Marxismo ecológico ou ecologia política marxiana
por Jean-Marie Harribey
[*]
O século XX acaba num
cenário de crise geral mundial: o modo de produção
capitalista estendeu-se a todo o planeta e sujeita progressivamente ao
domínio da mercadoria todas as actividades humanas, mas, sem
dúvida pela primeira vez na sua história, produz duas importantes
degradações simultâneas.
A primeira é de ordem
social pois, apesar de um crescimento
considerável das riquezas produzidas, a pobreza e a miséria
não recuam no mundo: 1,3 mil milhões de seres humanos
dispõem do equivalente a menos de um dólar por dia, outros tantos
não têm acesso a água potável e aos cuidados mais
elementares, 850 milhões são analfabetos, 800 milhões
são subalimentados, pelo menos 100 milhões de crianças
são exploradas no trabalho, e durante os quatro últimos
decénios, as desigualdades entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos
em vez de 1 para 30 são agora de 1 para 80. Este desastre social toca
mesmo os países mais ricos já que os Estados Unidos contam 34,5
milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar de pobreza e os
países da OCDE recenseiam 34 milhões de pessoas que sofrem de
fome, uns 30 milhões reduzidos ao desemprego, e muitos mais ainda
cuja situação se torna precária.
A segunda
degradação importante diz respeito à natureza e
aos ecossistemas gravemente atingidos ou ameaçados pelo esgotamento de
certos recursos não renováveis e por poluições de
toda a espécie. Além disso, a maior parte das opiniões
científicas convergem no alarme quanto ao risco de aquecimento
climático ligado às emissões de gás com efeito de
estufa. A origem desta crise ecológica é sem dúvida o
modo de desenvolvimento industrial conduzido sem outro critério de
julgamento que não seja a rentabilidade máxima do capital
investido, mas cuja legitimidade era assegurada pela ideologia segundo a qual o
crescimento da produção e do consumo era sinónimo de
melhoria do bem-estar de que todos os habitantes do planeta beneficiariam a
mais ou menos longo prazo.
Se pode dizer-se que a
simultaneidade destes dois tipos de desastres, social e ecológico,
não é fortuita, quer dizer, se eles são o produto do
desenvolvimento económico impulsionado pela acumulação do
capital à escala planetária, e, pior ainda, se eles são o
seu produto necessário, então põe-se a questão do
encontro da crítica marxiana do capitalismo e da crítica do
produtivismo cara aos ecologistas. Ora não somente estas duas
críticas nasceram separadamente, como ainda se desenvolveram amplamente
uma contra a outra, na medida em que a primeira foi identificada durante toda a
sua duração de vida com as experiências dos países
ditos socialistas cuja desordem ecológica como a
social, de resto não era inferior à dos países
capitalistas, e onde a segunda hesitou durante muito tempo no reposicionamento
das relações entre o homem e a natureza no quadro das
relações sociais.
Todavia, a
conjunção de três acontecimentos criou as
condições de uma aproximação entre estas duas
abordagens. Trata-se primeiro do desaparecimento dos (anti)modelos
socialistas que prejudicavam a utilização da teoria
de Marx para fins de crítica radical do capitalismo. O segundo
acontecimento foi a liberalização completa do capitalismo, sob a
batuta dos mercados financeiros tornados globais, que se saldou por uma
inversão da relação de forças a favor do capital e
em detrimento do trabalho. O terceiro acontecimento é a
convergência das mobilizações populares e das lutas sociais
contra os danos da mundialização capitalista, nomeadamente
identificando com clareza as paradas das negociações no seio da
Organização Mundial de Comércio: a recusa da
mercantilização do mundo e da privatização do seres
vivos contém em si o questionamento dos dois termos da crise que atinge
sobretudo as populações mais desfavorecidas: social e
ecológico.
Este último elemento
a luta social não é o menor: por si só, ele
funda a possibilidade de elaborar uma crítica teórica geral de
uma crise que é ela própria global; por si só, ele
justifica as pesquisas teóricas para ultrapassar uma
oposição estéril e paralisante entre uma crítica
marxista tradicional das relações sociais separadas das
relações do homem com a natureza e uma crítica ecologista
simplista das relações do homem com a natureza sem
referência às relações sociais no interior das quais
o homem põe em acção o seu projecto de
domesticação da natureza.
Parecem pois reunidas as
condições materiais para conduzir uma teorização
materialista
do conhecimento e da transformação das relações do
homem com a natureza e isso em duas direcções: a da
formulação de um materialismo naturalista e a da
reinserção da ecologia política no seio de uma
análise global do capitalismo, numa espécie de
fecundação mútua de dois paradigmas. Contudo, um
obstáculo de monta se ergue diante desta aliança: um novo
paradigma só triunfa ocupando o lugar de outro. O mais verosímil
é pois que a condição necessária do nascimento de
uma ecologia política marxiana ou de um marxismo ecológico seja
uma ultrapassagem completa e definitiva da forma tomada pelo marxismo
tradicional enquanto movimento de pensamento e de acção inscrito
num período histórico dado, aquele que, esquematicamente, se
resumiu e reduziu à colectivização dos meios de
produção sem que as relações sociais fossem
minimamente modificadas. Inversamente, o pensamento da ecologia
política não poderia aspirar ao título de novo paradigma
se não lograsse integrar-se num conjunto mais vasto visando uma
transformação social. Hoje, embora este duplo empreendimento
esteja longe do seu termo, pode dar-se testemunho de um número
importante de contribuições que vão no sentido de uma
construção inovadora. Há aquelas que mostram que o
materialismo pode, em certas condições, constituir a matriz
conceptual da assunção da ecologia pela sociedade, e aquelas que
definem, num outro sentido, as bases de uma ecologia desembaraçada da
ilusão de um capitalismo limpo.
