GATS: a última fronteira da globalização

por Maude Barlow [*]

Um acordo global está a ser negociado para permitir às empresas transnacionais apoderarem-se dos serviços públicos de todo o mundo — independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor, isso significará a extinção do sector público. Maude Barlow explica porque tal acordo deve de ser travado.

Maude Barlow Se você fosse boliviano saberia porque é que o mundo se deve preocupar com o GATS (General Agreement on Trade in Services, Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços). Volte atrás no tempo, até à Primavera de 2000 na cidade de Cochabamba.

Sob pressão do Banco Mundial, o governo boliviano acabara de vender o sistema de serviço público de água da cidade a uma corporação norte-americana. Isso fazia parte do programa do Banco Mundial para "dinamizar" a economia boliviana — por outras palavras, abri-la às corporações sediadas no ocidente. Tudo isto — assegurava-se aos bolivianos — em nome da eficiência económica.

As pessoas de Cochabamba logo descobriram o que significava tal eficiência. Poucas semanas depois de a bandeira daquela corporação ter sido hasteada sobre o que fora um serviço público, as tarifas de água aumentaram brutalmente. A muitas das famílias camponesas em Cochabamba foi exigido que pagassem mais de um terço dos seus salários pela água que consumiam — mais do que gastavam com comida. Os encargos eram extremamente gravosos e não havia qualquer alternativa — até recolher água da chuva para beber tornou-se ilegal.

As queixas não tiveram efeito na companhia de águas, cuja finalidade era agora o lucro e não o atendimento de uma necessidade básica. Então a população de Cochabamba saiu às ruas. Em Abril, centenas de pessoas, e depois milhares, uniram-se em manifestações contra a privatização deste recurso básico. Quatro dias de greves levaram a cidade à paralisação. O governo cedeu e prometeu baixar as taxas de água. Logo em seguida eles mudaram de ideia. Os protestos recomeçaram, e cresceram. Foi usado gás lacrimogéneo e decretada a lei marcial. Cochabamba caiu no caos. Mesmo assim o governo e a companhia recusavam-se a ceder. Líderes dos protestos foram cercados à noite. Veículos de comunicação de massa dissidentes foram fechados. Os lucros de uma corporação estrangeira tinham prioridade sobre as necessidades diárias do povo boliviano.

Mas a população não desistiu. Os protestos cresceram ainda mais. Por fim, depois de um militar ter disparado no rosto de um jovem de 17 anos por protestar, até o governo percebeu que o jogo havia terminado. Dois dias depois, eles assinaram um acordo estabelecendo o regresso ao controlo público do abastecimento de água da cidade.

Mas poderá ser apenas uma vitória precária. E da próxima vez, por maiores que sejam os protestos, as pessoas estarão a perder o seu tempo.

FAZENDO O SEU CAMINHO

Uns poucos meses antes, na cidade norte-americana de Seattle, o encontro de Novembro de 1999 da Organização Mundial de Comércio (OMC) foi encerrado — também com protestos em massa. Foi, aparentemente, um evento que travou as forças globalizadoras das corporações — pelo menos no momento.

Mas não tão depressa. Alguns meses depois de a fumaça e o spray de pimenta se terem dissipado e os manifestantes, os responsáveis dos governos e os repórteres terem regressado a casa, todo um novo ciclo de colóquios internacionais entrou em curso discretamente, em Genebra. Tiveram lugar sob os auspícios de um acordo pouco conhecido que se chamou Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços (GATS) .

Você provavelmente nunca terá ouvido falar no GATS — poucas pessoas ouviram. É essa a intenção deles. Mas deveria saber o que o GATS irá significar para si. Pois essas negociações estão ainda, silenciosamente, em curso.

O seu propósito é simplesmente tomar de assalto todos os serviços públicos do mundo para que as corporações deles se apoderem — e tornar o próprio conceito de serviço público não só inverosímil, mas provavelmente ilegal.

É exactamente isto o objecto do GATS. Se em Abril de 2000 o GATS já estivesse em vigor, poderia simplesmente ter sido ilegal o governo boliviano renacionalizar a companhia de água de Cochabamba. Boas novas para os lucros das corporações. Más notícias para o povo.

O GATS está a abrir o caminho para as privatizações de serviços públicos através do mundo. Nada será isento — educação, saúde, serviços sociais, serviços postais, museus e bibliotecas, transporte público — tudo será aberto aos interesses das corporações. Todo e qualquer serviço actualmente providenciado pelo Estado em nome do bem público será aberto às corporações privadas e explorado com objectivo de lucro.

