Kirchner, o governo da burguesia “nacional”


por Manolo Romano

Nestor Kirchner, o presidente dos 22%. Apesar de o seu governo ter nascido fraco, Kirchner assume a presidência a fim de administrar a grande conquista alcançada pela burguesia com o "trabalho sujo" da desvalorização: a queda brutal do salário dos trabalhadores.

Com a saída da convertibilidade através da desvalorização os salários cairam, em média, uns 25%, um quarto do seu poder aquisitivo: os trabalhadores registados perderam 17%, os do Estado 28% e aqueles "no negro" até 33%. Este roubo escandaloso, consentido pelas direcções sindicais oficiais, soma-se à "naturalização" do assistencialismo para milhões de desempregados com 150 Lecop por família, que por sua vez perderam uns 36%. Obra de Duhalde.

Este chicote de duas pontas, o hiperdesemprêgo (conseguido com a convertibilidade de Menem e De la Rúa) e o roubo do salário real (com a desvalorização de Duhalde), é aquilo que garante a baixa da massa salarial conjunta e a superexploração da classe operária. Ou seja, oportunidades de negócio com mão-de-obra barata.

A manutenção de um dólar a 3 pesos, como propõe Kirchner, aponta para a consolidação desta conquista da classe capitalista. Ele apostará em que continuem a ganhar os grandes exportadores, podendo aumentar-lhes a retenções para daí tirar divisas a fim de pagar o FMI. Isto quer dizer que o "novo amanhecer", como chamou, não é outra coisa senão o mesmo velho plano da burguesia argentina aplicado, sob Alfonsin, pelos chamados "capitães da indústria", com a agravante de que nenhum dos ramos de grande exportação é absorvedor de mão-de-obra e permanecerá a hiperdesocupação. Nesse âmbito, o plano de obras públicas de que se fala, muito longe de cobrir o défice de 3 milhões de habitações e 4 milhões de desempregados e subempregados, significará um negócio duplo para monopólios como a Techint (simultaneamente exportadores e empreiteiros da construção) que poderão por em marcha o velho projecto de incorporar "beneficiários" do Plano Chefas e Chefes, e acrescentarão apenas a metade de um salário de 300 pesos.

A chamada "cultura do trabalho e da produção" é, na realidade, do desemprêgo e da exploração. A "era K", que anuncia o diário "progressista" Página/12, será uma era de maior escravidão operária que a "nossa burguesia nacional" aspira inaugurar.

Para isso Kirchner procurará apoio nas direcções conciliadores das CGTs, da CTA e dos movimentos piqueteiros como a FTV e a CCC. Nenhuma trégua, "pacto de governabilidade" nem colaboração com o governo dos 22%.

O GOVERNO DE KIRCHNER

A assunção de um governo com 22% dos votos é a "clarificação" ("sinceramiento") da situação de uma classe dominante que atravessa uma crise histórica: um poder burguês em xeque, por um lado, devido à sua própria falta de perspectiva para o país, e, por outro, devido ao golpe recebido nas jornadas revolucionárias de Dezembro de 2001.

A renúncia de Menem na segunda volta das presidenciais desnudou a debilidade do conjunto do regime político que procuravam emplastar com o processo eleitoral embusteiro principiado em 27 de Abril. A posição correcta para a esquerda perante eleições tão manhosamente ajeitadas que negavam até a possibilidade de obter tribunas parlamentares para apoiar as lutas populares e estava concebido para obrigar a optar entre dois candidatos à instituição mais reaccionária do regime burguês, o presidente, era a recusa do conjunto. Lamentavelmente a esquerda participacionista com a IU e a PO não ouviram o chamado unitário que a partir do PTS fizemos a outras forças.

Não era preciso eleição nem inquérito algum para determinar que a esmagadora maioria da população nacional odeia e recusa o menemismo, simplesmente porque "os inquiridos" já repudiaram a política neoliberal dos anos 90 com a mobilização nas ruas que deitou fora De la Rúa e Cavallo, continuadores de Menem. Se o menemismo moribundo teve uma sobrevida foi porque aquelas jornadas deixaram inconclusa a tarefa de acabar com todo o velho regime político que, por sua vez, abrigou e abrigará Menem tal como o fará também com López Murphy que aspira sucedê-lo, com a másacara da "anticorrupção", como representante directo da nata do establishment de bancos estrangeiros, empresas privatizadas e tecnocratas do FMI.

A falida segunda volta só tinha o objectivo de ocultar a fragmentação e a debilidade de todos os partidos dos exploradores, expressa em 27 de Abril, sob uma avalanche de votos 'emprestados' a Kirchner como "mal menor" e erigir um presidente com maior legitimidade: nisto consistia o embuste. Com ele colaboraram todas as variantes de centro-esquerda, como Ibarra e Carrió, a direcção da CTA e até dirigentes "piqueteiros" como D'Elia, para não falar das cúpulas das CGT.

