O império e a teoria marxista do imperialismo

por Atilio A. Boron [*]

Atilio Boron. Razões de um debate

Dias atrás, tomei conhecimento de uma nota sumamente crítica dos meus desacordos e radicais questionamentos da teoria do "império" elaborada por Michael Hardt e Antonio Negri, apresentados no meu livro Império & Imperialismo (Buenos Aires: CLACSO, 2002). Devo confessar que a minha primeira reacção ao acabar de ler estas críticas, foi a de as pôr de lado e prosseguir com os meus afazeres. Não me parecia que tivesse muito sentido polemizar com uma nota onde a paixão posta pelo seu autor, um traço que sem dúvida julgo como algo muito positivo quando se joga no terreno da argumentação rigorosa, se esgotava lamentavelmente numa entediante sucessão de injúrias e desqualificações pessoais.

No entanto, pouco depois cheguei a uma conclusão diferente, e isto por duas razões. Primeiro, porque os argumentos contra mim esgrimidos reflectiam, de maneira cristalina, a preocupante confusão que prevalece em certos sectores da esquerda, embriagada com os vapores do pós-modernismo e cega e surda ante os desafios decorrentes da actual realidade do imperialismo. Pese a sua veemente formulação, a crítica não podia ser decifrada como sendo uma idiossincrática birra de um personagem solitário, mas sim como um sintoma de um problema muito mais geral: a confusão e desorientação que prevalece na esquerda e que se reflecte tanto no terreno da teoria como no da prática política. Trata-se, por conseguinte, de uma questão que reveste uma importância que transcende o pessoal e anedótico e a torna merecedora de uma atenção especial. Em consequência, e esta é a segunda razão, pensei que o meu silêncio poderia ser (mal) interpretado como tácita aceitação de dolorosas verdades que haviam embotado a minha consciência, deixando-me sem argumentos. Espero não ferir demasiado a delicada epiderme dos pós-modernos se me permito recordar uma velha frase de Lenine, mais oportuna que nunca nos tempos que correm: "o marxismo não é um dogma, mas um guia para a acção". Este debate de ideias não é uma questão escolástica. Não estamos discutindo o sexo dos anjos, mas sim tentando fazer um diagnóstico do capitalismo actual e dos eventuais caminhos para a sua superação. E sem uma descrição e análise rigorosas do imperialismo "realmente existente", não daquele que alguns imaginam, não haverá possibilidade alguma de superar esse regime de produção que colocou a humanidade numa encruzilhada que pela sua gravidade, não tem precedentes na História. Em virtude destas considerações, decidi sair a terreiro e expor a minha mais radical discordância com as posições de um importante sector da esquerda que ainda se move nas trevas.

Discordância que começa com as questões formais. Porque, nos debates que a esquerda necessita, os assuntos formais são também questões de fundo. O recurso aos insultos e às desqualificações testemunham uma exasperação e um estado mental dificilmente consistente com a serenidade que exige uma situação tão crítica como a actual, onde é o próprio futuro da espécie humana que está em causa. Um bom piloto de tormentas, e recordemos que um intelectual é em grande medida isso nos tempos que correm, não pode pretender orientar o curso do navio da teoria simplesmente insultando e injuriando quem não concorde com os seus critérios. Espera-se dele algo mais que o uso de expressões como "renegado", "revisionista", "passa por marxista" (ao não o ser, o sujeito em questão converte-se num impostor), "enredos conceptuais", "compreensão mínima", "alucinado", e outras que pelo estilo, revelam o desespero de quem obscuramente pressente que os seus argumentos são débeis e que, portanto, não lhe resta outro recurso que apelar a uma vistosa pirotecnia verbal para remediar a inquietude que brota da sua própria debilidade. A primeira reflexão que me ocorria ao reexaminar, não sem uma certa tristeza, o texto em questão, foi que, com defensores como García, Hardt e Negri estarão condenados a passar muito maus bocados às mãos dos seus críticos.

Outra reflexão, também formal, motivou a minha curiosidade. Há apenas algumas semanas, estive na Colômbia, país de que é cidadão o Sr. García. Mais exactamente, estive na sua universidade, a Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. O Departamento de Ciência Política organizou ali uma mesa redonda em torno do tema "Império não, Imperialismo", que despertou um extraordinário interesse entre estudantes e professores. A Aula Magna da Faculdade de Direito, onde teve lugar o evento, foi completamente superlotada por uma assistência que superava as quinhentas pessoas. Lamentavelmente, não tive a possibilidade de o conhecer pessoalmente nessa ocasião, nem de ouvir, entre as múltiplas perguntas que suscitou a minha intervenção, ninguém que compartilhasse sequer remotamente as acusações de que sou objecto no seu escrito. Mas isto já não importa. Vamos aos temas de fundo.