1. O materialismo como matriz conceptual da ecologia
A obra de Marx propõe um
quadro conceptual que, em primeiro lugar, coloca a actividade social dos seres
humanos no interior de um ambiente material natural, e, em segundo lugar, opera
uma distinção radical entre o processo de trabalho em geral e o
processo de produção capitalista. Contudo, no seio desta obra,
subsistem várias dificuldades cuja resolução é
indispensável para se poder nela integrar a problemática
ecologista.
A sociedade na natureza
Verifica-se um primeiro
consenso entre os autores que hoje se reclamam de Marx
e se interessam pela ecologia: existem condições materiais
naturais indispensáveis à actividade humana, e isso
independentemente do modo de produção. A natureza é
o corpo não orgânico do homem ou então o homem
é uma parte da natureza, escrevia Marx, [1965, p.62] nos
Manuscritos de 1844
. Desde logo, segundo Ted Benton, as posições filosóficas
de Marx e Engels dizem simultaneamente respeito ao naturalismo e ao
materialismo. À primeira vista esta concepção da natureza
como corpo não orgânico do homem poderia ser
interpretada como meramente utilitarista. Alfred Schmidt [1994, p.113]
opõe-se a esta interpretação pois Marx afasta-se de uma
tal concepção herdada das Luzes para adoptar uma
posição dialéctica: No homem, a natureza atinge a
consciência de si mesma e une-se a si mesma graças à
actividade teórico-prática deste último.
James O'Connor (1992), fundador
da revista americana da ecologia socialista,
Capitalism, Nature, Socialism
, prossegue referindo que a diferença fundamental entre, por um lado, as
condições naturais da produção e, por outro, as
forças produtivas consideradas habitualmente pelo marxismo assim como as
suas condições superestruturais de exercício, repousa no
facto de que as primeiras não são produzidas. Como estas
condições naturais objectivas não são produzidas e
como a sua existência é apresentada
ex ante
, isso institui uma abordagem materialista da ecologia e estabelece um primeiro
ponto de encontro com os princípios da termodinâmica de que
Nicholas Georgescu-Roegen [1971; 1975]
foi um dos primeiros a tirar as consequências para a economia: a
entropia de um sistema
fechado
aumenta continuamente (e definitivamente) e em direcção a um
máximo; quer dizer que a energia utilizável é
continuamente transformada em energia inutilizável até que
desapareça completamente [1995, p. 81-82] pois o desenvolvimento
económico assenta na utilização inconsiderada do stock
terrestre de energia acumulado ao longo do tempo. Ponto de encontro mas
não identidade porque, como o sugere René Passet [1996, p. XVII],
Marx e Engels estão sem dúvida mais próximos da ideia de
uma destruição criadora de um Ilya Prigogine [1979]
do que de uma degradação inexorável do universo. Todavia,
Juan Martinez-Alier [1992-a, p.21; 1992-b, p.183-184] recorda que, para N.
Georgescu-Roegen como para Vladimir Vernadsky [1924]
[1]
a Terra é um sistema aberto porque recebe energia exterior proveniente
do Sol e assim processos de crescimento e de complexificação
podem aí desenrolar-se no decurso do tempo.
O facto de a actividade humana
se desenvolver no seio de uma envolvente natural legitima a gestão
normativa sob constrangimento preconizada por R. Passet. Autores como
Georgescu-Roegen e R. Passet, que não se reclamam do marxismo,
aproximam-se contudo dele quando põem em causa a redução
do social ao económico e a maneira de pensar a economia apenas em termos
de equilíbrios.
A distinção entre o processo de trabalho em geral e o processo de
produção capitalista
Desde o início do
Capital
, Marx distingue o processo de trabalho em geral, que é uma
característica antropológica, cuja finalidade é produzir
valores de uso próprios para satisfazer necessidades humanas, e o
processo de trabalho específico do modo de produção
capitalista, que representa apenas uma fase da história humana, cuja
finalidade é produzir mais-valia que permita valorizar o capital. No
segundo caso, a produção de valores de uso deixa de ser uma
finalidade para não ser mais do que um meio do valor de que a mercadoria
é o suporte. A partir deste instante, explica Jacques Bidet
(1992;1999), existe a possibilidade de as verdadeiras necessidades sociais
não serem satisfeitas e de, pelo contrário, externalidades,
contra-utilidades sociais serem engendradas por um modo de
produção polarizado pelo lucro (1992, p. 103). O
princípio da crítica ecologista está portanto já,
pelo menos implicitamente segundo T. Benton e J. Bidet, contido nesta
distinção estabelecida por Marx.
