Kirchner, o governo da burguesia nacional
por Manolo Romano
Apesar de o seu governo ter nascido fraco, Kirchner assume a presidência
a fim de administrar a grande conquista alcançada pela burguesia com o
"trabalho sujo" da desvalorização: a queda brutal do
salário dos trabalhadores.
Com a saída da convertibilidade através da
desvalorização os salários cairam, em média, uns
25%, um quarto do seu poder aquisitivo: os trabalhadores registados perderam
17%, os do Estado 28% e aqueles "no negro" até 33%. Este
roubo escandaloso, consentido pelas direcções sindicais oficiais,
soma-se à "naturalização" do assistencialismo
para milhões de desempregados com
150 Lecop
por família, que por sua vez perderam uns 36%. Obra de Duhalde.
Este chicote de duas pontas, o hiperdesemprêgo (conseguido com a
convertibilidade de Menem e De la Rúa) e o roubo do salário real
(com a desvalorização de Duhalde), é aquilo que garante a
baixa da massa salarial conjunta e a superexploração da classe
operária. Ou seja, oportunidades de negócio com
mão-de-obra barata.
A manutenção de um dólar a 3 pesos, como propõe
Kirchner, aponta para a consolidação desta conquista da classe
capitalista. Ele apostará em que continuem a ganhar os grandes
exportadores, podendo aumentar-lhes a retenções para daí
tirar divisas a fim de pagar o FMI. Isto quer dizer que o "novo
amanhecer", como chamou, não é outra coisa senão o
mesmo velho plano da burguesia argentina aplicado, sob Alfonsin, pelos chamados
"capitães da indústria", com a agravante de que nenhum
dos ramos de grande exportação é absorvedor de
mão-de-obra e permanecerá a hiperdesocupação.
Nesse âmbito, o plano de obras públicas de que se fala, muito
longe de cobrir o défice de 3 milhões de habitações
e 4 milhões de desempregados e subempregados, significará um
negócio duplo para monopólios como a Techint (simultaneamente
exportadores e empreiteiros da construção) que poderão por
em marcha o velho projecto de incorporar "beneficiários" do
Plano Chefas e Chefes, e acrescentarão apenas a metade de um
salário de 300 pesos.
A chamada "cultura do trabalho e da produção" é,
na realidade, do desemprêgo e da exploração. A "era
K", que anuncia o diário "progressista" Página/12,
será uma era de maior escravidão operária que a
"nossa burguesia nacional" aspira inaugurar.
Para isso Kirchner procurará apoio nas direcções
conciliadores das CGTs, da CTA e dos movimentos piqueteiros como a FTV e a CCC.
Nenhuma trégua, "pacto de governabilidade" nem
colaboração com o governo dos 22%.
O GOVERNO DE KIRCHNER
A assunção de um governo com 22% dos votos é a
"clarificação"
("sinceramiento")
da situação de uma classe dominante que atravessa uma crise
histórica: um poder burguês em xeque, por um lado, devido
à sua própria falta de perspectiva para o país, e, por
outro, devido ao golpe recebido nas jornadas revolucionárias de Dezembro
de 2001.
A renúncia de Menem na segunda volta das presidenciais desnudou a
debilidade do conjunto do regime político que procuravam emplastar com o
processo eleitoral embusteiro principiado em 27 de Abril. A
posição correcta para a esquerda perante eleições
tão manhosamente ajeitadas que negavam até a possibilidade de
obter tribunas parlamentares para apoiar as lutas populares e estava concebido
para obrigar a optar entre dois candidatos à instituição
mais reaccionária do regime burguês, o presidente, era a recusa do
conjunto. Lamentavelmente a esquerda participacionista com a IU e a PO
não ouviram o chamado unitário que a partir do PTS fizemos a
outras forças.
Não era preciso eleição nem inquérito algum para
determinar que a esmagadora maioria da população nacional odeia e
recusa o menemismo, simplesmente porque "os inquiridos" já
repudiaram a política neoliberal dos anos 90 com a
mobilização nas ruas que deitou fora De la Rúa e Cavallo,
continuadores de Menem. Se o menemismo moribundo teve uma sobrevida foi porque
aquelas jornadas deixaram inconclusa a tarefa de acabar com todo o velho regime
político que, por sua vez, abrigou e abrigará Menem tal como o
fará também com López Murphy que aspira sucedê-lo,
com a másacara da "anticorrupção", como
representante directo da nata do establishment de bancos estrangeiros, empresas
privatizadas e tecnocratas do FMI.
A falida segunda volta só tinha o objectivo de ocultar a
fragmentação e a debilidade de todos os partidos dos
exploradores, expressa em 27 de Abril, sob uma avalanche de votos 'emprestados'
a Kirchner como "mal menor" e erigir um presidente com maior
legitimidade: nisto consistia o embuste. Com ele colaboraram todas as
variantes de centro-esquerda, como Ibarra e Carrió, a
direcção da CTA e até dirigentes "piqueteiros"
como D'Elia, para não falar das cúpulas das CGT.