UMA NOVÍSSIMA LEITURA DO MARXISMO

Permita-se-me começar por dizer que deixarei de lado questões menores que revelam o profundo desconhecimento que García tem do meu pensamento. Seria absurdo argumentar que tem a obrigação de conhecer prolixamente os meus escritos. Mas se alguém quer dar-se ao luxo de adjectivar à vontade o seu ocasional adversário, tem que assegurar-se primeiro de estar suficientemente familiarizado com a sua obra, a fim de se poupar a desagradáveis refutações. Dizer que em alguma parte da minha obra, eu teria dito que "Maquiavel é o instigador da tortura", constitui uma prova do absoluto desconhecimento que o meu crítico tem dos meus escritos (e portanto da leviandade com que os julga e qualifica). Se alguma coisa há que durante anos caracterizou a minha leitura do teórico florentino, fortemente influenciada pela interpretação gramsciana do mesmo, é precisamente uma luta sem quartel contra a lenda negra levantada pela Igreja e pela tradição liberal e que o apresenta como o mestre do mal e o inventor de quanta infâmia tenha ocorrido na vida política das nações. Para evitar futuros erros, recomendo ao meu crítico a leitura de um pequeno texto meu intitulado "Maquiavelo y el infierno de los filósofos" (Cf. Tomás Varnagy, compilador: Fortuna y Virtud en la República Democrática, Buenos Aires, CLACSO, 2000) .

O meu crítico acusa-me de sectarismo porque não encontro razão alguma para citar uma frase de Bill Gates: "no mundo virtual todos somos criaturas iguais". Contrariamente ao que García opina, a causa pela qual recuso a conveniência de citar o rei da informática não é, como ele diz, porque seja neoliberal, que na realidade não sei se o é ou não, ou porque seja um mega empresário monopolista, mas sim porque diz uma parvoíce. E é uma flagrante contradição que uma obra como Imperio, que declara abertamente a sua adesão ao comunismo, cite um lugar comum da ideologia neoliberal para reforçar as suas argumentações. Referi-me a esta fábula in extenso noutro lugar, de modo que não vou insistir aqui sobre ela. Basta assinalar que essa igualdade de base que Gates vê no mundo virtual e que Hardt e Negri ingenuamente aceitam, oculta alguns factos desagradáveis. Por exemplo, é uma realidade que na bucólica Suiça do segredo bancário, existem 409 computadores pessoais por cada 1.000 habitantes e nos Estados Unidos 362 por mil. Ali o mundo virtual e real aproximam-se, ainda que não demasiado, e a sentença de Gates tem um alto grau de verosimilhança. Mas quando nos trasladamos ao convulso mundo da periferia (e perdoem-me por violar um dos axiomas de Hardt e Negri, que declararam a inutilidade da anacrónica diferenciação entre centro e periferia) onde sobrevivem quatro quintas partes da humanidade, o acesso à informação e ao mundo virtual torna-se um pouco mais problemático. Por exemplo, no Ghana há 1,2 computadores por cada mil pessoas. E na Índia, sede de uma pujante indústria de software, existem apenas 1,5 computadores por cada mil indianos. Um pouco mais para Oriente, três chineses de cada mil disputam encarniçadamente o seu acesso a um computador. No Bangladesh o número é tão insignificante que nem sequer pode registar-se. No pátio das traseiras do centro imperial há uma certa melhoria, embora as coisas estejam longe de serem o que se diz: no Chile há 45 computadores pessoais por cada mil habitantes, 34 na Argentina, 29 no México, 18 no Brasil, 6 no Peru, e menos de três na Guatemala. A citação de Gates é "inviável" não por vir de quem vem, mas porque não passa de um simples ideologema do neoliberalismo. Podemos compreender que o empresário a cite para impressionar um auditório de ingénuos, mas não que a utilizem dois críticos do sistema. (Cf. "Duas fábulas perversas: a aldeia global e a multidão nómada no império". Comunicação apresentada às Terceiras Jornadas de Teoria e Filosofia Política, Universidade Nacional Autónoma do México e Benemérita Universidade Autónoma de Puebla, México, Setembro de 2003) .

García não poupa elogios à obra de Hardt e Negri, autores segundo ele, de uma "releitura novíssima do marxismo". Quero crer, humildemente, que nem sempre o novíssimo seja boníssimo. Uma das heranças mais perniciosas da Ilustração foi, precisamente, a de pensar que o novo é sempre melhor. Uma releitura novíssima deve ser, portanto, melhor que uma leitura tradicional. Tal convicção reflecte o erro dos mentores do meu crítico, para quem o novíssimo império deve ser melhor que o arcaico imperialismo dos Estados, povos e nações. Trata-se de uma visão excessivamente ingénua, infantilmente evolucionista, e que não tem lugar no pensamento marxista. Por isso a critiquei.