Contudo, Marx consagrou o
essencial da sua obra a analisar a contradição, a seus olhos
fundamental, saída da exploração da força de
trabalho: a dificuldade para o capital de fazer produzir e seguidamente de
realizar a mais-valia. E Marx teria em parte desprezado, embora estando
consciente delas, as consequências ecológicas do desenvolvimento
do capitalismo. Para o explicar, T. Benton avança a hipótese de
ele ter subestimado as condições naturais não
manipuláveis (1992, p. 66) do processo de trabalho e de ter
sobrestimado o papel e as capacidades técnicas do homem. Marx
não teria assim podido desligar-se da perspectiva prometeica de que o
século XIX está impregnado e ter-se-ia tornado culpado de
condescendência ou, pelo menos, de falta de vigilância para com
aquilo a que os ecologistas chamam hoje o produtivismo. Esta censura é
contestada por Reiner Grundman (1991) que considera que não se pode
assimilar a vontade de utilizar a natureza na perspectiva de satisfazer
necessidades humanas a um projecto de destruição
automática e deliberada desta. A razão disso reside em que
destruir a natureza se voltaria contra a satisfação dessas
necessidades. Ora parece-nos que esse argumento só poderia ser
avançado se as práticas de destruição da natureza
fossem intencionais, decididas em função de uma tal finalidade
destrutiva. Se a acumulação do capital resultasse de um projecto
colectivo consciente, não haveria nenhuma razão lógica
para que o imperativo de poupar a natureza não pudesse substituir-se ao
de a maltratar, e isso significaria que o princípio de
precaução poderia, potencialmente, inscrever-se na actividade
capitalista. O menos que se pode dizer é que isso parece duvidoso e,
portanto, não se pode isentar totalmente Marx de ter sido uma
vítima consentidora? do mito do progresso.
A discussão precedente
introduz a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo engendraria duas
contradições. A primeira é aquela a que Marx consagrou
toda a sua vida: ao criar os conceitos de força de trabalho e de
mais-valia e ao fazer da teoria do valor uma teoria crítica das
relações sociais capitalistas, Marx desnuda o antagonismo
fundamental entre o capital e o trabalho cuja resolução só
será conseguida com o comunismo. E ele teria descurado no plano
teórico uma segunda contradição do capitalismo.
Esta noção foi
exposta por J. O'Connor e vários autores de
Capitalism, Nature, Socialism
como Enrique Leff (1986), Paul Burkett (1996), Stuart Rosewarne (1997), Tim
Stroshane (1997) e é retomada por J. Bidet (1992; 1999). A
definição desta segunda contradição carece de
precisão e varia um pouco de autor para autor. Para J. O'Connor ela
diria respeito aos custos, já não examinados exclusivamente sob o
ângulo económico, mas também os custos dependentes de
categorias sociológicas ou políticas (1992, p. 33).
Enquanto a primeira contradição se manifestaria mais na
dificuldade em realizar a mais-valia do que em produzi-la, seria o
contrário para a segunda. Esta comportaria dois aspectos: o primeiro
seria, segundo J. Bidet, a privação dos membros da sociedade
da capacidade de conferirem um sentido à sua
existência. (1992, p. 104); o segundo estaria relacionado, tanto em
J. O'Connor quanto em J. Bidet (1992, p. 105), à
exteriorização de um certo número de custos da
produção social.
Impõem-se várias
observações. Primeiro, a contradição entre capital
e trabalho aquela que aqui se designa por primeira reúne
as duas dificuldades que são produzir e realizar mais-valia: é
falso opor sobreacumulação do capital e subconsumo pois estes
dois pontos são indissociáveis e corolários um do outro.
Segundo, os autores, analisando a contradição designada por
segunda, deslizam da noção de externalização para a
de exteriorização. O que é que justifica qualificar a
contradição ecológica do capitalismo de
contradição externa e reservar a
caracterização de contradição interna
do processo de produção capitalista apenas para a
exploração da força de trabalho (J. Bidet, 1999, p.296)?
Parece-nos que tal constitui um retrocesso quanto ao postulado materialista da
necessária inserção da produção capitalista
no ambiente natural. Desde logo, a primeira e a segunda
contradição são ambas internas ao modo de
produção capitalista e não podem portanto ser separadas:
sem a exploração da natureza, a do trabalho não teria tido
suporte material, e sem a exploração do trabalho, a da natureza
não teria podido estender-se e generalizar-se; daí decorre que a
crise social e a crise ecológica são as duas faces de uma mesma
realidade.
[2]
De resto, J. Bidet, a quem se juntou Daniel Bensaïd (1993), aprova
André Gorz (1978; 1992) quando este estabelece um laço entre o
reforço da crise ecológica e a baixa da taxa de lucro. E J.
O'Connor confirma este laço dizendo que o capital reduz as suas
possibilidades de rentabilidade à medida que sujeita à sua lei as
condições naturais da produção. Enfim, em terceiro
lugar, a privação da capacidade de dar um sentido à
existência não é senão a alienação,
já analisada por Marx e sobretudo completamente ligada à
exploração. É verdade que a destruição da
natureza engendrada pela actividade capitalista implica uma perda de sentido,
mas se os desastres ecológicos fossem traduzidos pelo simples conceito
filosófico de alienação ter-se-ia necessidade da
ciência chamada
ecologia
para os conhecer?
As dificuldades teóricas que persistem
As questões levantadas
precedentemente deixam aparecer a persistência de dificuldades
teóricas que, no seio da investigação marxista actual
sobre a ecologia, se opõem ainda a uma simbiose autêntica. Elas
incidem essencialmente sobre as hipóteses e as finalidades do modelo
marxiano.
Em primeiro lugar, a
distinção entre as diversas formas do processo de trabalho
será suficiente para analisar as relações do ser humano
com a natureza? Por outras palavras, o processo de produção
capitalista será o único responsável da
destruição ou da fragilização dos ecossistemas? Se
a actividade humana se contentasse com a produção de valores de
uso desapareceria toda e qualquer contradição entre esta
actividade e o conjunto dos equilíbrios biológicos? Isso
não é certo, e sabe-se que algumas sociedades tecnicamente pouco
desenvolvidas e não sujeitas à lei do lucro podem ter que
recorrer a práticas agrícolas que esgotam rapidamente os solos.
