Johannesburg, ou "Rio + 10"
2ª Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável
por Bernard Lestienne
[*]
Introdução
A 2ª cúpula mundial sobre o desenvolvimento sustentável foi
convocada em agosto de 2002 para a implementação das propostas da
"Agenda 21". A concretização da 1ª cúpula
"Rio 92" era tão restrita que o objetivo
principal da 2ª cúpula não foi elaborar novas propostas mas,
antes de tudo, pôr em prática o que tinha sido definido 10 anos
antes. Parecia que, em matéria de desenvolvimento sustentável,
nada significativo tivesse sido alcançado na década de 90.
"Rio 92" tinha sido um relativo sucesso. A "Agenda 21"
propunha 2.500 medidas, elaborando um quadro geral para responder ao conceito,
então novo, do Desenvolvimento Sustentável. Cada país
devia elaborar a sua própria "Agenda 21", adaptada à
sua realidade. Na dinâmica da caída do muro de Berlin, o tema da
sustentabilidade surgia como nova prioridade para o futuro da humanidade.
Além da "Agenda 21", duas Convenções sobre o
clima e a biodiversidade propunham metas mais concretas. As ONGs e os
movimentos sociais foram convidados a participar na elaboração
dos objetivos; fizeram muitas propostas e publicaram a bela 'Carta da Terra'.
No entanto, o caminho do Rio
até Johannesburg não foi bem aquele esperado. Houve altos e
baixos, tanto do lado dos governos como da parte da sociedade civil. Na
"Rio + 5", em 1997, em Kyoto (Japão), a
avaliação da aplicação das propostas do Rio deixou
claro que a implementação da Agenda 21 era bastante deficiente na
maioria dos países. O número de ONGs ambientais tinha aumentado
sensivelmente, mas não conseguiam se articular, nem entre si, nem entre
as do Norte e as do Sul, nem entre as ambientais e as sociais ou dos Direitos
Humanos.
Por que tão poucos avanços? Na década de 90, a onda do
livre mercado avançou mais rapidamente que as propostas do
desenvolvimento sustentável. Os governos dos países em
desenvolvimento ficaram mais preocupados em aplicar o "consenso de
Washington" e os programas de ajuste estrutural do FMI do que em
implementar as recomendações da Agenda 21. Foi assim que o Brasil
publicou a sua própria "Agenda 21" apenas em julho de 2002,
dois meses antes de Johannesburg! A Rodada Uruguai em 1994 e a
criação da OMC em 1995 deram novo impulso à
liberalização multilateral do comércio. As
políticas neoliberais não resolveram os problemas da
miséria e da marginalização de parte crescente da
população mundial. Ampliou-se o conflito entre a lógica
neoliberal de maior produção e consumo, sem freio e com enorme
desperdício, e a visão dos ambientalistas, alarmados diante dos
riscos e ameaças crescentes de destruição
irreversível do Planeta. O poder das multinacionais na
definição das políticas econômicas e financeiras foi
substituindo o dos Estados, tornando-os meros vassalos destas. A
mobilização da sociedade civil contra a
mercantilização geral, contra o empobrecimento e
'miserabilização' de povos inteiros e contra a
destruição ambiental marcam uma nova etapa no confronto
antagônico entre o modelo produtivista-consumista prevalente e a proposta
do desenvolvimento sustentável.
Nesse contexto de
"sociedade-mercado", por rico que seja, o conceito de Desenvolvimento
Sustentável ficou vago e não foi aprofundado. Dois paradigmas se
chocaram: o Rio-Kyoto, sublinhando o multilateralismo, a sustentabilidade e a
participação ativa da sociedade civil, e o outro do FMI-OMC,
insistindo nas forças de mercado, mantendo a sociedade civil à
distância dos processos de decisão. Não houve
elaboração de metas concretas e precisas, com prazos e meios
definidos. Foi assim que, em Johannesburg, mais numerosas e melhor articuladas
do que dez anos antes, as ONGs não tiveram a mesma influência
política do que no Rio.
Que estava em jogo?
Oficialmente, o tema da
cúpula de Johannesburg era o do Desenvolvimento Sustentável. No
"relatório Bruntland" à ONU em 1887, o conceito
é definido como "um desenvolvimento que responda às
necessidades do presente sem comprometer a capacidade das
gerações futuras de responder às suas". Fundamenta-se
na constatação de que "não se pode continuar
assim". O conceito tenta articular o avanço econômico, a
proteção ambiental e o progresso social. Ou, dito de maneira mais
simples, visa juntar os 3 "P": Povo, Planeta e Prosperidade. Mas,
além das definições bonitas, o conceito serve a muitas
interpretações divergentes. Paises pobres insistem na luta contra
a pobreza (povo); paises ricos defendem a produção e o consumo
(prosperidade); outros ainda focalizam a proteção da
criação (planeta).