Um dos logros desta "novíssima releitura" do marxismo pareceria ser a necessidade de lutar contra a dialéctica, apesar das reiteradas recomendações em contrário do próprio Marx e, depois dele, de todos os clássicos do marxismo. O abandono da dialéctica significa, lisa e claramente, aderir a uma teoria da história concebida como uma acumulação linear e sem contradições de acontecimentos. Uma tal concepção termina sacralizando tudo o que existe, entre outras coisas o capitalismo, a propriedade privada dos meios de produção e o imperialismo. Um dos maiores triunfos ideológicos da direita foi precisamente o haver imposto esta concepção que remata na eternização do capitalismo e no fim da história. É-me difícil conceber um argumento radicalmente crítico do presente à margem da dialéctica. Permito-me sugerir ao meu crítico, tão interessado nas minhas palavras, a leitura de "Marxismo e filosofia política" e "Filosofia política e crítica da sociedade burguesa: o legado teórico de Karl Marx" onde me dedico a examinar extensamente este problema (em Atilio A. Boron, compilador: Teoría y Filosofía Política. La Tradición Clásica y las Nuevas Fronteras y en La Filosofía Política Moderna. De Hobbes a Marx, ambos disponíveis em livrarias ou na Biblioteca Virtual de CLACSO, em http:// www.clacso.edu.ar/ ou http://www.clacso.org/ ).

SOBRE CLASSES E MULTIDÕES

Obnubilado pelo que Platão chamava "a ânsia de novidades" e pela obscuridade própria do labirinto em que se perdeu, o meu crítico arranca à direita e à esquerda temerárias afirmações que o distanciam irremediavelmente de toda a tradição marxista, situando-o num universo teórico ainda inexplorado e crivado de erros e inconsistências. Eis alguns exemplos:

a) Dizem-nos que "as classes fundamentais se redefiniram: o proletariado em direcção à multidão e a burguesia em direcção a um poder cada vez mais monárquico". Que significa isto? Que o proletariado já não é o que era antes? Claro que não. Dado que a dialéctica histórica é incessante e tudo muda, seria absurdo pensar em classes concebidas como entidades metafísicas ou como essências platónicas alojadas no Topos Urano. Mas, o proletariado "redefinido" em direcção da multidão? Que quer isso dizer? É indubitável que o proletariado de hoje é uma categoria muito mais ampla e heterogénea que a que existia no tempo de Marx e Engels, e a referência de García ao "Capítulo Sexto (inédito) " de Marx é correcta. Mas, convertido em multidão? Muito improvável. Tal afirmação requer, antes de tudo, que alguém explique a constituição sociológica da multidão. Nem García nem os seus mentores o fizeram satisfatoriamente. Não se substitui a análise rigorosa das categorias com vagas invocações de conceitos abstractos desprovidos de toda a conexão com o real. Além disso, qualquer um minimamente informado na tradição sociológica sabe que, por definição, o conceito de multidão alude a um agrupamento instável, efémero, de presença intermitente e constituído com dispensa das articulações estruturais dos seus componentes. São essas as características que apresenta hoje o vasto universo dos trabalhadores assalariados? Não me parece.

Relativamente à tese de que a burguesia se redefiniu como um poder monárquico, diria que, em primeiro lugar, tal processo não corresponde às determinações fundamentais da burguesia como classe e que remetem para a forma como se apropria dos meios de produção e do produto do trabalho social. Que o seu poder político se exerça "monarquicamente" – seja qual for a forma em que este se defina - está longe de ser uma novidade do nosso tempo. Já tinha sido assinalado por Marx e Engels na segunda metade do século XIX. O problema é ver o que significa hoje isto, no aqui e agora do capitalismo. E, mais além da metáfora, é pouco e nada o que sobre este tema podemos tirar a limpo do escrito de Hardt e Negri.