O GATS poderia, muito simplesmente, ser a última fronteira da globalização: o fim do conceito fundamental de serviços públicos sem fins lucrativos.

O GATS entrará em vigor em mais de 130 países, silenciosamente, e sem cerimónias, em menos de dois anos. Se não se fizer nada.

O QUE É O GATS?

O Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços é um dos mais de 20 acordos comerciais administrados e impostos pela Organização Mundial de Comércio (OMC, ou WTO na sigla em inglês). O GATS foi estabelecido em 1994, na conclusão do ciclo de debates do "Ciclo Uruguaio" do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade. ou Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), que conduziu à criação da OMC.

O GATS foi um dos acordos comerciais adoptados para inclusão na criação da OMC, em 1995. As negociações deviam começar cinco anos depois com o objectivo de "aumentar progressivamente o nível de liberalização [comercial]". Estas conversações tiveram seguimento conforme o programado em Fevereiro de 2000. O plano é alcançar um acordo final até Dezembro de 2002 – em menos de dois anos.

O mandato do GATS é a “liberalização do comércio de serviços”. Em português claro, isso significa o desmantelamento das barreiras estatais em relação à privatização dos serviços públicos. O seu objectivo é tornar impossível aos Estados administrarem os serviços públicos numa base não lucrativa, sem a participação das companhias privadas. O GATS permitirá à Organização Mundial de Comércio OMC restringir a actuação do Estado sobre o serviço público, através de um conjunto de condicionamentos legalmente vinculativos. Qualquer desobediência por parte do governo às regras da OMC implicará sanções.

Que acontecerá então se o GATS for implementado? Charlene Barshefsky, a representante Comercial dos Estados Unidos, pode dizer-lho. Antes das negociações do GATS começarem, no início do ano passado, ela perguntou ao poderoso grupo de pressão dos Estados Unidos, a Coalizão das Indústrias de Serviços, o que queria que fosse incluído no acordo do GATS. A Comissão Europeia fez o mesmo com a liga das indústrias, o Fórum Europeu de Serviços. Entre elas, as corporações identificaram as seguintes áreas prioritárias para a liberalização comercial: cuidados na área de saúde, área hospitalar, habitação, cuidados odontológicos, cuidados para a infância, serviços para o idoso, educação — primária, secundária e universitária, museus, biblioteca, actividade jurídica, assistência social, arquitectura, energia, serviços de água, serviços de protecção ambiental, imobiliário público, seguros, turismo, serviços postais, transportes públicos, indústria editorial, transmissão e muitos outros.

As implicações disto são arrepiantes. Isso significa que os 137 países membros da OMC estão concordam em lançar absolutamente todos os seus serviços públicos às “regras” de livre comércio — as mesmas leis que têm permitido à OMC arruinar os cuidados de saúde, a alimentação segura e as leis ambientais em dúzias de países. Estão-se a meter os lobos corporativos dentro do último redil que resta. E depois de entrarem será tarde demais para expulsá-los.

UMA BREVE HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Como pôde isto acontecer? Como puderam os governos permitir esta espoliação dos direitos mais básicos sem mesmo perguntarem — ou informarem — ao seu povo? Para entender a resposta, é necessário voltar às origens do sistema de comércio mundial.

Em 1947 foi criada uma nova organização de comércio — a Organização de Comércio Internacional (ITO, International Trade Organisation) — com um mandato muito diferente da actual OMC. A ITO deveria promover um comércio mundial ordenado sob a jurisdição das Nações Unidas. O exercício de comércio deveria explicitamente levar em conta importantes considerações sociais, incluindo plena empregabilidade, os direitos humanos e sociais garantidos pela Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). A nova ITO até teve competência de regular o capital transnacional para assegurar que ele servisse a estes objectivos sociais.

Mas a ITO foi um natimorto — morta pelos Estados Unidos, que estavam decididos a construir um regime global muito diferente de comércio e investimentos, baseado em menos, e não em mais. regulação; um regime que os beneficiaria a eles próprios, às suas grandes corporações e aos seus interesses internacionais. Assim os Estados Unidos criaram o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), removendo-o da jurisdição das Nações Unidas.

Desde a formação do GATT em 1947, houve oito ciclos de negociações comerciais, centrando-se cada um no desvanecimento gradual dos condicionamentos ao comércio global.

