre a revolução no
ocidente, parcialmente independente e relativamente autónoma da
conjuntura imediata da Itália fascista.
Apesar de todas as adversidades, Gramsci contou com uma pequena vantagem.
Antes de ser preso estava a escrever acerca da "Questão
meridional". O problema do sul da Itália, subdesenvolvido e
periférico, obcecava-o. Ali adiantava grande parte dos temas dos
Cadernos
: os intelectuais, a cultura e a ideologia, a crítica do marxismo
economicistas e a ortodoxia determinista, a história da Itália, o
papel de Benedetto Croce (como teórico da revolução
passiva destinada a neutralizar a influência do marxismo) e o eixo
central de todos os
Cadernos
: a hegemonia. No cárcere, principiou pela retomada dessa
reflexão.
Gramsci não escrevia comodamente num gabinete, nem desfrutava da
tranquilidade de uma biblioteca. Estava gravemente doente: em 1928 já
havia perdido 12 dentes! Em 1931 sofreu sua primeira crise aguda e em 1933 a
segunda. Ia morrendo lentamente. Viveu cada página avançada nos
seus cadernos como uma pequena vitória arrancada à
violência que sobre ele exerciam os seus carcereiros.
Os seus
Cadernos do cárcere
têm um carácter essencialmente fragmentário e disperso.
Isso explica as razões da complexidade da sua leitura.
Após o falecimento do seu autor, os
Cadernos
foram editados inicialmente como seis livros unitários, apesar de
originalmente estarem inconclusos. Gramsci nunca chegou a terminá-los
em vida. Sua publicação póstuma esteve sempre submetida
ao interesse político dos seus editores.
Após a morte de Gramsci, em 1937, Tatiana envia os manuscritos do
cárcere para Moscovo (onde vivia sua esposa Julia Schucht, seus dois
filhos e onde estava exilado Palmiro Togliatti, então dirigente do PCI),
mas a expedição atrasou-se um ano. Só chegaram em Julho
de 1938. Ali, uma equipe dirigida por Togliatti ocupou-se de "rever"
tanto as Cartas do cárcere como os
Cadernos
(seleccionando certos temas, recortando, colando e armando livros
unitários que Gramsci não chegou a escrever). Eram os tempos da
"ortodoxia" de Stalin... A heresia e a heterodoxia de Gramsci
tornavam-se suspeitas...
Após a derrota do fascismo, em 1947, surgiu a primeira
edição italiana das Cartas. Em 1948 começaram a editar-se
em Itália os
Cadernos
, preparados tematicamente por Togliatti, que tentou assim enquadrar a
originalidade de Gramsci dentro dos moldes trilhados da ortodoxia stalinista.
Ainda assim, esses cadernos vieram à luz só depois de dez anos,
apesar de Togliatti os ter em seu poder desde 1938.
Só após a morte de Stalin (1953) e do XX Congresso do PC
soviético (que a partir de 1956 tentou legitimar um stalinismo sem
Stalin) surgiu na Itália a ideia de editar os
Cadernos
na mesma ordem cronológica (e não temática) em que
Gramsci os concebeu. Essa nova edição crítica foi
decidida originalmente em 1961 e foi publicada em italiano em 1975 em quatro
volumes, graças ao estudioso Valentino Gerratana, recentemente falecido.
[Antonio Gramsci: Quaderni del carcere. Edizione crítica dell'Istituto
Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Einaudi Editore].
Só agora, um quarto de século depois, os leitores de
língua espanhola poderão consultar de forma completa a totalidade
dos escritos originais de Gramsci, tal como ele os escreveu na prisão.
Deve-se ter em conta que tanto Héctor Pablo Agosti (introdutor de
Gramsci na Argentina) como José Pancho Aricó (um dos principais
teóricos nos anos 60 da nova esquerda cultural), os dois principais
gramscianos argentino, beberam nas fontes de Togliatti. O mesmo vale para
várias gerações de universitários argentinos que
incursionaram clandestinamente nos seus textos, enquanto nossas academias
vergonhosamente davam-lhe as costas. Algo semelhante ocorreu no México
e no Brasil, ainda que ali a neblina académica fosse menor.
O empreendimento da tradução da edição
crítica havia começado no México em 1982 (nessa
época traduziram-se publicaram-se em espanhol apenas quatro volumes de
uma edição planificada para seis) mas nunca foi concluída
porque a crise da esquerda mexicana deixou sem fôlego aquela primeira
tentativa. Recentemente, graças a uma equipe dirigida e impulsionada
pela especialista grego-mexicana Dora Kanoussi, a editorial ERA (o abrigo desde
os anos 60 de grande parte da literatura da nova esquerda mexicana, incluindo
os zapatistas), junto com a Universidade Autónoma de Puebla, acabam de
publicar a edição crítica completa em seis volumes. A
tradução coube a Ana María Palos e foi revista por
José Luis González.
Esta edição crítica dos
Cadernos
reúne um total de mais de 3000 páginas. Ainda que esse
gigantesco material seja muito fragmentário, a reflexão de
Gramsci nunca é caótica. Esta nova edição contem
um valiosíssimo e imprescindível apêndice final com
diversos índices que permitem recorrer e rastrear rapidamente os seis
volumes. Para o leitor principiante inclui também uma breve cronologia
biográfica.
Cada geração leu e interrogou este clássico a partir do
seu próprio horizonte cultural e a partir dos seus próprios
problemas políticos. As interpretações comunistas
ortodoxas dos anos 50, da nova esquerda nos anos 60, "nacionais e
populares" nos 70 e social-democratas nos 80 já ficaram na
história.
Como os lerão e interpretarão as/os jovens
revolucionárias/os do século XXI?
Referência:
Cuadernos de la cárcel
de Antonio Gramsci.
EDICIÓN CRÍTICA COMPLETA a cargo de Valentino Gerratana.
México, Ediciones ERA-Universidad Autónoma de Puebla, 2001.
Traducción de Ana María Palos y revisión de José
Luis González. Tomo 1: 452 pp; Tomo 2: 514 pp; Tomo 3: 504 pp; Tomo 4:
480 pp.; Tomo 5: 556 pp.; Tomo 6: 610 pp.
Em português estão publicados todos os
seis volumes
, pela Civilização Brasileira.
[*]
Investigadores argentinos.
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/argentina/031219bologna.htm
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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