b) Uma afirmação enigmática, para ser muito benevolente, é a seguinte: "se dizemos que o império é um poder global, sem limites aparentes, também dizemos que não se pode lutar contra ele. A multidão, os muitos, seria minúscula comparada com o poder soberano" (sic). Mas, que significa isto? Que é isso de não se poder lutar contra o império? O que tem feito Cuba desde 1959? Que foi o que fizeram os vietnamitas com as armas na mão durante vinte anos? Que têm feito até à data a resistência palestiniana, os combatentes iraquianos que combatem a ocupação norte-americana, o povo e o governo venezuelano, que recuperou o controlo de uma riqueza básica como é o petróleo, os camponeses e trabalhadores bolivianos que derrubaram um pro-cônsul imperial que mal falava o castelhano, os indígenas equatorianos e tantos outros nas mais diversas latitudes do mundo? Não é preciso ser um leitor mal intencionado para concluir que semelhante "ocorrência" ( resisto, por respeito à filosofía, a outorgar-lhe o nível superior de "ideia") abona claramente o pensamento único cultivado com esmero pelos ideólogos do neo-liberalismo. Com efeito, essa imagem, oculta na obscuridade terminológica do livro de Hardt e Negri, mas evidente na interpretação de um dos seus mais entusiásticos admiradores, remata num posicionamento politicamente claudicante. Não há alternativas à primazia imperial, de modo que convém resignarmo-nos perante essa amarga realidade e tratar de superar esta desgraça o melhor possível. O império é assim representado como um Moloch omnipotente e invencível, como uma fortaleza inexpugnável que, para cúmulo dos paradoxos, teria sido criada pela própria multidão num alarde de masoquismo. Se a subestimação das nossas próprias forças é má, a sobre-estimação das do inimigo é bem pior. A primeira pode desembocar numa sóbria e realista avaliação das nossas possibilidades, enquanto que a segunda nos desarma ideológicamente e perpetúa a nossa subordinação diante dos poderosos.

c) Voltemos ao tema da multidão. No seu escrito, o meu crítico diz, por exemplo, que "por multidão se entendem todas e todos os potencialmente conflictuantes, a base é formada pelos pobres, o sujeito mais poderoso" (sic). A multidão, dizem-nos aínda, é por definição não representável. Passemos cuidadosamente em revista estas contribuições derivadas da "novíssima" releitura do marxismo promovida por Hardt e Negri. Para isso, vamos tomar um exemplo hipotético derivado da realidade da Colômbia, um país que o nosso crítico sem dúvida deve conhecer muito bem. Quem poderiam ser estes sujeitos potencialmente conflictivos que constituem a multidão? Bem. Comecemos pelos que na Colômbia são considerados sem dúvida como os mais conflitivos: os "paras", ou os "paramilitares," para o expressar na linguagem corrente. A estes, teríamos de juntar os "narcos," que como é bem sabido mantêm fraternais relaciones com os primeiros. Estamos em presença de uma temível combinação de actores altamente conflictivos, e ainda não acabamos. Poderíamos deixar de lado os sicários, que assassinam os militantes populares e de esquerda? De maneira nenhuma, se ainda por cima são pobres! Haveria ainda que agregar o lumpen-proletariado, ou seja, os segmentos em decomposição das classes populares e que são passíveis de actuar como massa de manobra de governos reaccionários, "paras" e "narcos" e em cujas fileiras se recrutam os sicários. Depois disto, teríamos de juntar à multidão os deslocados pela violência e pelas campanhas de erradicação do cultivo da coca promovida e executada pelas forças de ocupação norte-americanas em algumas regiões da Colômbia. Agreguem-se também, por exemplo, os pobres da cidade e do campo: camponeses, povoadores urbanos, ocupantes precários de terrenos nas cidades, trabalhadores por conta própria, operários precarizados, desocupados, operários tradicionais no sistema formal de relações de trabalho, empregados, e assim sucessivamente.

Perante tão heteróclita configuração de grupos, categorias e classes sociais, que utilidade pode ter um conceito tão extenso, epistemologicamente falando, que inclui qualquer formação social que seja "potencialmente conflictiva"? Além disso, de acordo com o que nos ensinaram Hegel e Marx, há alguma que não o seja? O nosso crítico, decerto entusiasmado pela sucessão de agravos que iam enredando o seu discurso, não reparou numa inteligente advertência formulada por Michael Hardt quando, numa reportagem efectuada já depois da publicação de Imperio, disse que "no nosso livro o conceito de multidão funciona mais como um conceito poético que factual" (Cf o meu Imperio & Imperialismo, p. 102). No hÁ dúvida que certos conceitos poéticos podem ser poderosos instrumentos de análise e de transformação social. Mas, por mais admiração que a obra de Hardt e Negri suscite no nosso crítico, nem o primeiro é Pablo Neruda nem o segundo é Bertolt Brecht. Em consequência, pese a sua beleza poética, o conceito de multidão é uma categoria teórica vazia, carente de substância sociológica e, portanto, de escassa ou nula utilidade prática na hora de mudar o mundo.

Um par de observações finais sobre o tema da multidão. Primeiro, relativa à sua "irrepresentabilidade". Não constitui surpresa alguma que uma categoria nominal tão ampla omni-inclusiva careça por completo da possibilidade de ser representada, além de se é bom ou mau que um grupo social possa ser representado ou não. Por outro lado, o que na tradição sociológica se entende por multidão -que não é o mesmo que entendem Hardt e Negri - é pela sua natureza um fenómeno transitório, intermitente, que irrompe bruscamente na cena pública e do mesmo modo desaparece em muitos casos sem deixar maiores rastos. Confundir esta categoria com o proletariado do século XXI, que por certo implica uma ampliação da categoria desenvolvida pelo marxismo clássico, constitui um gravíssimo erro de interpretação. Em suma: o problema da representação das classes subalternas não é uma questão menor. A crise das formas tradicionais de representação: o partido e o sindicato não pode ser substituída pela exaltação romântica da democracia directa e do basismo nas sociedades de massas.