Os seis primeiros ciclos concentraram-se exclusivamente na redução de taxas (tarifas aduaneiras), e o poder crescente do GATT foi largamente ignorado pela sociedade civil.

Mas o sétimo encontro em Tóquio (1973-1979) coincidiu com o aparecimento do chamado "Consenso de Washington" — um modelo global de economia baseado nos princípios de privatização, do mercado livre e da desregulamentação — e o despontar de corporações transnacionais gigantescas, que, por serem já operadores globais, se tinham isentado das regulamentações internas dos estados e queriam também desregulamentação internacional. Estas corporações incluíram gigantescas transnacionais de serviços, sedentas de se apoderar dos monopólios estatais, particularmente em sectores de serviços sociais.

Pela primeira vez, o GATT começou a negociar em "barreiras não-tarifárias" — as regras, políticas e práticas de Estado, tais como leis ambientais e serviços sociais de financiamento público que pudessem ter impacto no comércio. O ciclo de negociações do Uruguai (1986-1994) expandiu o âmbito dos conteúdos dramaticamente, aludindo pela primeira vez aos serviços e abrangendo muitas áreas normalmente não associadas ao comércio.

DESPERTA, MUNDO, DESPERTA !

De repente ficou claro para muitas ONGs (Organizações Não Governamentais), advogados de justiça social e ambientalistas que, enquanto eles estiveram ocupados pressionando seus governos e as Nações Unidas, muito do poder que estes anteriormente detinham se havia deslocado silenciosamente para uma nova arena — regimes de comércio global não eleitos e praticamente “invisíveis”.

Os arquitectos da agenda final do encontro no Uruguai queriam instituir um corpo de regras que regessem a economia global — regras que iriam beneficiá-los, e que seriam sustentadas pelos poderes e instrumentos de um governo global. Foi o ciclo do Uruguai que levou à criação da OMC (Organização Mundial de Comércio) — a polícia global para a agenda comercial das corporações ricas. Ao contrário do GATT, que foi efectivamente um contrato entre nações, à OMC foi dada uma "personalidade jurídica" própria. Ela tem um estatuto internacional equivalente ao das Nações Unidas, mas adicionalmente possui enormes poderes para impor-se.

Contrariamente a qualquer outra instituição global, a OMC tem poder legislativo e judiciário para desafiar leis, práticas e políticas de países individuais e revogá-las se forem consideradas "restritivas do mercado". A OMC não contempla quaisquer normas de protecção do trabalho nem dos direitos humanos, assim como não contempla quaisquer princípios sociais ou ambientais. Todas as vezes (sem uma única excepção) que a OMC tem sido usada para combater uma lei de saúde doméstica, de segurança alimentar, de comércio justo ou de meio ambiente a OMC ganhou. Através dos seis últimos anos, as operações da OMC demonstram que ela tem-se tornado o corpo mais poderoso, sigiloso e antidemocrático da Terra, assumindo rapidamente o manto de um governo global e agindo activamente para ampliar os seus poderes e o seu âmbito.

MOLDANDO OS SERVIÇOS

Os serviços públicos já estão em linha para entrar na máquina demolidora das transnacionais da OMC. As corporações globais têm sido tão bem sucedidas em persuadir os governos que os seus objectivos são comuns (que a maximização do lucro das corporações e o bem da sociedade são a uma e a mesma coisa) que o seu acesso a muitas áreas de vida pública já está instituído. Agora querem comer a sobremesa.

Os Serviços são o sector com maior crescimento no comércio internacional, e oferecem excelentes rendimentos para corporações astutas. E de entre os serviços públicos, saúde, educação e abastecimento de água estão identificados como os de maior potencial lucrativo. Os gastos mundiais com serviços de abastecimento de água excedem actualmente em US$ 1 trilião (10 12 ) por ano; em educação eles excedem 2 triliões; e em saúde, excedem 3,5 triliões. Em muitas partes do mundo, o que o GATS vai acelerar já começou, por tentativas.

Os Estados Unidos da América podem sugerir o modelo de desmantelamento dos serviços públicos que o GATS irá desencadear por todo o mundo. Na América, cuidados com a saúde já se tornaram um enorme negócio com corporações gigantes na área da saúde cotadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Rick Scott, presidente do Columbia, a maior corporação hospitalar com fins lucrativos do mundo, afirma claramente que a área de saúde é um negócio, não diferente da indústria de aeroplanos ou de rolamentos de esferas. Tem prometido publicamente destruir todos os hospitais públicos da América do Norte — os médicos, diz ele, não são bons "cidadãos corporativos".