Inversamente, no seio de sociedades tecnicamente avançadas, o
desaparecimento do capitalismo é a condição
necessária mas não suficiente de uma co-evolução
equilibrada dos sistemas vivos. É o que se depreende da
verificação estabelecida por J. Martinez-Alier (1987) segundo o
qual nem a planificação nem o mercado resolvem o problema da
ausência de uma medida comum entre o presente e o futuro.
[3]
Poder-se-á situar a origem profunda do reconhecimento tardio da
questão ecologista pelo marxismo na insuficiência
metaestrutural da abordagem de Marx, quer dizer no facto de ele ter
estabelecido uma identidade entre capitalismo e mercado, proibindo que se
pensasse o uso do mundo? Tal é a tese de J. Bidet (1999, p. 297) que
tem a vantagem de ligar propriedade, poder e ética.
Para se cingir o alcance desta
problemática, convém previamente reabrir a discussão sobre
a existência ou não de limites temporais. A virulência com
que Marx e Engels se opuseram às teses de Malthus sobre a
população marcou profundamente a história do marxismo.
Embora partindo de uma crítica fundamentalmente justa, a vontade que
tiveram de construir uma teoria sócio-histórica do capitalismo
teve sem dúvida efeitos perversos. Engels (1975) rejeitou o
princípio de entropia e condenou sem apelo a tentativa de Sergueï
Podolinsky (1880-a; 1880-b; 1880-c) de articular uma teoria do valor-trabalho e
uma teoria do valor energético. Se é verdade que é
impossível reduzir todos os aspectos da actividade humana a um gasto
energético medido em calorias e que é, pois, inútil
procurar um equivalente universal, a tese de S. Podolinsky não se pode
resumir a isso, pois sustenta que, se as técnicas o permitirem, o homem
pode produzir mais calorias do que as que despende, afastando assim a
perspectiva de morte térmica.
[4]
S. Podolinsky abria o caminho às análises ulteriores de Howard
Odum (1971) medindo a eficácia de um sistema vivo pela sua capacidade
para maximizar a sua energia incorporada a que ele chama
emergia
. Então, a evolução e a saída das actividades
humanas não dependem mecanicamente de condições naturais,
mas das condições sociais e técnicas de
utilização das condições naturais. Contrariamente
àquilo em que Engels tinha acreditado demasiado rapidamente, S.
Podolinsky inscrevia-se pois totalmente numa perspectiva materialista, para
mais marxista, e não merece a indignidade que ainda hoje o atinge em
certos autores marxistas.
[5]
Na realidade, as
reticências de Marx e Engels e depois dos marxistas em geral, até
uma data recente, explicam-se grandemente pelo receio de que, por detrás
do argumento dos limites naturais à actividade humana, se dissimula um
conservantismo não assumido. Mas, segundo T. Benton, a questão
dos limites naturais não entra em conflito com projectos emancipadores
sob condição de identificar os elementos do processo de trabalho
que são rebeldes à manipulação
intencional (1992, p.70), como a fotossíntese, as
intervenções humanas repetidas ou acumuladas que provocam efeitos
não desejados e indesejáveis, como o efeito de estufa, e as
intervenções que ocultaram ou modificaram certos limites, como as
manipulações genéticas.
Finalmente o problema resume-se
assim: os limites naturais não são imutáveis,
deslocam-se no tempo e no espaço em função da
organização sócio-técnica da sociedade, mas a
própria deslocação certamente não é
infinita. Não teremos então de dizer adeus à infinidade
do crescimento económico que, segundo Herman Daly (1992), não
pode ser duradouro, e pensar o para além do desenvolvimento
que é uma ideologia em ruína, como nos convidam a
fazê-lo Wolfgang Sachs e Gustavo Esteva (1996) bem como Serge Latouche
(1986)? Como quer que seja, em todos os casos, um ecossistema é
uma totalidade que não se reproduz senão no interior de certos
limites e que impõe ao homem diversas séries de
limitações materiais específicas, escreve Maurice
Godelier (1984, p.44). Desta feita, surge outro problema suscitado por Hans
Jonas (1990) considerado como o fundador de uma filosofia do respeito da vida e
das condições da vida que ele designa por
princípio de responsabilidade.
H. Jonas não é um filósofo marxista, mas a sua
interpelação do marxismo incide precisamente num dos fundamentos
mais importantes deste. Para ele, a ética da responsabilidade é
antinómica com a noção de utopia e, particularmente, a
utopia da abundância. Tendo em conta os limites de tolerância da
natureza, a promessa de abundância deve ser abandonada, nomeadamente
porque será impossível fazer aceder os países
subdesenvolvidos ao nível dos países desenvolvidos sem recorrer
ainda mais ao progresso técnico, o que aumenta a
contradição para com o princípio da responsabilidade. As
bases materiais da utopia marxista, como de resto as da ideologia liberal, que
teriam permitido passar do reino da necessidade ao reino da
liberdade (Marx, 1968, p. 1488) nunca estarão reunidas. Mesmo um
autor como Henri Maler, que no entanto se empenhou na
reabilitação da utopia marxiana, é categórico a
propósito das forças produtivas herdadas do capitalismo que
seriam portadoras de emancipações: trata-se de
ilusões funestas (1995, p. 245). Devemos por tal motivo
desinteressar-nos da melhoria das condições materiais de
existência? Não, responde H. Jonas, mas é muito
necessário libertar a exigência da justiça, da bondade e da
razão do isco da utopia (1990, p. 296). O princípio de
responsabilidade não é, para H. Jonas, compatível com o
princípio de esperança de Ernst Bloch (1977, 1982, 1991). A
renúncia à abundância em H. Jonas deve ser aproximada da
noção do suficiente em A. Gorz: o estabelecimento de
uma norma do suficiente é incompatível por via da
autolimitação das necessidades e do esforço consentido que
ela implica com a busca do rendimento máximo que constitui a
essência da racionalidade e da racionalização
económicas (1992, p. 22)
[6]
.