A cúpula não
devia enfrentar apenas o problema da pobreza ou do livre comércio como o
queriam uns e outros paises, mas também os desafios da
preservação ambiental. Inundações enormes na China,
no Bangladesh, na América central e na Europa; securas e fomes no Sul da
África, esses catástrofes naturais, resultados das
mudanças climáticas, são a expressão mais direta
das graves ameaças ambientais já existentes. A 'descoberta' em
cima da Ásia duma imensa nuvem escura de 30 milhões de km
2
de superfície e 3 km de espessura e os buracos crescentes na camada de
ozônio ilustram, eles também, a urgência de medidas
paliativas e preventivas. Johannesburg devia teoricamente integrar as
três dimensões da sustentabilidade.
Várias cúpulas simultâneas
Os números traduzem
parcialmente a importância do maior encontro mundial da ONU. Falou-se de
64.000 mil pessoas. Incluem-se os 25.000 delegados de ONGs, grupos, movimentos
vindos dos quatro cantos da terra, entre os quais um bom número de
ativistas da África do Sul; os 5.000 delegados oficiais de 196 paises
presentes; os 2.500 jornalistas, e as aproximadamente 30.000 pessoas da
infraestrutura trabalhando para o bom desenvolvimento da cúpula que,
aliás, foi muito boa: transporte, segurança, trânsito,
recepção, reprodução e distribuição
de materiais, etc. Os objetivos e as funções de tantos
participantes eram muito diversos e, de fato, ocorriam vários eventos
simultâneos.
Em Sandton, no norte da cidade,
nas muitas salas do elegantíssimo centro de convenções,
tinha lugar a cúpula oficial para, antes de tudo, negociar o "plano
de ação", documento principal que devia ser elaborado no
encontro. De fato, aconteciam lá pelo menos dois encontros: o oficial
para todas as delegações oficiais, e um outro, atrás das
portas, as negociações entre os "grandes": EUA, UE e
outros paises desenvolvidos conforme os temas, preparando os acordos que seriam
levados à sala de negociação oficial.
No sul da cidade (a 40 km de
Sandton), no parque de exposições de Nasrec, acontecia o encontro
das ONGs, às vezes apresentado como 'contra-cúpula', lugar de
frêmito intenso, com a participação ativa de milhares de
ONGs, grupos, associações, movimentos, cada um apresentando suas
atividades nos stands, organizando fóruns, seminários, oficinas,
debates, etc. Os objetivos de tantos grupos eram diferenciados. Alguns queriam
antes de tudo confrontar suas experiências às de outros
grupos/Ongs com práticas semelhantes; outros queriam influir no
desenvolvimento das negociações em Sandton.
Perto de Sandton, Ubuntu
Village estava o lugar de exposições dos países mais ricos
e das empresas multinacionais. Algumas delas patrocinavam a
organização deste imenso espaço. País ou
multinacional, cada um rivalizava na propaganda para mostrar tudo o que
já estavam fazendo para promover a sustentabilidade.
Muitos encontros, debates, oficinas, atividades culturais e
exposições sobre temas específicos como o da água,
aconteceram também em outros lugares de Joburg (diminutivo utilizado
pelos habitantes da cidade). A amplidão do evento mundial influenciou
boa parte da animação da cidade durante duas semanas.
Negociar o quê?
"Rio + 10" visava primeiro promover a implementação das
propostas da Agenda 21. Para isso, ao longo de 4 encontros
preparatórios, a ONU preparou um longo "plano de
ação" que devia ser o 'prato principal das
negociações'. O objetivo era chegar a propostas precisas e
concretas, com prazos e meios fixados. No final do 4° encontro
preparatório, em Bali (Indonésia), em maio de 2002, um
esboço do longo documento foi publicado: 77 páginas bem cheias
(na versão inglesa), com 152 parágrafos. 70% do documento foi
aprovado em Bali. As partes 'entre colchetes' para ser negociadas
durante a cúpula diziam respeito ao comércio, às
finanças e à globalização, que seriam de fato os
enfoques mais conflituosos nas negociações. Como sabemos, as
pessoas e os paises podem entender-se sobre tudo, mas quando se trata de
dinheiro, aí começam os conflitos. Podemos mencionar já
aqui os 14 pontos que foram objeto de maior tensão entre os EUA e a UE:
1) princípios de Rio; 2) boa governança; 3) direitos humanos; 4)
saneamento; 5) fundo de solidariedade; 6) energia; 7) produção e
consumo; 8) comércio e finanças; 9) recursos naturais
(biodiversidade); 10) mudanças de clima; 11) bens públicos
comuns; 12) dimensões sociais; 13) parceria; 14)
globalização. Voltaremos sobre esses pontos, quando considerarmos
os resultados.