Entretanto, correctoras de investimentos como a Merril Lynch já estão a prever que a educação pública será globalmente privatizadas na próxima década, assim como terá acontecido com a saúde. Dizem que haverá lucros incalculáveis quando isso acontecer. A União Europeia anunciou recentemente que toda escola financiada publicamente na Europa deve ser “participada” por uma empresa privada até o fim da década. A conquista de mercados estrangeiros tem-se tornado uma estratégia comum entre instituições de educação superior em todo o mundo.

Muitos países do "Terceiro Mundo" têm sido forçados a desmantelar as suas infra-estruturas públicas nas últimas décadas sob programas de ajuste estrutural impostos pelo FMI. Para terem acesso à renegociação da dívida, por exemplo, dúzias de países “em desenvolvimento" têm sido obrigados a abandonar os seus programas sociais públicos ao longo dos últimos 20 anos, e a permitir que corporações estrangeiras entrem e vendam os seus "produtos" em educação e saúde aos "clientes" que possam pagar por eles, deixando milhares sem os serviços sociais básicos. Países da América Latina estão actualmente a sofrer uma invasão de empresas dos EUA na área da saúde, e países asiáticos permitem a instalação de filiais de universidades e cadeias de cuidados de saúde estrangeiras. Recentemente, o Banco Mundial tem vindo a forçar os mesmos países a privatizarem seus serviços de abastecimento de água e está a cooperar abertamente com transnacionais de água gigantes como a Vivendi e Suez Lyonnaise des Eaux, para que estas instituam "direitos" de lucro no "Terceiro Mundo".

Agora, através das negociações do GATS, essas corporações exigem regulamentações contratuais globais e irreversíveis garantindo-lhes o acesso à concessão dos serviços públicos em todos os países do mundo. E elas estão a ter êxito. Mais de 40 países, incluindo toda a Europa, inscreveram a educação no domínio do GATS, abrindo seus sectores da educação pública à competição das empresas estrangeiras. Quase 100 países têm feito o mesmo com a saúde. À medida que as negociações progridem, será muito difícil para qualquer país nadar contra a corrente — mesmo se alguns forem suficientemente corajosos para tentar.

O QUE HÁ NO GATS?

O acordo GATS existente — que de modo nenhum está finalizado, e que poderá ficar ainda pior — cobre todos os sectores de serviços e a maior parte das medidas de Estado, incluindo leis, práticas, regulamentos e linhas directrizes, escritas e não escritas. Nenhuma medida de Estado que afecte o comércio em serviços, seja qual for o seu objectivo, mesmo de protecção do meio ambiente ou do consumidor, à cobertura de universal da Segurança Social ou ao cumprimento de normas de trabalho, está acima do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços. Nada público está a salvo.

Essencialmente, o acordo proibiria "discriminação" contra uma corporação estrangeira que se candidatasse a administrar um serviço público — mesmo que esta corporação tivesse maus antecedentes em áreas sociais ou ambientais.

Já foi também acordado que algumas normas existentes da OMC sejam válidas "horizontalmente" para os serviços públicos por toda a parte, tenha a área já sido inscrita no GATS ou não. Uma destas regras "horizontais" é "nação mais favorecida", que diz que uma vez que corporações de outro país estejam operando no seu mercado, é preciso permitir que corporações de todos os outros países entrem também. Esta regra será valida para todos os serviços, mesmo aqueles ainda protegidos em alguns países, como saúde e educação. Similarmente, sob a regra horizontal, todos os regulamentos em qualquer sector, incluindo serviços sociais, devem ser "menos comercialmente restritivos" — traduzindo, todos os serviços públicos - mesmo o do bem-estar social — terão que funcionar com os mecanismos de mercado.

Defensores do GATS insistem que seus oponentes estão histéricos. Não há nada com que se preocupar, dizem eles. Apontam para a "isenção" no âmbito do Acordo Geral para alguns serviços sociais providenciados pelos Estados. Alguns países, dirão eles, já reivindicaram isenções para seus programas de Segurança Social financiados por fundos públicos. Mas não é assim tão simples. Sob o artigo 1.3C do GATS, para que um serviço seja considerado sob a autoridade do governo, ele tem que ser provido "inteiramente grátis". O que significa que o serviço em questão deve ser completamente financiado pelo governo e não ter nenhum propósito comercial. Como quase nenhum sector de serviços no mundo é inteiramente grátis, esta isenção perde quase totalmente o sentido.