Segundo, o inacreditável tema da vocação masoquista da multidão, à qual os nossos autores, e o meu critico, atribuem nada menos que a criação do império. Mutatis mutandis, isto equivaleria a defender o disparate que o proletariado industrial, nostálgico da abjeção e opressão característicos da vida camponesa no modo de produção feudal se esmerou em criar uma classe, os capitalistas, para que o explorasse e o mantivesse em condições de vida infra-humanas. Creio que o argumento é tão absurdo que não merece mais comentários além destas breves linhas.

ESTADO, DEMOCRACIA, SOBERANIA

a) Sobre a questão da soberania, os argumentos do meu critico são igualmente assombrosos, razão pela qual me vejo obrigado a citá-los in extenso para facilitar a sua adequada compreensão e evitar toda a suspeita sobre qualquer possível tergiversação. Acusa-me de clamar, "qual Kautsky, por reconhecer aos Estados Unidos o poder super-mundial. Coisa que de certa forma reconhece Negri: o governo republicano dos Estados Unidos ocupa o topo do poder piramidal do império. Mas não é o único poder, há outra série de instituições, BM, FMI, OMC e as suas irmãs empresas transnacionais, alternas ao poder capitalista conjuntamente com outros Estados e ONGs adjuntos ao império. Tudo isso mina a soberania estatal. Essa é hoje uma verdade indesmentível".

Primeiro, não creio que a primazia dos Estados Unidos no mundo unipolar da actualidade seja produto dos apelos de Kautsky, e muito menos do meu improvável clamor. O aprofundamento das injustiças e iniquidades do modo de produção capitalista e a implosão da União Soviética -que deixou o campo livre aos capitalistas para cancelar as concessões feitas durante a sua etapa keynesiana e retornar às suas tradicionais práticas predatórias- é o que explica a intensificação dos mecanismos de exploração imperialista e o ascenso dos Estados Unidos a essa condição que, com muita indulgência Samuel P. Huntington chamaba "superpotência solitária". Este é um facto objectivo, comprovável por simples observação directa e que não se produz em consequência de pedidos, lamentos ou clamores de nenhum tipo.

Segundo, a ideia de que a Casa Blanca ocupa o topo do poder imperial e que o "compartilha" com outras instituições como o FMI, o BM, a OMC, com as grandes empresas transnacionais e outros Estados e ONGs apenas é parcialmente correcta, e isto na condição de que se especifique a natureza dos "sócios" imperiais. Supor que o FMI e o resto dos mal chamados "organismos financeiros internacionais" (mal chamados porque, como o reconhecem os grandes intelectuais do império, tais instituições são simples apêndices dos governos do G-7, e principalmente do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, e o seu "internacionalismo" refere-se exclusivamente ao seu papel de policia mundial a cargo da custódia dos interesses do capital) são um tanto distintos do punhado de governos que constituem o comité que administra os negócios conjuntos da classe burguesa a nível mundial, demonstra um profundo desconhecimento dos próprios rudimentos da teoria marxista do Estado. Toda esta proliferação de governos, empresas e instituições ditas "internacionais" constituem o emaranhado através do qual se processa a dominação da classe dominante global assente nos países do capitalismo metropolitano e que longe de minar a soberania estatal, não têm feito outra coisa nos últimos vinte anos senão fortalece-la. A literatura e a evidência empírica é tão esmagadora,que é difícil compreender, a não ser por uma preocupante ofuscação ideológica, como se pode ignorar um facto tão rotundo como esse. A soberania estatal que foi minada, e esta sim, é uma verdade de La Palisse indesmentível, foi a dos países da periferia. Os Estados Unidos, erradicando culturas de coca com as suas tropas na Colômbia, demonstram que a sua soberania se projecta com toda a força de uma hegemonia imperialista, ao passo que a Colômbia vê a sua seriamente reduzida. Quando o embaixador da Casa Branca na Bolívia exige do governo a assinatura de um contrato leonino para o fornecimento de gás, e o governo cede, desencadeando a ira popular, o que se demonstra é que a Bolívia tem cada vez menos soberania, não que os Estados Unidos a tenham perdido. E que se a primeira recuperou parte do que havia perdido, foi graças à impressionante mobilização popular que pôs termo ao governo profundamente ilegítimo de Sánchez de Losada. Quando os Estados Unidos ignoram a sentença do Tribunal Internacional de Justiça, que lhe exige que pague à Nicarágua uma elevada quantia como reparação pelos danos causados durante a guerra contra os sandinistas e Washington nem sequer se digna responder ao comunicado oficial do Tribunal, não é a soberania dos Estados Unidos que foi minada, mas sim a da Nicarágua. É assombroso como um latino-americano possa desconhecer realidades tão brutais (e tão próximas) como estas.