No mês de maio, respondendo de certa maneira à
preocupação de muitas ONGs que consideravam o esboço de
plano de ação preparado em Bali muito pobre e esvaziando de
sentido a própria cúpula de Joburg, Kofi Annan, secretário
geral da ONU, publicou uma carta pedindo que 5 pontos fossem a prioridade das
negociações durante a cúpula. Este pedido foi, de fato,
aceito. A carta chamada às vezes de WEHAB, a partir da primeira
letra das 5 prioridades em inglês (água, energia, saúde,
agricultura, biodiversidade) ia se tornar uma referência concreta.
Os principais negociadores
Os chefes das delegações oficiais eram os principais
articuladores das negociações. Cada país tinha um
número diferente de negociadores. Os mais ricos podiam chegar com mais
de 300 negociadores (caso dos EUA), cada um especializado sobre um ou outro
ponto em discussão. Muitos países não tinham os recursos
para tantos gastos. A delegação oficial brasileira, com 51
membros inscritos, tinha certo peso. Tanto pelo seu tamanho, pela
superfície da sua floresta amazônica, pelos seus numerosos
recursos hidrológicos e pela sua riquíssima biodiversidade como
pelas suas propostas avançadas (a maioria das vezes comuns com as da
UE,da África do Sul, entre outros paises) e pelo fato de ter sido a
país da "Rio 92", o Brasil teve presença destacada nas
questões ambientais, mesmo se no final "é o dinheiro que
manda", e o país está passando mal neste campo.
As alianças entre paises
ou grupos de paises variavam conforme os pontos discutidos. Os EUA, os maiores
opositores a decisões concretas com metas, prazos e meios marcados,
foram muitas vezes apoiados pelo Japão e a Austrália. A
União Européia, aliada com os EUA nas questões comerciais,
de finanças e de globalização, estava mais próxima
do G77 nos temas da luta contra a pobreza e ambientais. Os paises em
desenvolvimento, agrupados no G77 (de fato são 132 países),
presidido no segundo semestre de 2002 pela Venezuela, estiveram unidos sobre a
maioria dos temas, salvo a energia. A China, mesmo que muitas vezes
próxima do G77, não queria ser considerada como integrando esse
grupo; daí o nome utilizado: G77/China.
O lobby
O lobby é uma
dimensão essencial em cada processo de grandes
negociações. Empresas multinacionais gastam muito dinheiro e
têm os homens melhor preparados para defender os seus interesses em
Washington, em Bruxelas ou nas capitais dos países ricos. Cada
país defende antes de tudo os seus interesses econômicos, que
são muitas vezes os das suas empresas multinacionais. Grandes ONGs
internacionais também adquiriram uma boa capacidade para tentar defender
os interesses mais comuns da sociedade e dos cidadãos.
Em Johannesburg, pela primeira
vez, as empresas multinacionais estiveram fortemente presentes e, como veremos,
conseguiram enormes resultados. Falou-se da participação ativa de
200 multinacionais, estreitamente articuladas numa
"organização empresarial para o desenvolvimento
sustentável" (no Brasil: Conselho Empresarial Brasileiro para o
Desenvolvimento Sustentável CEBDS), com porta-voz único: o
antigo presidente da Shell. Muitas vezes, os interesses dessas empresas eram
defendidos pelos próprios delegados oficiais. Mas também elas
tinham os seus próprios representantes para lembrar algumas
exigências aos negociadores, se fosse necessário. Estavam
presentes em Ubuntu Village, com muitos recursos, expondo seus projetos de
ajuda à sustentabilidade.
Ainda que com menos recursos, as ONGs também tentaram ter voz nas
negociações. Existem nos próprios procedimentos da ONU
mecanismos de consulta à sociedade civil. Mas o lobby principal se faz
junto aos negociadores. Poucas ONGs têm conseguido a capacidade de
intervir 'profissionalmente' nos processos de negociação. Para
ter peso, elas se beneficiam do apoio de milhares de outras ONGs 'na
retaguarda' e da opinião pública. Assim, se a maioria das ONGs
tinham as suas bases em Nasrec, um grupo delas estava muito ativo em Sandton.