De certo modo, H. Jonas
antecipa a rejeição do primado das forças produtivas que
Alain Lipietz, economista e teórico ecologista vindo do marxismo,
exprime. Reduzindo, diz este último, a história do género
humano à sua actividade transformadora, o marxismo não tem
base de sustentação relativamente à ecologia humana
(1996, p.187)
[7]
pois o respeito da diversidade biológica é um princípio
de vida e aquele que deve prevalecer sobre todos os outros. A primeira censura
de A. Lipietz é excessiva: se Marx tivesse reduzido a história
do homem à sua história produtiva, o trabalho teria contido em si
mesmo o seu próprio fim a
praxis
por oposição à
poiesis
-. Em contrapartida, Marx errou sem dúvida ao considerar a
história produtiva como a pré-história humana,
condição de acesso à verdadeira história. A
segunda censura tem mais fundamento, mas paradoxalmente é a que revela o
carácter radicalmente incompleto de uma ecologia que não
estivesse inserida numa perspectiva de transformação social.
2. A ecologia inserida nas relações sociais
As dificuldades teóricas
encontradas pelo pensamento marxista para cingir a questão ecologista
são a imagem invertida daquelas que obstam ainda a uma
integração das lutas ecologistas numa luta global contra o
capitalismo. Esta questão não deixa de evocar os conceitos de
desencastramento-reencastramento de Karl Polanyi (1983) a quem J. O'Connor
(1992, p. 30-31) se refere de resto abertamente para teorizar uma ecologia
socialista.
A ecologia política
afadiga-se a desviar-se de uma crítica do produtivismo de fraco alcance
não vendo neste senão a busca de uma produção
sem outra finalidade que não seja ela mesma, tal como o define
Jean-Paul Deléage (1993, p. 12). Ora, a crítica que se trata de
conduzir é a da
produção que não tem outra finalidade que não seja
o valor mercantil pelo lucro que contém, com desprezo por todos os
valores de justiça e de respeito da vida.
A ecologia e o valor
A tomada de consciência
dos desequilíbrios ecológicos obrigou a teoria económica
neoclássica a integrar nos seus modelos as externalidades negativas
imputáveis ao desenvolvimento económico das sociedades modernas:
a economia do ambiente tornou-se assim uma disciplina em plena extensão
que tenta reintroduzir no cálculo económico tradicional os custos
sociais engendrados pela degradação do ambiente. Internalizando
pelo mercado as externalidades deste, graças a taxas ou a
licenças para poluir negociáveis
[8]
a economia dominante pensa promover a valorização
dos bens naturais, ou ainda determinar e ter em conta um pretenso valor
económico intrínseco da natureza, até então,
dizem-nos, ignorado.
Mas esta operação
qualificada de sustentabilidade fraca porque conta com uma
possível substituibilidade entre elementos naturais esgotados e produtos
manufacturados ameaça perverter a de uma ecologia política
que se deixasse apanhar pela miragem da internacionalização cuja
problemática encerra várias contradições
teóricas inultrapassáveis.
A primeira é apenas
poder reter, dentre o conjunto dos custos sociais engendrados por actividades
produtivas poluentes, os custos monetários prejudiciais a outras
actividades. Para mais, esta restrição não é
susceptível de ser assumida: primeiro, explica Elmar Altvater
(1991;1992), porque a exploração pelo capitalismo dos recursos
naturais impõe uma velocidade de utilização superior
à dos ciclos naturais; depois, de acordo com R. Passet (1996), porque
implica reduzir o tempo biológico a um tempo económico por
interposta taxa de actualização; e, finalmente, porque, como o
demonstrou David Pearce (1974)
[9]
, ela só faz intervir uma penalidade monetária da
poluição quando o limiar de auto-depuração dos
ecossistemas é ultrapassado, baixando-o assim inexoravelmente.