Uma última reflexão sobre este ponto. Note-se a flagrante contradição (na realidade, uma de tantas que, razões de espaço, me impediram de enumerar detalhadamente) entre a rotunda afirmação da perda de soberania estatal acima referida e a que o meu crítico expõe poucas linhas mais abaixo, ao afirmar que "a soberania, segundo Negri, (é) monopólio da comunicação, da moeda e da violência. O que é o mesmo que dizer: o éter, o dólar e a bomba atómica. Por tal motivo, os Estados Unidos ocupam lugar preferencial". Note-se a lamentável debilidade argumentativa: os Estados Unidos ocupam "um lugar preferencial" no sistema internacional, apesar de a sua soberania se estar, supostamente, debilitando. A estruturação do domínio imperialista decide-se, com cortesia, estabelecendo preferências e lugares de privilégio. O éter, o dólar e a bomba atómica são como as emproadas indumentárias e as antigas perucas usadas pelos cortesãos de Luis XIV enquanto dançavam serenamente ao compasso do minuete. Todo o horror, sangue e lodo resultantes da dominação capitalista e da sua projecção internacional, são convenientemente dulcificados na versão do diligente discípulo de Hardt e Negri. O monopólio da comunicação, a moeda e a violência não passam duma minúcia anedótica, que em nada debilitam o argumento da declinante soberania estatal. E o imperialismo é uma simples questão de "preferências"!

b) Sobre o Estado. O meu crítico é presa de santa indignação porque não compartilho a tese de Hardt e Negri de que "o Estado foi derrotado e as empresas hoje governam a terra". Tal como coloco em evidência em Império & Imperialismo , a ideia que as empresas transnacionais governam o mundo e causaram a derrota e desordenada fuga dos Estados nacionais, é de uma superficialidade inadmissível em qualquer análise séria da realidade económica e política contemporânea. A expansão global destes modernos leviatãs é simplesmente incompreensível à margem das activas políticas estatais que, a partir dos capitalismos metropolitanos, criaram as condições económicas, políticas e ideológicas que a tornaram possível. Mediante que mecanismos? Graças às políticas impulsionadas por alguns estados nacionais, comandados pelos Estados Unidos, que impuseram contra ventos e marés as regras do neoliberalismo global: nos países metropolitanos mais ou menos pacificamente, e na maior parte do mundo apelando a ditaduras ou corrompendo frágeis democracias, que capitularam diante dos senhores do dinheiro. Em ambos os casos, no entanto, impondo políticas concretas, geradas pelos estados (e não pelos directórios das empresas "transnacionais") e promovidas na periferia graças ao accionar dos agentes e cães de guarda do imperialismo: o FMI, o BM, a OCM, o BID e outros que tais, encarregados de impor, graças às "condicionantes" com que asfixiam os países endividados, as políticas de abertura comercial, desregulação financeira, liberalização económica, precarização laboral, privatizações e todo o decálogo do Consenso de Washington, utilizando para isso o poder de chantagem que os Estados Unidos dispõem, sobretudo na América Latina e no Caribe. Nos países metropolitanos, esta actividade disciplinadora foi realizada de modo igualmente efectivo, mas sem as estridências conhecidas no Sul. Ali a tarefa esteve a cargo, principalmente, dos banqueiros centrais e dos ministros das Finanças, com a vergonhosa cumplicidade das diversas fracções (conservadores, social-democratas, democristãs, etc) do partido do capital. Apesar do que pense o nosso crítico, a mediação estatal continua a ser crucial e imprescindível à dominação burguesa. No caso de os meus argumentos não serem persuasivos, sugiro a leitura de um imprescindível texto de Ellen Meiksins Wood (Cf. Empire of Capital, Londres, Verso, 2003).