Para esta 2ª Cúpula de Terra, sete grandes ONGs internacionais
tinham-se juntado (entre elas: Amigos da Terra, WWF, Greenpeace, Oxfam) na
"Eco-Equity" para aumentar o seu peso e a sua capacidade de
intervenção. Eco-Equity preparou uma resposta justificada a todos
os parágrafos entre colchetes do plano de ação. Durante a
cúpula oficial o grupo conseguiu, de fato, uma boa presença
fornecendo diariamente excelentes boletins ao conjunto das ONGs, à
imprensa, e até a delegados oficiais 'perdidos' nos labirintos das
negociações. Esses boletins resumiam o que estava em jogo e o
andamento dos jogos de força entre os paises no processo de
negociação.
Infelizmente, a coordenação das ONGs da África do Sul, que
organizou muito bem a cúpula das ONGs em Nasrec, não conseguiu se
articular suficientemente para produzir um documento alternativo à
declaração oficial. Merece, porém, ser mencionada a grande
marcha organizada, antes da chegada dos chefes de Estado e governos, por
movimentos sociais e em particular dos Sem-terra na África do Sul, com
boa participação de delegados internacionais, desde a
miserável favela, Alexandra, até o bairro muito chique de
Sandton, onde acontecia a cúpula oficial.
O papel da ONU
A iniciativa de tamanho evento
mundial só podia vir da ONU. No entanto, faz-se necessário
perguntar sobre o peso dessa organização no desenvolvimento das
negociações. O secretário geral da cúpula e dos
seus quatro eventos preparatórios, foi o indiano Nitin Desai, homem
aberto, próximo de Kofi Annan. Já vimos, como a
preparação dum 'plano de ação' concreto em Bali
tinha sido bloqueada pelos EUA. Kofi Annan tentou relançar a
dinâmica com as cinco propostas prioritárias: água,
energia, saúde, agricultura e biodiversidade. O secretário geral
da ONU, hábil diplomata, é uma figura muito respeitada. Mede as
suas palavras e não fala em vão. Defende eficazmente a
credibilidade e o prestígio moral da ONU. Faz bons discursos, mas, como
para o Papa, ninguém aplica as recomendações. Quem manda
são os paises mais ricos, cada um defendendo os seus interesses, e os
resultados das negociações correspondem à
correlação de forças existente na plenária.
A situação do PNUMA (Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente) reflete esta situação. Apesar dos riscos de
destruição irreversível do planeta com graves
conseqüências para a humanidade, o meio ambiente não é
prioridade para os ricos, focalizados na obtenção de
benefícios a curto prazo. O eficiente diretor executivo atual, o
alemão Klaus Tötfer, não conseguiu para o PNUMA os recursos
e a autoridade legal suficientes para administrar, em nome da comunidade
mundial, problemas universais. Os apelos para que esta
organização onusiana tenha os meios de atuar em nome de todos
foram ignorados.
O desenvolvimento das negociações
O conjunto das
negociações deve ser situado na continuidade da década da
liberalização geral do comércio. A rodada Uruguai,
primeira grande abertura das fronteiras, foi assinada em 1994 e, em
continuidade, em 1995 foi criada a OMC. A tentativa abortada de fazer aprovar,
às escuras, o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) foi retomada na
preparação duma nova rodada a rodada do Milênio
que devia ser muito mais abrangente que a anterior, para ser
lançada em Seattle em 1999. Os conflitos de interesses entre os EUA e a
UE e a mobilização da sociedade civil bloquearam a proposta da
OMC. Doha (Qatar; novembro 01) relançou a iniciativa duma nova rodada de
livre comércio, chamada "rodada do desenvolvimento". Para
financiar o desenvolvimento, o encontro dos chefes de Estado e governos de
Monterrey (México; março 02) promoveu as iniciativas do setor
privado. É neste contexto global que se desenrolaram as
negociações em Johannesburg. A dinâmica geral já
estava indicada. Não houve surpresas, mas, sim, a
confirmação com algumas pequenas concessões
do que a maioria das ONGs temia. A 'declaração de Doha' e o
'consenso de Monterrey' foram muitas vezes citados como referência para o
comércio e as finanças, enquanto Durban (África do Sul;
dezembro 01) sobre o racismo, a tolerância e os direitos humanos, e Roma
(junho 02) sobre a soberania alimentar não foram nenhuma vez
mencionados.
Sobre os principais pontos em
litígio (comércio, finanças, globalização),
os EUA e a UE prepararam sozinhos, surpreendendo e desagradando os outros
paises, um texto alternativo que foi colocado na mesa do presidente e do
secretário geral. Gesto que expressava claramente quem estava de fato
negociando. Os 'grandes', às vezes opostos mas muitas vezes unidos e
fazendo concessões mútuas na defesa dos seus interesses
respectivos, monopolizaram as negociações. Até o pequeno
'acidente' na noite do 31/8 para o 1/9 ilustra o conluio dos interesses entre
os ricos. Na reta final das negociações, justamente antes da
chegada dos chefes de Estado e governo, diante do bloqueio geral dos EUA, a UE
saiu da sala de negociação, propondo submeter as decisões
à autoridade dos ministros. Isso teria atrasado e complicado bastante as
decisões. A UE voltou duas horas mais tarde, à meia noite.