A impossibilidade de avaliar
monetariamente os elementos naturais não produzidos, de outro modo que
não seja através do cálculo do custo de
produção da sua exploração económica ou do
custo de produção da reparação dos danos que lhes
são causados, explica-se em verdade porque a natureza não tem
valor económico intrínseco, contrariamente ao que pretendem os
economistas neoclássicos que fingem melindrar-se pelo facto de a
economia política ter tradicionalmente desprezado o valor da
natureza. Hoje vários teóricos ecologistas, nomeadamente Gunnar
Skirbekk (1974), J. Martinez-Alier (1992-a), E. Altvater (1997), E. Leff (1999)
e Jean-Marie Harribey (1997; 1999), inscrevendo-se no quadro da
renovação do marxismo, demonstraram que esta
asserção era um puro contra-senso. Se a luz do sol, o ar e a
água puros, ou qualquer outro recurso, condicionam a vida, e se se
partir da ideia de que estes elementos têm um valor económico
intrínseco, então tal valor só poderia ser infinito. Ora,
um valor económico ou um preço infinitos para bens ou
serviços disponíveis são contra-sensos. Um tal erro
lógico pode ser cometido porque a velha distinção
aristotélica entre valor de uso e valor de troca é rejeitada
pelos economistas neoclássicos que assimilam as duas
noções, sem ver que o valor de uso é uma
condição necessária do valor de troca mas que a
recíproca não é verdadeira. Assumindo arbitrariamente
como uma identidade valor de uso e valor de troca, então pode-se
persuadir o cidadão de que o máximo de satisfação
proporcionada pelo uso de bens e serviços passa e só pode passar
pela maximização do valor de troca, ou seja, pela
mercantilização do mundo. Mas basta um contra-exemplo para se
ter a prova da vacuidade da tese da identidade entre valor de uso e valor de
troca. A luz do sol é necessária para fazer crescer o trigo e
contudo o preço do trigo não contém o valor da
luz solar, que não tem nenhum sentido. O leite bebido pela
criança ao seio da mãe tem um valor de uso mas não tem
valor de troca, enquanto o leite em pó posto no biberão tem um
valor de uso o mesmo que o leite materno e um valor de troca.
Assim, nem toda a riqueza é valor, o que Aristóteles, Smith e
Ricardo muito bem tinham pressentido e Marx tinha incansavelmente repetido.
Pelo contrário, o que é típico de uma externalidade
negativa é não constituir de nenhum modo uma riqueza, nem
individual nem colectiva, e no entanto ter por vezes um valor de troca: o
resíduo radioactivo durante milénios pode ser objecto de uma
troca comercial apesar de não ter nenhuma utilidade excepto a de
fazer dinheiro. Deste modo, um preço de direito de poluir eventual
não deve ser considerado como um preço económico; é
obrigatoriamente um preço sócio-político que resulta
directamente da norma de poluição a não ultrapassar
considerada pela sociedade, e esta norma, por sua vez, reflecte as
relações de forças na sociedade.
Duas opções
são então possíveis para os ecologistas. Ou se voltam
para o mercado para proceder a uma melhor atribuição dos recursos
pela instauração de eco-taxas ou a venda de direitos de poluir
mas são levados a estender um pouco mais o campo de uma
contabilidade mercantil que precisamente deu provas da sua incapacidade para
levar em conta os fenómenos biológicos, o tempo e a incerteza
, ou reconhecem a vanidade de querer objectivar em preços as
coisas da natureza e enveredam por um caminho diferente, à
semelhança de José Manuel Naredo (1999)
[10]
, para estabelecer contabilidades-matérias dos recursos naturais,
contabilidades das despesas energéticas, sob condição de
não serem convertidas nem em equivalente-trabalho nem em moeda, e
elaborar funções de objectivos laborais fora de qualquer
critério de maximização do lucro.
[11]
A incomensurabilidade dos
elementos naturais e das mercadorias ordinárias proíbe portanto a
aplicação da teoria do valor-trabalho
[12]
aos primeiros. O valor da natureza pertence a um registo
diferente do económico e remete para valores situados na ordem do
ético e na do político. Mas nem por isso perde crédito a
teoria do valor-trabalho cujo campo de aplicação nunca foi nem
pode ser senão o da mercadoria. Infelizmente a literatura ecologista
está cheia de escritos que testemunham uma incompreensão da
teoria do valor das mercadorias como teoria das relações sociais
capitalistas que presidem à produção destas mercadorias.
Ora, a teoria chamada do valor-trabalho exprime dois pontos fundamentais para
uma problemática ecologista: por um lado
, é a lei do menor esforço para a produção de
um valor de uso
, diz J. Bidet (1999, p. 295), e, por outro lado, é a crítica da
produção pelo lucro em detrimento das necessidades sociais, de um
uso racional da natureza e, de modo mais geral, da justiça social. A
teoria do valor está pois no centro de uma teoria geral que integra a
ecologia e a organização social.
A ecologia e a justiça
No caso de identificar
claramente a acção tendente à preservação
dos equilíbrios naturais como uma componente da acção
anti-capitalista, a ecologia traz ao marxismo uma dimensão que este
não tinha tomado em conta até então: a equidade
intergeracional. A justiça social pode pois doravante ser encarada numa
dupla vertente: no presente, no seio das sociedades actuais marcadas por
profundas desigualdades em termos de poderes, de rendimentos, de
condições de vida e de trabalho, de acesso aos recursos naturais,
aos cuidados, à educação, à cultura, e, no decurso
do tempo, entre as diferentes gerações, em termos de acesso aos
recursos naturais.
Na encruzilhada da ética
e da política, a relação entre ecologia e justiça
social contém pelo menos três exigências fundamentais de
ordem teórica e prática.
A primeira exigência
é a elaboração de uma teoria da justiça que integre
três dimensões: uma teoria crítica da injustiça
hic et nunc
, uma teoria de uma sociedade justa e uma teoria para se ser justo numa
sociedade ainda injusta. A teoria de John Rawls (1987) não satisfaz
estas condições porque parte de uma concepção
individualista do contrato social e da cooperação que dele deve
resultar. Ela afasta qualquer ideia de regulação que não
seja a que é assegurada pela ordem mercantil, supostamente eficaz. J.