c) Àcerca da democracia. O meu crítico encoleriza-se porque sustento que não há democracia possível à margem do Estado. Talvez não saiba que, segundo Marx, a democracia também é una ditadura pela qual uma minoria se organiza para explorar "pacífica e democraticamente", com métodos constitucionais, a maioria. Com o advento da sociedade comunista, ou seja, com o desaparecimento da sociedade de classes, o fim da exploração do homem pelo homem e a total expansão da democracia, o Estado simplesmente se extingue. Mas enquanto não se chega a essa condição, toda a democracia, mesmo a socialista, assenta sobre as estruturas do Estado. Uma vez que o capitalismo tenha sido superado historicamente, produzindo-se a famosa aufhebung (supressão) de Marx, será possível pensar num novo tipo de organização política, aquilo que a tradição marxista denomina "o auto-governo dos produtores" e que fará que, seguindo os ensinamentos de Engels, o Estado vá parar ao museu das antiguidades, junto com a roca de fiar e o machado de bronze. Nas fases de transição, mesmo o mais democrático governo das maiorias populares não deixará nunca de ser uma ditadura, no sentido mais profundo do termo: imposição de uma ordem legal, económica e política que instaura um novo regime social de igualdade e liberdade mas, que para o conseguir, precisa de consolidar transitoriamente uma nova estrutura de dominação capaz de submeter as classes adversárias que não vão renunciar aos seus seculares privilégios comovidas pela criatividade da democracia. Se o nosso crítico tivesse dúvidas acerca do carácter profundamente ditatorial dos capitalismos democráticos, perguntava-se em que país o capitalismo, um regime económico que consagra a espoliação do produtor directo, se impôs como resultado de uma votação com sufrágio universal; ou que eleição democrática decidiu que nas nossas sociedades os habitantes tenham sido desarmados e as armas monopolizadas pelo Estado. Ou algo mais simples: em que país "democrático" da América Latina o povo foi chamado a votar num referendo sobre que fazer com a dívida externa? Sobre este tema em particular, permito-me recomendar ao meu crítico a leitura de Tras el Búho de Minerva. Mercado contra Democracia en el Capitalismo de Fin de Siglo (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002).

Pensar num projecto democratizador prescindindo do Estado é cair num romanticismo inaceitável para quem quer que tenha já passado o período mais impulsivo da adolescência. Ou será que acaso o nosso crítico supõe que se pode democratizar o mercado? Estas teorias foram postas em voga pelos norte-americanos após a Segunda Guerra Mundial e bem depressa caíram em completo descrédito. Pensa acaso, com Hardt e Negri, que se pode democratizar a sociedade civil, quinta-essência da sociedade de classes? Agrade-lhe ou não, o único âmbito efectivo de democratização é o Estado, com todas as suas limitações e, sobretudo, com todas as limitações que o modo de produção capitalista impõe a qualquer projecto democratizador. Crer, como García, que "a democracia é o governo da multidão e que esta é procedimento absoluto" implica um profundo desconhecimento da teoria e da história políticas. Além disso, "puro procedimento" é a fórmula preferida pela ciência política norte-americana, herdeira da tradição elitista de Joseph Schumpeter que concebia a democracia como um puro procedimento. Esta era, segundo o economista austríaco numa afirmação que seguramente soará bem aos ouvidos do meu crítico, um simples método para decidir quem deverá governar, com total independência do conteúdo da decisão. Puro procedimento, por exemplo, que permite decidir "democraticamente" enviar os judeus a um campo de extermínio, as bruxas à fogueira e os trabalhadores ao genocídio. Não só se trata de uma tolice reaccionária, como escamoteia intencionalmente, e isto é algo que me é difícil de compreender em Hardt e Negri, o facto de que a democracia, como qualquer regime político, é incompreensível à margem do modo de produção sobre o qual assenta. Por isso perturba-me profundamente o silêncio de Hardt e Negri sobre a Revolução e a necessidade de construir uma sociedade pós-capitalista. Parafraseando Hegel, quando dizia que o Estado era o hieróglifo da razão, a democracia é o hieróglifo do modo de produção. Quem quiser falar de democracia absoluta da multidão não tem direito de o fazer sem primeiro explicar como se transcende o capitalismo e se constrói a sociedade comunista.

Final sobre as guerras do império: "justas", "humanitárias", ou de rapina?

Quero terminar esta já excessivamente longa resposta mencionando apenas um tema que o meu crítico captou com total justeza quando diz que "Boron não se aproxima nem de longe do conceito de guerra justa. Parece-lhe que o relevante é que os Estados Unidos são o poder hegemónico do mundo e que as suas intervenções não se destinam a edificar um novo direito internacional. De acordo com Imperio, as guerras justas (Iraque 1990, Kosovo 1999) fazem-se para ampliar o consenso da justiça humanitária. Verbigracia, a guerra contra o Iraque em 2003: vamos libertá-los, anunciava Bush filho na sua guerra contra o terrorismo" (sic). Efectivamente, García tem razão. Nem ébrio nem a dormir poderia eu admitir que (i) as guerras imperialistas são "guerras justas"; (ii) que tais aventuras de saque e pilhagem foram lançadas para edificar um novo direito internacional ou, como dizem Hardt e Negri, respondendo a um clamor internacional para fortalecer a justiça humanitária; (iii), que os Estados Unidos actuam por outra coisa que não seja a sua ânsia de se perpetuar como o hegemonismo mundial, como o chefe indiscutido da coligação imperialista, e que isto é de longe o mais relevante; (iv) e muito menos poderia crer que os Estados Unidos vão alguma vez libertar alguém, ou que os massacres perpetrados nas guerras do Golfo, no Kosovo, na Bósnia e agora no Iraque foram motivados pelo afã de construir uma ordem internacional mais justa, livre e democrática. Discordo profundamente, tanto com Negri quando declara que "a guerra do Iraque é um golpe de Estado dos Estados Unidos contra o Império", o que me parece um erro monumental, como com os falcões norte-americanos que dizem que as suas aventuras de rapina imperialista são "guerras humanitárias", conceito este que constitui um oxímoro insanável.