Até as três da manhã houve uma troca de arranjos entre os
dois blocos.
Resultados: opiniões contratadas.
As apreciações
contrastadas dos diferentes atores relativizam os resultados. As empresas
transnacionais e os governos dos países ricos grandes vencedores
consideram que "a cúpula avançou na
direção certa"; mas, os governos dos paises mais pobres e as
ONGs consideram que toda a humanidade e a Terra perderam de vez.
O discurso das empresas
é mais entusiasta: "Não vejo a possibilidade de qualquer
desenvolvimento sustentável sem implicar as empresas... o que nos
interessa é o concreto, enquanto as ONGs trabalham mais no
político... assumimos nosso estatuto de empresa privada e nossos
imperativos de resultados; pensamos que nossa capacidade pode ajudar a resolver
os problemas da pobreza" opinava um dirigente empresarial, entre muitos
outros.
As ONGs são mais críticas; desilusão, amargura e
frustração apareceram nas suas avaliações. Para a
maioria delas, a comunidade internacional está muito longe dos
compromissos assumidos no Rio: "os governos continuam mostrando uma
trágica falta de vontade de traduzir os princípios do Rio em
ação. Ao contrário, assistimos à fuga das
responsabilidades pelos Estados, à promoção do mercado
como árbitro maior das questões sociais e ambientais",
à uma submissão irresponsável dos Estados à
globalização liderada pelas multinacionais". A
declaração final de algumas grandes ONGs diz: "Como dizer
que vamos reduzir a pobreza da metade da humanidade sem objetivos e
compromissos concretos, sem datas, só com boa vontade? ... a
Cúpula foi refém das multinacionais; os verdadeiros vencedores da
Conferência são os paises como os EUA, a Austrália ou a
Arábia Saudita, que não queriam engajamentos quantitativos e que
defendem a indústria do petróleo... toda a cúpula apenas
legitima a agenda do livre comércio". Ao entusiasmo de uma grande
multinacional das águas, o coordenador mídia das ONGs respondeu :
"o problema é que não sabemos se os mercados do sul
trarão benefícios às empresas. Daí o perigo de os
que não puderem pagar serem excluídos pelas empresas que
vão gerenciar a água ou a energia". Os grandes objetivos
sociais do Milênio definidos em Conferências internacionais
anteriores foram deixados de lado.
Muitos governos de paises em desenvolvimento têm uma
apreciação próxima à das ONGs: "Que
diferença entre os discursos e a ação! Os maiores
poluidores se declaram os maiores defensores da causa ambiental, e não
querem assumir nenhum compromisso para salvar o planeta, nem manter os
objetivos oficiais da ajuda para o desenvolvimento" declarou o presidente
do Equador.
Os resultados do 'WEHAB'
Água e saneamento:
a proposta de reduzir pela metade, até 2015, o número das
pessoas que não têm acesso nem à água potável
(1,1 mil milhão) nem ao saneamento (2,4 mil milhões) é uma
das poucas medidas em favor das populações mais pobres. A
proposta supõe que se dê acesso à água a 200.000
novas pessoas cada dia, e o custo global é avaliado em US$ 180 mil
milhões. Mas não há indicação de quem
promoverá tal proposta. Serão as multinacionais da água?
Energia:
foi um dos últimos pontos das negociações, tamanha era a
resistência dos EUA e das multinacionais e países produtores de
petróleo. Diante do esquentamento do planeta e das mudanças de
clima, a proposta da Convenção sobre o clima na "Rio
92" foi de trazer as emissões de gases com efeito estufa ao
nível de 1990 até 2000. Não foi feito. A proposta da
Convenção foi reforçada com o Protocolo de Kyoto em
dezembro de 1997: reduzir até 2012 as emissões de pelo menos 5%
em relação ao nível de 1990. A UE e o Brasil, com outros
paises, lideraram a assinatura e ratificação do Protocolo, e
propuseram aumentar até 15% em 2015 as energias renováveis na
produção energética mundial. Até Johannesburg,
alguns paises grandes poluidores não tinham ratificado o protocolo de
Kyoto. Este foi lembrado no plano de ação, mas sem caráter
obrigatório. O anuncio público, desde a tribuna principal da
Cúpula, pelo Canadá, a China, a Índia e a Rússia de
que iriam ratificá-lo sem demora foi uma das boas novas da
Cúpula. Os EUA e a Austrália ficam isolados. Mas a proposta dos
15 % foi reduzida ao apelo a um "aumento substancial", sem meta
quantitativa nem prazo.