PACTOS DE "GOVERNABILIDADE"
E CONCILIAÇÃO DE CLASSES
Agora que "o rei está nú", os apelavam a votar em
Kirchner na segunda volta apoiam o novo presidente em nome da
"governabilidade". Iludindo com a chegada de "um novo
amanhecer", sustentam a quinta-essência do velho regime: Kirchner
é um presidente apadrinhado pelo aparelho de Buenos Aires do PJ e
é a continuidade do actual governo que converteu em pesos as
milionárias dívidas empresariais e do escandaloso roubo salarial
mediante a desvalorização. Foi lançado no governo pelos
mesmos que em princípio haviam proposto que o "eleito" para a
sucessão presidencial fosse Reutemann, responsável directo da
actual catástrofe social em Santa Fé. O governo da chamada
"burguesia nacional" não é senão o governo dos
sócios menores do menemismo, que durante o auge do neoliberalismo
funcionaram como seus sequazes nas governações de Buenos Aires e
Santa Cruz. A permanência de Lavagna como ministro da Economia no
próximo gabinete de Kirchner é a demonstração do
continuísmo na aceitação de todas e cada uma das
exigências do FMI.
Kirchner deverá, necessariamente, recorrer ao engano e aos pactos.
Tentará transformar sua debilidade de origem em fortaleza pedindo a
colaboração das direcções conciliadoras do
movimento operário e popular. Seguramente serão ampliados os
mecanismos de conciliação de classes que a gestão de
Duhalde vem aplicando para conter o desespêro de milhões de
desempregados e impedir sua luta independente, com a criação de
Conselhos Consultivos para distribuir os planos Chefas e Chefes em que
participam a FTV-CTA e a CCC. Do mesmo modo, para impedir ou isolar as lutas
dos trabalhadores, para recuperar o salário perdido Kirchner
pactuará com a burocracia das CGTs e da CTA com algum aumento salarial
muito abaixo da inflação e do que os trabalhadores perderam com a
desvalorização. As burocracia sindicais e
"piqueteiras" serão um dos apoios do governo Kirchner.
Mas, além disso, precisará das composições com os
restos dos partidos do velho regime para conseguir os "consensos
parlamentares" que permitam votar as leis reclamadas pelo FMI.
Apelará aos restos da UCR que, apesar do repúdio popular, ainda
conserva seus senadores e deputados do passado, assim como deverá
negociar com os governadores das províncias incluindo, naturalmente,
aqueles que apoiaram Menem na primeira volta e lhe pediram que se retirasse na
segunda.
Longe de um governo de "transparência" e
"renovação", será um governo de arranjos
camuflados e pactos nas costas do povo.
MAIS CHOQUES DE CLASSES NO HORIZONTE
Mas as tentativas conciliadores do novo governo chocar-se-ão, tarde ou
cedo, com as reivindicações mais sentidas dos trabalhadores e do
povo, e ainda com as disputas no interior da classe dominante. Todas as
classes reclamarão o seu diante de um governo fraco. A tendência
mais profunda é para a polarização social e para a guerra
de classes.
A luta entre as facções económicas que por um lado contam
com os bancos estrangeiros, as privatizadas, as empresas transnacionais e, por
outro, os grandes grupos locais impulsionadores da "pátria
desvalorizadora" continuarão e serão um factor de
desestabilização económica e de chantagem político
ao novo governo. O descaramento de Menem para com "as regras do
jogo" da democracia burguesa, ainda no âmbito da sua derrota,
significa, além de auto-preservar-se de uma derrota esmagadora, uma
ameça futura de uma saída autoritária que, ainda que
não possa ser corporizada agora pelo riojano, está inscrita como
variante burguesa no horizonte de uma maior polarização entre as
classes.
Esta polarização reflectiu-se, antes de tudo, na
disposição política das classes médias, como se
pode avaliar na eleição de 27 de Abril: os 16% de votos para
López Murphy e os 14% para Carrió são uma expressão
disto. Enquanto um "centro" da classe média, mais conservador
da estabilidade política e da paz social relativa conseguida pela
"contenção" de Duhalde, optou pelo continuísmo e
por seguir o candidato oficial Kirchner, o polo da direita "moderna"
de López Murphy foi engrossado pela elite ou "aristocracia
pequeno-burguesa" forjada em torno da entrada de capitais nos anos 90. As
camadas baixas que votaram por Carrió reflectem, distorcidamente, outro
polo que dá mostras de solidariedade perante causas populares da
vanguarda operária, especialmente na sua defesa diante das tentativas
repressivas, como foi demonstrado pelo caso de Brukman na Capital e pela defesa
dos operários da Zanon em Neuquén.
O governo Kirchner terá amortecer as disputas e tendências para a
polarização social mediante uma grande frente de
colaboração de classes, preventiva, ou seja, para evitar que
emerja o movimento operário nas brechas abertas no regime e na classe
dominante.
Ainda que a massa dos oito milhões de trabalhadores assalariados
não protagonize grandes greves e mobilizações e, menos
ainda, tenha expressão independente no terreno político, as
acções da vanguarda operária, como assinalámos
nestas páginas, antecipam a intervenção dos trabalhadores
no cenário nacional.
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Lecop:
Equivalência dada ao peso após a desdolarização.
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/argentina/030522romano.htm
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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