Bidet (1995, p. 1130-135) mostrou que esta construção não
concedia nenhum lugar a um projecto colectivo, e, sobretudo, constituía
uma regressão relativamente ao imperativo categórico kantiano
não enunciando um princípio de acção a favor de uma
melhor justiça imediata. Além disso, segundo J.M. Harribey
(1997), a noção rawlsiana de bens sociais primeiros, que incide
nos direitos e liberdades garantidos a todos, deveria, a fim de ter um alcance
real, ser estendida ao direito ao acesso aos recursos naturais e ao direito ao
acesso aos empregos que condicionam o acesso aos recursos produzidos.
A segunda exigência
prende-se com a definição dos direitos de propriedade colectivos
que hoje faz cruelmente falta tanto a uma refundação de um
projecto socialista como à emergência de um projecto ecologista e,
evidentemente, a um projecto eco-socialista. O fracasso dos colectivismos
ou dos capitalismos de Estado, por um lado, e a
imputação das degradações da natureza à
ausência da propriedade privada desta, por outro, obstam à
reflexão sobre as formas que poderia tomar a propriedade colectiva dos
bens que pertencem à humanidade na sua totalidade como o ar, a
água e todos os recursos que condicionam a vida. As análises do
economista neoclássico Ronald Coase (1960) a propósito da
inatauração de direitos de propriedade privada sobre a natureza e
as do biólogo Garret Hardin (1968) sobre as
enclosures
procedem a uma assimilação abusiva da propriedade colectiva
à não-propriedade. As propostas para se fundar novos direitos
colectivos no presente e no futuro ainda vão no enunciado de
princípios: assim, E. Leff (1999, p. 99-100) fala de direitos de
propriedade colectivos sobre a natureza que permitam a
reconstrução dos processos de produção
comunitários, estabelecidos no respeito da autonomia cultural e no
quadro de movimentos sociais.
Se a elaboração
de uma teoria da justiça e de uma teoria dos direitos de propriedade
colectivos se revela difícil, há um ponto cuja
teorização é mais fácil embora a sua
aplicação seja delicada. Diz ele respeito à terceira
exigência para ligar ecologia e justiça social: a partilha dos
ganhos de produtividade e a sua afectação prioritária
à diminuição da duração do trabalho para
melhorar a qualidade de vida, em detrimento do crescimento perpétuo da
produção, desde que as necessidades materiais essenciais estejam
satisfeitas. Observar-se-á que, nessa perspectiva, se trata novamente
de uma reapropriação colectiva, desta vez da riqueza criada,
através da reconquista do tempo de que o capitalismo se tinha apropriado
desde a aurora da revolução industrial. Domínio do seu
tempo de vida por cada ser humano e respeito do tempo que conduziu ao
desenvolvimento e à complexificação dos sistemas vivos,
tais são precisamente os dois termos inseparáveis de uma ecologia
política marxiana.
[13]
Nem a crise ecológica
sucedeu à questão social pois estão
ligadas , nem a ecologia política suplantou o marxismo enquanto
instrumento de análise do capitalismo e enquanto projecto
político. A ecologia política não nasce do nada e
é herdeira de perto de dois séculos de lutas sociais contra a
exploração e a alienação. Como o mostrou A. Gorz
(1991), a ecologia inscreve-se na continuidade da história
operária em dois planos: o da reivindicação de
justiça social e o da contestação da racionalidade
económica capitalista; mas afasta-se dela quanto à adesão
ao mito do progresso material infinito. É a razão pela qual,
inversamente, o marxismo tradicional não esgota as questões
postas pela evolução das sociedades modernas.
No plano epistemológico,
o encontro entre a teoria materialista de Marx e a ecologia política
apoia-se na recusa de um método individualista. O individualismo
metodológico choca com a dificuldade ontológica
intransponível de ter em consideração as
gerações futuras, escreve J. Martinez-Alier (1992-a,
p.23-24). A abordagem sócio-histórica da vida dos homens
é holista e o conceito de biosfera é também holista. As
relações sociais como as interacções na biosfera
são vistas de maneira dialéctica. A construção de
uma ecologia política marxiana ou de um marxismo ecológico
vingará, se lograrmos ultrapassar a fetichização das
relações do homem com a natureza desligadas das
relações sociais. Dois escolhos, espelhos um do outro,
são então de evitar: por um lado, o que Jean-Pierre Garnier
(1994, p.300) chama a naturalização das
contradições sociais (versão de um ecologismo
mitigado que negaria a lógica da acumulação do capital e
as suas consequências sobre a maneira como os homens se apropriam da
natureza), e, por outro, a socialização das
contradições da destruição da natureza
(versão de um marxismo trivial que se teria deixado ficar pela ideia de
que apenas as relações de propriedade pervertem o uso da
técnica e da natureza).
De negativo, pode-se mesmo
dizer que o marxismo e a ecologia política apresentam defeitos
gémeos: por exemplo, à inclinação do marxismo para
uma gestão centralizada da sociedade responde a crença de um H.
Jonas na eficácia de um poder autoritário para adoptar e impor
medidas de salvaguarda, ou, ainda, o marxismo e a ecologia são um e
outro atravessados por numerosas correntes e possuem os seus fundamentalistas
respectivos.
Enfim, uma dificuldade
considerável fica por resolver no rumo de um paradigma ecológico
marxiano: que forças sociais são susceptíveis de gerar um
projecto maioritário democrático de transformação
da sociedade para avançar no sentido de maior justiça em
relação às classes mais desfavorecidas e às
gerações vindouras? J. Martinez-Alier (1992-a, p. 25-26)
avança prudentemente que os movimentos sociais são portadores da
aspiração ecologista pois a polarização da riqueza
agrava os saques sobre os recursos naturais e as reivindicações
sociais visando melhorar as condições de trabalho, de higiene e
de segurança obrigam os capitalistas a integrar certos custos sociais.