Saúde:
o texto tinha sido aprovado em Bali, mas o Canadá queria reabrir a
negociação. Foi um caso de procedimento. O parágrafo de
Bali chamava os Estados a "fornecer a todos serviços
sanitários básicos eficazes, respeitando as
legislações nacionais e os valores culturais e religiosos",
sem menção do planejamento familiar. Essa posição
era defendida pelos EUA sob a presidência de Bush, os paises
muçulmanos e o Vaticano. O Canadá, apoiado pela EU, dizia que a
última parte da frase significava a vitória dos Estados recusando
o aborto ou a prática da excisão. Juntos pediram acrescentar a
expressão "em conformidade com todos os direitos humanos e as
liberdades fundamentais". Sem esse acréscimo, que foi aprovado
depois de áspero debate, não haveria menção nenhuma
dos direitos humanos no documento final.
Agricultura:
os paises em desenvolvimento pediram novamente que tanto na Europa como nos EUA
fossem suprimidas as subvenções à agricultura que impedem
a concorrência dos seus produtos agrícolas e os privavam de
importantes recursos financeiros. EUA e UE formaram uma frente unida e
conseguiram que Plano de Ação apenas confirmasse as
posições de Doha: uma diminuição e supressão
dos subsídios num prazo indefinido. Na 2ª reunião
ministerial da "rodada do desenvolvimento", no México em
novembro de 2003, a batalha será forte.
Biodiversidade:
houve, neste campo, dois pequenos avanços. A proposta é de
chegar em 2010 a inverter a tendência destrutiva atual da biodiversidade.
Mas nenhum objetivo preciso é indicado. Apenas chegou-se a algo mais
preciso para a pesca já que 75% dos cardumes são ameaçados
de destruição irreversível. O objetivo fixado para 2015
é de não pescar mais peixes do que permite a
regeneração dos estoques. O acréscimo "onde for
possível" reduz a significância do objetivo.
Outros resultados
Tamanho e tão caro
evento por tão poucos resultados diante de tamanhos desafios ambientais,
sociais e de produção! O balanço pode parecer
medíocre; e o é! Dando uma nota ao resultado sobre os principais
temas em jogo, um grupo de ONGs chegou à nota final: 2,2. As
apreciações variam. Talvez não foi tão ruim como
muitos temiam, mas não correspondeu nem de longe ao que
era necessário para encarar de verdade os imensos desafios da
sustentabilidade e assumir as nossas responsabilidades diante do presente e do
futuro. Alguns outros resultados ilustram o porquê da desilusão e
frustração de muitos.
Uma tentativa maior dos paises
ricos e das multinacionais foi submeter qualquer
acordo ambiental multilateral
às regras da OMC. A proposta estabelecia a prevalência decisiva
do mercado sobre a defesa do meio ambiente. As medidas ambientais poderiam ser
consideradas como medidas protecionistas e ser denunciadas diante da OMC. Mais!
o mercado ia ser considerado como o melhor instrumento para proteger a
integridade do planeta! Por incrível que pareça, tamanha
contradição foi derrotada no último momento pela voz de um
pequeno país, que declarou : "em consciência, não
posso aprovar tal proposta". E, por 'efeito dominó' muitas outras
vozes se juntaram para recusar essa proposta tão perniciosa.
A presença nova e
atuante das multinacionais no desenvolvimento o que alguns chamam a
"tentativa de privatizar o desenvolvimento sustentável"
foi a confirmação das
'novas iniciativas de parceria'
para o desenvolvimento, chamadas
"Tipo 2".
Até Monterrey, a ONU apoiava apenas acordos intergovernamentais que
apresentassem um marco regulador de parceria entre os governos e outros
setores. O novo modelo de parceria "Tipo 2" promove acordos entre
empresas, autoridades públicas, e setores da sociedade civil. O risco
é que os governos abdiquem de suas responsabilidades e deixem às
empresas o maior controle dos processos de desenvolvimento. Muitas vezes a
sociedade civil não dispõe dos instrumentos de
informação, organização ou mesmo de
formação para acompanhar processos complexos. Já mais de
400 'projetos de parceria' foram apresentados à ONU pelas grandes
empresas para se beneficiar dos recursos disponíveis. No entanto muitos
dos diversos projetos não estabelecem uma política de
desenvolvimento. O risco é real: sem controle nacional e internacional
pelos governos, organismos internacionais ou sociedade civil, o desenvolvimento
sustentável pode depender sempre mais do capital privado.
