O neoliberalismo e a degradação ambiental
por Samuel Pinheiro Guimarães [*]
Não há como encarar a questão ambiental enquanto imperar no centro e nas
elites periféricas do sistema o credo neoliberal. O neoliberalismo, roupagem moderna da
teoria clássica, acredita que o livre jogo das forças de mercado, em situação de livre
competição, será capaz de promover a mais eficiente alocação de recursos, a mais
elevada produção, a mais justa distribuição da renda, o mais rápido progresso
tecnológico. De quebra, a economia de mercado (livre) eliminaria os problemas sociais e
contribuiria para a vigência da democracia.
A democracia de mercado, nesta visão, seria o mais perfeito regime
econômico, político e social e a ela deveriam aspirar todos os povos para construir
sociedades felizes, em um mundo sem guerras.
Para tal, advogam os ideólogos do neoliberalismo, é necessário reduzir as funções do
Estado ao mínimo, mesmo naquelas áreas tradicionais da educação, da saúde e da
segurança pública. Tudo deve ser privatizado, terceirizado, desregulamentado, concedido,
desfiscalizado, abertas as fronteiras, para que a entidade suprema, a empresa, possa agir
totalmente livre, para realizar os sonhos de seus operários, de consumidores, de
fornecedores, de clientes, de acionistas e de cidadãos, em um mundo ideal, sem conflitos,
sem monopólios, sem cartéis, sem corrupção, sem especulação, sem fraude.
Os ambientalistas, despertados inicialmente pela chamada explosão demográfica, pelo
suposto esgotamento dos recursos naturais e pela impossibilidade de reproduzir os padrões
de consumo/desperdício dos países do centro na periferia (os limites ao crescimento do
Clube de Roma), passaram gradualmente a se preocupar com os problemas
ambientais globais, que atingiriam eventualmente o bem-estar das sociedades prósperas e
satisfeitas.
A preocupação com a poluição mais óbvia do ar e das águas - que levou a programas
bem sucedidos de recuperação de rios e lagos, como no caso do Tâmisa e da qualidade
urbana do ar, como o charmoso fog de Londres - foi sucedida pela preocupação com os
fenômenos ambientais transfronteiriços e menos visíveis, como o buraco na camada de
ozônio, a mudança climática provocada pela emissão de gases que causam o efeito
estufa, a preservação da biodiversidade invisível em recifes de coral e em florestas
longínquas, a poluição silenciosa dos lençóis freáticos, a escassez de água,
fenômenos que não podiam ser de forma alguma enfrentados apenas nacionalmente.
Neste esforço, os movimentos ambientalistas passaram a se preocupar com as noções de
danos irreversíveis ao meio ambiente, de esgotamento de recursos finitos, e com a
necessidade de enfrentar a questão da tecnologia e do seu livre uso pelas empresas,
rainhas da pós-modernidade e dos governos neoliberais, e dos padrões de
consumo/desperdício que se encontram fundados no conceito de liberdade de escolha do
consumidor.
As questões da cumulatividade do dano ambiental, da concentração esmagadora das
emissões tóxicas nos últimos dois séculos nos países altamente desenvolvidos, núcleo
do neoliberalismo e do individualismo darwinista agressivo e fundamentalista, tornavam
impossível transferir o problema, em sua totalidade, para a periferia.
Os principais poluidores, que são países como os Estados Unidos, com 30% das emissões
de gás carbônico, com padrões de consumo, produção e transporte fundamentados em
combustíveis fósseis, procuravam de toda forma transferir o sentimento de culpa, a
responsabilidade política e os custos financeiros para os países periféricos.
Primeiro, recusavam-se a reconhecer ou procuravam desmoralizar a evidência científica de
sua responsabilidade principal pela degradação ambiental; segundo, passaram a defender
programas voluntários de controle ambiental e continuam a rejeitar compromissos
internacionais específicos com datas, metas e recursos; terceiro, procuraram transferir a
culpa para a periferia, como na atribuição ao desmatamento na Amazônia e ao carvão da
China da responsabilidade principal pelo Efeito Estufa (a teoria dos sumidouros de gás
carbônico); e quarto, passaram a procurar manter seus padrões de consumo como símbolos
inalienáveis de seu direito de poluir e desperdiçar, culminando na montagem de esquemas
para adquirir o direito de poluir.
As elites dos países periféricos ficaram entre a cruz e a caldeirinha: de um lado, a
pressão enorme para que adotassem políticas do mais puro neoliberalismo e, de outro, a
pressão para que reconhecessem sua responsabilidade pelos danos ao meio ambiente. Saíram
pela tangente, adotando a retórica ineficaz da defesa ambiental, enquanto,
simultaneamente, praticaram e praticam políticas neoliberais de desregulamentação.
Assim se explicam as manifestações, no caso brasileiro, de grande preocupação com a
Amazônia, enquanto se cortavam as verbas para a fiscalização e se permitia total
liberdade de ação das empresas madeireiras asiáticas. Assim se deu a omissão diante da
poluição dos lençóis freáticos, o estímulo à monocultura exportadora e ao uso de
pesticidas e agrotóxicos em geral, e a tolerância com os transgênicos.
A culpa, assim, é dos países periféricos, que, ao invés de exigirem dos principais
poluidores mais recursos financeiros e maior empenho e o cumprimento das metas de
redução de emissões, ainda têm que aceitar a carapuça de corruptos ineficazes
poluidores...
Não há nenhuma possibilidade de enfrentar em tempo hábil os desafios ambientais e fazer
reverter o processo de degradação enquanto prevalecer no centro do sistema e, portanto,
nas elites periféricas a crença inabalável nas políticas neoliberais, mesmo diante de
crises com a Argentina: laissez-passer, laissez-aller, laissez-faire.
Se o mundo não é o melhor dos mundos, será, no futuro, o melhor possível para os mais
aptos (e ricos).
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[*] Embaixador, Secretário-geral do Ministério brasileiro das
Relações Exteriores (Itamaraty) .
Publicado originalmente publicado pela Agência Carta Maior e transcrito em
http://www.correiocidadania.com.br/
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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