QUE É PROPOSTO PARA O GATS ?

No seu novo livro 'GATS, Como as novas negociações da OMC sobre serviços ameaçam a Democracia' , o investigador canadiano Scott Sinclair identifica as três prioridades do corrente bloco de negociações.

Primeira: Os funcionários do GATS tentarão expandir o acesso das corporações aos mercados nacionais. Os governos serão fortemente pressionados a inscreverem um número maior dos seus serviços e a isentarem menos. A arma mais poderosa será a tensão para a prática horizontal do “Tratamento Nacional”. O “Tratamento Nacional” é um dogma fundamental do mercado livre; proíbe os Estados de protegerem seus os sectores nacionais em relação a empresas sediadas no estrangeiro. O "Tratamento Nacional", é já valido para certos serviços no GATS; a meta é aplicá-lo a todas as actividades e todos os países, sem excepção, sem limitações de fronteiras. Além disso, os poderosos países ocidentais irão pressionar pela introdução de cláusulas mais vinculativas de "acessibilidade de mercado", compelindo os países "em desenvolvimento" a garantir o acesso irreversível aos seus mercados, e a reduzir a autoridade do Estado democrático.

Segunda: os funcionários do GATS esforçam-se por impor severas restrições às regulamentações nacionais, limitando deste modo as competências dos Estados na promulgação de normas nas áreas de ambiente, de saúde, e outras que estorvem o livre comércio. O artigo VI:4 exige o desenvolvimento de quaisquer "disciplinas necessárias" para assegurar que "medidas relativas a exigências e procedimentos de qualificação, normas técnicas e exigências de licenciadores não constituam barreiras desnecessárias ao comércio". Traduzindo: Não deixe que seus malditos padrões nacionais se metam no caminho dos lucros das corporações estrangeiras. Esta cláusula seria também aplicável horizontalmente. Os Estados seriam compelidos a demonstrar a "necessidade" dos seus regulamentos, normas e leis para alcançar um objectivo sancionado pela OMC, e ainda a inexistência de outra alternativa menos restritiva do comércio.

E terceira: As novas negociações visam desenvolver novas regras e restrições do GATS, destinadas a restringir ainda mais o uso de subsídios do Estado, tais como os usados nas obras públicas, serviços municipais e programas sociais. Um desenvolvimento particularmente ameaçador é a exigência da amplificação das aparentemente brandas regras de "Presença Comercial". A "Presença Comercial" permite que um "investidor" num país do GATS estabeleça presença em qualquer outro país do GATS e compita, não só por negócios contra fornecedores nacionais, mas também ao financiamento público, contra instituições e serviços nacionais dotados pelo orçamento público.

Em conjunto, estas propostas irão aumentar extraordinariamente o poder da OMC sobre as atribuições correntes dos Estados. Elas tornarão praticamente impossível o exercício do controle democrático sobre o futuro dos serviços públicos básicos.

COMO O GATS IRÁ AFECTÁ-LO

O GATS irá afectar todas as facetas da vida pública. Todos os países do mundo estão já a sofrer uma transformação fundamental em consequência da globalização. A riqueza flui para cima, ampliando o abismo económico entre os beneficiários do sistema e uma subclasse cada vez maior.

Para assegurar o que o pedagogo americano Jonathan Kozol designa como a "sobrevivência dos filhos dos mais adaptados" (Survival of the Children of the Fittest) , estão-se a tornar regra em todo o mundo sistemas de educação e de Segurança Social segregativos, enquanto abandonamos colectivamente o antigo sonho de direitos universais. Estamos a criar escolas de ponta e cuidados de saúde para a elite do mundo e um sistema segregativo —ou simplesmente sistema nenhum — para aqueles que não contam.

O GATS serve esta visão da sociedade mercantilista e orientada para o lucro. É importante entender, em termos prosaicos, o que está em jogo.

Sob o regime proposto pelo GATS, as empresas estrangeiras de saúde e educação poderão estabelecer-se em qualquer país da OMC. Terão o direito de competir por dinheiro público com instituições públicas como hospitais e escolas. As normas para profissionais de saúde e de educação serão sujeitas às regras da OMC para assegurar que eles não são um "impedimento para o comércio". A autorização de conferir graus académicos será dada a corporações educacionais sediadas no estrangeiro. Serviços de telemedicina (virtual) com sede no exterior tornar-se-ão legais. E os países não serão capazes de parar a competição transfronteiriça de profissionais da saúde e da educação de baixo custo.