Outro sinal da nova
presença das empresas no desenvolvimento foi a debate sobre as suas
responsabilidades sociais e ambientais
. Tal tema era novo num recinto oficial internacional tão solene. A
proposta feita, já faz anos, por setores civis, intelectuais e
até empresariais de elaborar um código ético para as
empresas, em matéria social e ambiental, enfrentou uma maior
resistência. É assim que a responsabilidade da empresa é
mencionada no plano de ação e na declaração
política, mas de forma bem geral e sem caráter
obrigatório.
O conceito de sustentabilidade
questiona radicalmente o modelo econômico predominante
produtivista-consumista. Tanto pela sua abrangência como pela
urgência de soluções, o tema era mesmo sensível.
Alguns pequenos primeiros passos foram feitos. Num prazo de dez anos, alguns
programas de modificação dos
modos atuais de produção e consumo
(economia ou novas fontes de energia; melhor preservação dos
recursos naturais, etc.) deveriam ser encaminhados, mas a
articulação entre o crescimento da economia e a
degradação do meio ambiente foi rejeitada.
Entre as ONGs, muitos temiam
que alguns
princípios centrais da "Rio 92
" fossem abandonados e que a "Rio + 10" se transformasse numa
"Rio 10". O princípio de precaução ou
cautela, adotado no Rio, estabelece a possibilidade para um Estado de
restringir uma atividade ou um produto na ausência de certeza
científica sobre o seu caráter inofensivo. O debate principal
até agora diz respeito ao controle sobre os OGMs (Organismos
Geneticamente Modificados). A batalha foi dura. O próprio
Secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, vaiado pela
Assembléia, questionou desde a tribuna da plenária os
países da África que se recusam a aceitar o milho
transgênico das empresas norte-americanas para resolver os problemas da
fome! O princípio de precaução se transformou no documento
final numa "aproximação de cautela", mas a tentativa de
submetê-lo às regras da OMC foi rejeitada. A disputa continua e
será de novo intensa na próxima reunião ministerial da OMC
em 2003.
O outro princípio
central 'de
responsabilidade comum mas diferenciada'
, também chamado de 'internalização dos custos' ou de
maneira mais popular de 'poluidores-pagadores'. O princípio foi lembrado
no documento final, sublinhado a responsabilidade dos países mais ricos
na degradação do planeta, mas sem nenhum caráter
coercitivo.
A problemas globais,
soluções globais. Os riscos ambientais, articulados às
situações sociais e econômicas, não têm
soluções meramente nacionais. Tal é o desafio da
Governança global.
Houve apelos para implementar um organismo internacional ao exemplo da
OMC com autoridade legal reconhecida por todos para regular e
disciplinar as políticas ambientais. A resposta foi um apelo a
soluções nacionais (sic) e regionais, sem aceitação
de uma autoridade mundial. O papel do PNUMA não foi modificado; apenas
os meios do Fundo para o Meio Ambiente serão aumentados de US$ 3
bilhões.
Desde 1969 os paises da OCDE se
comprometeram de consagrar 0,7% dos seus PIB em favor do desenvolvimento. Bem
utilizado, tal montante de
APD (Ajuda Pública para o Desenvolvimento)
teria facilitado grandes avanços. Grande é a distância
entre as declarações e os atos: o total da APD alcança
apenas 0,32 % dos PIB (0,10% para os EUA). As boas intenções
foram renovadas sem convencer muito. UE e EUA confirmaram as promessas feitas
em Monterrey de aumentar respectivamente de US$ 6 bilhões e US$ 5
bilhões as suas ajudas, desta vez não mais para o desenvolvimento
mas para fortalecer os organismos e as estruturas de promoção do
livre comércio. Tais intenções nos deixam perplexos:
será que os paises ricos querem realmente alcançar os objetivos
sociais do Milênio, ou trata-se outra vez de fazer falsas promessas para
manter a paciência dos excluídos?
O fato de a 2ª
Cúpula da Terra acontecer na
África
favoreceu uma certa atenção aos problemas particulares do
Continente. Johannesburg era provavelmente a única cidade do continente
com infraestrutura suficiente para tamanho evento. O prisma predominante de
todos os temas da cúpula era o do comércio e das finanças.
Era a chave interpretativa principal. Por certo, encontram-se no Plano de
Ação algumas propostas de luta contra a
desertificação com a ajuda financeira do Fundo para o Meio
Ambiente, mas o verdadeiro plano de ação para a África,
com a bênção dos países mais ricos e das
instituições financeiras internacionais é o
NEPAD (New Partnership for Africa´s Development)
. Esse novo programa, aprovado pelos líderes africanos em outubro de
2001, adota o comércio como força principal para o
desenvolvimento e a luta contra a pobreza. ONGs e grupos das Igrejas
questionam: o programa foi elaborado por alguns tecnocratas liberais, sem
análise das verdadeiras necessidades prioritárias da
África e sem consulta dos organismos competentes da sociedade civil.