PACTOS DE "GOVERNABILIDADE"
E CONCILIAÇÃO DE CLASSES


Agora que "o rei está nú", os apelavam a votar em Kirchner na segunda volta apoiam o novo presidente em nome da "governabilidade". Iludindo com a chegada de "um novo amanhecer", sustentam a quinta-essência do velho regime: Kirchner é um presidente apadrinhado pelo aparelho de Buenos Aires do PJ e é a continuidade do actual governo que converteu em pesos as milionárias dívidas empresariais e do escandaloso roubo salarial mediante a desvalorização. Foi lançado no governo pelos mesmos que em princípio haviam proposto que o "eleito" para a sucessão presidencial fosse Reutemann, responsável directo da actual catástrofe social em Santa Fé. O governo da chamada "burguesia nacional" não é senão o governo dos sócios menores do menemismo, que durante o auge do neoliberalismo funcionaram como seus sequazes nas governações de Buenos Aires e Santa Cruz. A permanência de Lavagna como ministro da Economia no próximo gabinete de Kirchner é a demonstração do continuísmo na aceitação de todas e cada uma das exigências do FMI.

Kirchner deverá, necessariamente, recorrer ao engano e aos pactos. Tentará transformar sua debilidade de origem em fortaleza pedindo a colaboração das direcções conciliadoras do movimento operário e popular. Seguramente serão ampliados os mecanismos de conciliação de classes que a gestão de Duhalde vem aplicando para conter o desespêro de milhões de desempregados e impedir sua luta independente, com a criação de Conselhos Consultivos para distribuir os planos Chefas e Chefes em que participam a FTV-CTA e a CCC. Do mesmo modo, para impedir ou isolar as lutas dos trabalhadores, para recuperar o salário perdido Kirchner pactuará com a burocracia das CGTs e da CTA com algum aumento salarial muito abaixo da inflação e do que os trabalhadores perderam com a desvalorização. As burocracia sindicais e "piqueteiras" serão um dos apoios do governo Kirchner.

Mas, além disso, precisará das composições com os restos dos partidos do velho regime para conseguir os "consensos parlamentares" que permitam votar as leis reclamadas pelo FMI. Apelará aos restos da UCR que, apesar do repúdio popular, ainda conserva seus senadores e deputados do passado, assim como deverá negociar com os governadores das províncias incluindo, naturalmente, aqueles que apoiaram Menem na primeira volta e lhe pediram que se retirasse na segunda.

Longe de um governo de "transparência" e "renovação", será um governo de arranjos camuflados e pactos nas costas do povo.

MAIS CHOQUES DE CLASSES NO HORIZONTE

Mas as tentativas conciliadores do novo governo chocar-se-ão, tarde ou cedo, com as reivindicações mais sentidas dos trabalhadores e do povo, e ainda com as disputas no interior da classe dominante. Todas as classes reclamarão o seu diante de um governo fraco. A tendência mais profunda é para a polarização social e para a guerra de classes.

A luta entre as facções económicas que por um lado contam com os bancos estrangeiros, as privatizadas, as empresas transnacionais e, por outro, os grandes grupos locais impulsionadores da "pátria desvalorizadora" continuarão e serão um factor de desestabilização económica e de chantagem político ao novo governo. O descaramento de Menem para com "as regras do jogo" da democracia burguesa, ainda no âmbito da sua derrota, significa, além de auto-preservar-se de uma derrota esmagadora, uma ameça futura de uma saída autoritária que, ainda que não possa ser corporizada agora pelo riojano, está inscrita como variante burguesa no horizonte de uma maior polarização entre as classes.

Esta polarização reflectiu-se, antes de tudo, na disposição política das classes médias, como se pode avaliar na eleição de 27 de Abril: os 16% de votos para López Murphy e os 14% para Carrió são uma expressão disto. Enquanto um "centro" da classe média, mais conservador da estabilidade política e da paz social relativa conseguida pela "contenção" de Duhalde, optou pelo continuísmo e por seguir o candidato oficial Kirchner, o polo da direita "moderna" de López Murphy foi engrossado pela elite ou "aristocracia pequeno-burguesa" forjada em torno da entrada de capitais nos anos 90. As camadas baixas que votaram por Carrió reflectem, distorcidamente, outro polo que dá mostras de solidariedade perante causas populares da vanguarda operária, especialmente na sua defesa diante das tentativas repressivas, como foi demonstrado pelo caso de Brukman na Capital e pela defesa dos operários da Zanon em Neuquén.

O governo Kirchner terá amortecer as disputas e tendências para a polarização social mediante uma grande frente de colaboração de classes, preventiva, ou seja, para evitar que emerja o movimento operário nas brechas abertas no regime e na classe dominante.

Ainda que a massa dos oito milhões de trabalhadores assalariados não protagonize grandes greves e mobilizações e, menos ainda, tenha expressão independente no terreno político, as acções da vanguarda operária, como assinalámos nestas páginas, antecipam a intervenção dos trabalhadores no cenário nacional.
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Lecop: Equivalência dada ao peso após a desdolarização.

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/argentina/030522romano.htm .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

23/Mai/03