Devido a que as teses da "guerra justa" reapareceram em força ultimamente, convém aclarar alguns pontos para evitar novas confusões. Tal como adverte Ellen Meiksins Wood no livro acima mencionado, a tradição da "guerra justa" caracteriza-se pela sua extraordinária versatilidade, que lhe permitiu ser utilizada pelas classes dominantes como um instrumento legitimador de toda a casta de aventuras imperialistas. Não obstante isso, a doutrina da "guerra justa" tem uma série de premissas básicas incompatíveis com a ligeira caracterização que o nosso crítico faz das atrocidades sistemáticas levadas a cabo pelos representantes do "mundo livre e da civilização ocidental" nas regiões periféricas. Elas são as seguintes: (i) deve haver uma causa justa; (ii) a guerra deve ser declarada por uma autoridade legítima; (iii) com um propósito moral e politicamente correcto; (iv) uma vez que todos os outros meios não violentos de resolução do conflito tenham sido esgotados; (v) a guerra deve ter altas probabilidades de alcançar os fins desejados; e (vi) os meios utilizados devem ser proporcionais aos fins a atingir.

Como bem assinala esta autora, cada aventura belicista dos Estados Unidos e seus aliados foi precedida por uma cuidadosa manipulação das primeiras quatro condições da "guerra justa": temos uma causa justa, a guerra foi declarada com a aprovação do Congresso, queremos o bem – diga-se levar a democracia, a liberdade e os benefícios do livre mercado a povos atrasados e submetidos a cruéis tiranias e esgotamos todas as instâncias diplomáticas antes de fazer falar as armas. Este é o discurso corrente dos Bushes, Aznares e Blairs de todo o mundo. Qualquer análise rigorosa demonstraria como estas quatro condições são violadas - subtilmente violadas, é certo - mas ainda assim poderíamos dizer que se salvam as aparências. No entanto, o que não se salva, e desqualifica frontalmente o argumento dos que pretendem justificar estas tropelias em nome da tradição da "guerra justa", é a violação que se verifica das últimas duas premissas. Por quê? Primeiro, porque não existe "solução militar" capaz de erradicar o terrorismo da face da terra. A assim chamada "guerra contra o terrorismo" é um sem sentido. Nada garante melhor a sobrevivência incessante reprodução do terrorismo que a resposta militar. E os factos que acabam de acontecer em Madrid a 11 de Março são mais uma prova da criminosa futilidade de tentar resolver os desafios que o terrorismo coloca aplicando outro terrorismo, desta vez oficial e legal, e organizado pelos Estados. Como bem recorda Gore Vidal, a guerra é o nome que se dá ao terrorismo dos ricos. Segundo, porque no caso das guerras imperiais do nosso tempo, a desproporção entre os meios aplicados e os fins que se pretende alcançar é tão descomunal que deita por terra tal doutrina. Não se pode, moralmente falando, arrasar países inteiros - como o Afeganistão, o Iraque, a Palestina, por exemplo - semeando morte e destruição entre milhões de inocentes com o objectivo de desarticular uma rede de fundamentalistas islâmicos que tem os seus membros espalhados por mais de 60 países.

Por isso, o que a Casa Branca planeia, com a criminosa cumplicidade dos governos de Espanha e do Reino Unido, pouco ou nada tem a ver mesmo com a ambígua tradição de a "guerra justa". É, pelo contrário, algo muito pior: como disse Richard Perle, um dos mais agressivos falcões de Washington, trata-se de levar até às últimas consequências uma guerra total e infinita. Uma guerra sem fim, sem propósitos claros e sem um período sequer minimamente fixado. Por isso recuso a utilização da categoria de "guerra justa", que tanto entusiasma o meu crítico. Por isso, essa categoria não pode ocupar lugar algum no seio de uma teoria marxista do imperialismo.

[*] Do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais . Tradução de Carlos Coutinho.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

15/Abr/04