"Prevaleceram os
interesses econômicos; os problemas sociais e ambientais foram
sacrificados": essa opinião predominava entre as ONGs. Como
justificar que os
direitos humanos e direitos sociais
sejam apenas mencionados no Plano de Ação final? Tanto uns como
outros estavam ausentes do documento preparatório feito em Bali. Como
vimos, a única menção dos direitos humanos foi introduzida
a pedido do Canadá e da UE no capítulo sobre a saúde, para
o acesso das mulheres ao planejamento familiar e a luta contra as
violências sexuais. Os direitos sociais foram introduzidos timidamente
numa referência à OIT e são secundários com respeito
às regras da OMC.
A
Declaração política
passou por fases delicadas. O esboço demasiado geral e vago, proposto
pelo secretário geral da cúpula não satisfazia nem um lado
(países ricos e empresas transnacionais) nem o outro (países em
desenvolvimento e ONGs). O bloqueio foi intenso. Apareceu a eventualidade de
não haver Declaração política ou uma assinada
apenas pela África do Sul. A iniciativa da própria
presidência da cúpula o presidente sul-africano Tabo Mbeki
salvou a situação. O texto aprovado no último
momento (4 páginas) confirmou os sentimentos de muitos: existe uma
desproporção total entre as declarações e as
práticas. A Declaração política proclama o grande
otimismo e a determinação irrestrita dos chefes de Estado de
encarar os problemas ambientais, sociais e econômicos da sustentabilidade
e de alcançar os objetivos sociais do Milênio. Mas onde
estão no Plano de Ação os objetivos concretos e as metas
quantitativas, com prazos e meios definidos, com procedimentos de
implementação e de controle? A declaração
política não menciona o protocolo de Kyoto, os subsídios
à agricultura, a governança global, nem lembra os fortes
princípios da "Rio 92". Mas, positivamente, faz um apelo
à responsabilidade das empresas (maneira elegante de reconhecê-las
como ator integral do desenvolvimento sustentável), confirma o papel
central da ONU (contra as tentativas dos EUA de relativizar o seu papel para
valorizar o da OMC) e os benefícios do multilateralismo como
método do futuro. A experiência do tratamento reservado às
Declarações políticas de outros encontros internacionais
a do Rio, particularmente não permite ser muito otimista.
Conclusões
"Em Johannesburg, a
Cúpula da Terra foi 'pirateada' pelas grandes empresas" titulava um
grande jornal internacional. A cúpula confirmou o papel crescente da OMC
na definição das políticas internacionais. O
comércio predominou, o ambiental foi tema anexo, o social foi deixado de
lado. Doravante o livre comércio é considerado como a
panacéia não só para os problemas da pobreza e
miséria, mas também às ameaças de
destruição ambiental.
Os EUA pressionaram com todo o
seu peso (com uma enorme delegação oficial) para promover essa
prevalência do comércio, defendendo os seus interesses com unhas e
dentes. Junto com a EU, impuseram as regras de jogo durante toda a
cúpula. O encontro foi 80% dos dois blocos com, às vezes, a
participação anexa de um ou outro país sobre pontos
específicos. Mesmo que representando os interesses de 132 países
em desenvolvimento, o G77/China, nem sempre unido, não conseguiu fazer
valer os seus pontos de vista. Houve negociações? Talvez seja
mais correto ter a lucidez e coragem reconhecer que foi muito mais a
imposição das regras pelos mais fortes.
O vago do conceito de
Desenvolvimento Sustentável que não ajudou a avançar na
década de 90 não foi superado durante a cúpula. As
contradições entre os três pólos: ambiental
(planeta), social (povo) e econômico (prosperidade) aparecem mais
claramente. A complexidade da questão do futuro do nosso planeta, da
nossa humanidade e das gerações futuras é mais evidente do
que 10 (Rio) ou 30 (Estockholmo) anos atrás. A responsabilidade comum de
todos os paises e de todos os atores não pode ser mais escondida.
Já é tempo de distinguir melhor os múltiplos desafios,
buscar e encontrar soluções concretas para cada um deles.
Metodologicamente, as grandes celebrações demasiado abrangentes,
como essa última cúpula de Joburg, mostraram os seus limites.
Encontros menores, mais diversificados e melhor focalizados podem suscitar
maior interesse e participação responsável de muitos.
Brasília, 22/Set/02
_____________
[*]
Padre, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES), presidente da Rede
Internacional dos Jesuítas.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
|