Por outro lado, a dimensão internacional da luta anticapitalista pode
encontrar um prolongamento na reivindicação universal de um
planeta onde todos os seres vivos tenham condições para viver.
Isso só se tornará realidade através da
instauração de um direito mundial livremente consentido que seria
um direito a um uso igual, segundo a fórmula de J. Bidet
(1999, p.305).
Costuma-se dizer que o homem
é o único ser vivo que pensa a natureza. É também
o único que pensa a sua organização social e que orienta a
respectiva evolução. Por estas duas razões, cabe-lhe uma
grande responsabilidade que pode constituir a base de um novo humanismo
universalista.
NOTAS
[1]
Ver J. P. Deléage [1992]
[2]
Ver P. Rousset (1994) e J. M. Harribey (1997). Insistimos num ponto
lógico: o capitalismo desenvolve as duas contradições em
conjunto elas são-lhe pois internas , o que não
significa que ele seja o único modo de produção a ter de
encarar a contradição relativamente à natureza, como
veremos mais longe.
[3]
J. Martinez-Alier insiste também noutro lugar (1992-a) no facto de que
o debate entre F. Hayek e O. Lange nos anos 1930 não tinha colocado o
problema da alocação intergeracional dos recursos não
renováveis.
[4]
Ver F. D. Vivien (1994; 1996).
[5]
Por exemplo, M. Husson (2000, p. 141).
[6]
Ver também A. Gorz (1988, p. 142).
[7]
Estamos longe da provocação de M. Husson (2000, p. 72): A
humanidade pode viver sem baleias ou sem tartarugas, como aprendeu a viver sem
dinossauros. O argumento deste outro economista marxista é que
é necessário defender a biodiversidade, não por
razões utilitaristas, mas em nome de valores éticos ou
estéticos. Ora, como é justamente a posição da
maior parte dos ecologistas, a condenação pronunciada por M.
Husson contra estes últimos invalida-se a si mesma. Mas, mais importante
é notar que é ténue a fronteira entre a opinião
expressa atrás por A. Lipietz e a da tendência extrema da ecologia
profunda (deep ecology), donde a dificuldade em conceber um humanismo
consciente da necessidade de respeitar todas as formas de vida, tão
afastado de um antropocentrismo utilitarista para com as outras espécies
vivas como de uma ética normativa não humanista, até
mesmo anti-humanista que seria, diz-nos J. P. Maréchal (1997, p.
176), uma contradição.
[8]
A eco-taxa vem de uma ideia de A. Pigou (1958) que data de 1920 e as
licenças para poluir negociáveis foram teorizadas por R. Coase
(1960) que afirma que a internalização dos efeitos externos pode
ser obtida sem intervenção do Estado que não seja o
simples estabelecimento de direitos de propriedade e unicamente pela
negociação mercantil entre os poluídos e os poluidores,
qualquer que seja a repartição inicial dos direitos entre eles.
[9]
Para uma breve apresentação, ver J. M. Harribey (1998).
[10]
No seio da corrente dita da economia ecológica (Ecological Economics)
e numa perspectiva pós-clássica, ver também M. O'Connor
(1996).
[11]
Depois da adesão do governo francês à proposta de criar
um mercado dos direitos de poluir, reforça-se a oposição
entre aqueles que, como A. Lipietz (1998;1999), lhe são
favoráveis e aqueles que, como M. Husson (2000), os rejeitam
decididamente. Esta oposição será intransponível na
medida em que parece que a utilização de instrumentos
económicos continua possível desde que seja subordinada à
decisão política? A eco-taxa ou o preço do direito de
poluir não podem ser preços de mercado visto que não se
pode avaliar a natureza. A. Lipietz não está em
condições de afirmar que o mercado das licenças de poluir
é o melhor sistema em teoria porque a
teoria
neoclássica é falsa de uma ponta à outra: ela reduz todos
os comportamentos humanos à racionalidade do
homo oeconomicus
; ela procede como se a dificuldade de construir funções de
preferências individuais e colectivas estivesse ultrapassada; ela ignora
a interdependência entre as decisões dos agentes; ela silencia o
facto de estar hoje demonstrado que a existência de externalidades impede
o sistema concorrencial de ser um optimum de Pareto e de a
impossibilidade de atribuir um preço à natureza proibir o
restabelecimento desse optimum por uma simples eco-taxa ou uma
licença de poluir mercantil; ela considera os factores de
produção incluindo os factores naturais como
continuamente substituíveis; e ela confunde o valor de uso e o valor de
troca.
[12]
Nada se diz, claro, da chamada teoria do valor-utilidade defendida pela
economia neoclássica pois ela não é sequer uma teoria do
valor das mercadorias, mas simplesmente uma legitimação da
apropriação deste último.
[13]
Numerosos teóricos exploraram esta via; poder-se-á consultar
A. Lipietz (1993) e J. M. Harribey (1997). J. Becker e W. G. Raza (2000)
tentaram integrar teoria da regulação e ecologia política.
[*]
Professor na Universidade de Montesquieu- Bordeaux IV, França.
Sítio web pessoal em
http://harribey.montesquieu.u-bordeaux.fr/
. Este artigo faz parte do Dictionnaire Marx contemporain
(sob a direcção de Bidet J., Kouvélakis), Paris, PUF,
Actuel Marx
Confrontation, 2001, p.
183-200. Tradução de Fernando Ic. Martins.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
|