A divisão de serviços da OMC já contratou uma companhia privada chamada Global Alliance for Transnational Education para documentar políticas mundiais que "discriminem contra provedores educacionais estrangeiros". Os resultados deste "estudo" serão usados para compelir os países que ainda detêm um sector de educação pública a cedê-lo ao mercado global.

Perturbadoramente, o GATS também inclui autoridade sobre "Serviços Ambientais" e protecção a recursos naturais. Os nossos parques, vida selvagem, sistemas fluviais e florestas poderiam tornar-se áreas de competição se corporações transnacionais globais de "Serviço Ambiental" requeressem o modelo competitivo para sua "gestão". puericultura (child care) ávidas de lucro invadiriam todos os países, assim como redes de presídios como Wackenhut, com sua reputação por violência e abuso dos prisioneiros e dos trabalhadores. Teria que ser dado a empresas estrangeiras acesso praticamente ilimitado a concessões municipais em construção civil, esgotos, colecta de lixo, saneamento, turismo e abastecimento de água.

Simplesmente, os "bens comuns", ou o que restou deles, serão completamente tomados de assalto se o GATS entrar em vigor. O que era património comum, como sementes e genes, ar e água, cultura e herança cultural, saúde e educação, será retalhado para comercialização, será privatizado e vendido aos que oferecerem mais no mercado livre. Países como o Canadá e França, que têm (e prezam) sistemas nacionais universais de saúde e educação, irão perdê-los. Para países como Grã-Bretanha e Chile, que já tiveram programas sociais universais, ou os Estados Unidos, que nunca tiveram serviço público de saúde, desvanece-se a possibilidade de um modelo público no futuro, assim como a países como a Índia e a África do Sul, que actualmente lutam para assegurar tais direitos aos seus cidadãos.

Um alto funcionário da OMC nos EUA fez talvez o melhor resumo do objectivo último deste exercício, afirmando sem rodeios sobre o processo GATS/OMC: "Basicamente, ele não irá parar até que finalmente os estrangeiros comecem a pensar como americanos, agir como americanos e — sobretudo — a comprar como americanos".

O QUE SE PODE FAZER

Se se quiser derrotar GATS, não há de facto tempo a perder. O mundo precisa de acordar — e rápido — para o que está a ser feito nas suas costas. Precisamos urgentemente de um movimento internacional do género do que se reuniu para combater o MAI (Acordo Multilateral em Investimentos, AMI) e continuou para inviabilizar a rota de Seattle. (Veja abaixo uma lista de grupos e indivíduos que já estão a combater o GATS).

Precisamos de investigar todas as facetas do GATS em cada país, e precisamos de partilhar esse conhecimento. Precisamos de formar frentes comuns em cada país, incluindo os principais sectores envolvidos — educadores, profissionais da saúde e advogados, sindicatos do sector público, ambientalistas, agricultores, escritores e artistas, povos indígenas, e outros. Precisamos de solidariedade, cooperação e rapidez.

Precisamos de "Zonas livres do GATS" em universidades e em escolas secundárias, igrejas e centros comunitários locais. Precisamos de dirigir-nos aos nossos governos e apresentar resoluções locais contra o GATS. Precisamos de escrever cartas aos nossos governos, jornais e nos media alternativos.

Em resumo, devemos fazer do GATS uma palavra conhecida e nada simpática.

Os opositores ao GATS e à sua concepção subjacente deveriam ter três reivindicações básicas: Em primeiro lugar, exigir uma moratória completa nas negociações do GATS e nas cláusulas draconianas do acordo existente, como o assalto à regulamentação nacional. É absolutamente inaceitável que nossos governos se estejam a reunir por trás de portas fechadas a fim de arrasar os nossos direitos em beneficio de suas amigas corporações. Isso deve parar imediatamente, enquanto fazemos o balanço da situação e trazemos este tema ao público. Essencialmente, deveríamos exigir que os “bens comuns" sejam completamente removidos dos acordos de livre comércio.

Em segundo lugar, precisamos de garantias férreas por parte dos nossos governos de que nenhuma negociação futura do GATS impedirá o Estado de providenciar bons serviços públicos aos seus cidadãos. Alem disso, precisamos de um GATS orientado para fortalecer estes programas nacionais através de leis internacionais, e encorajar seu desenvolvimento ao redor do mundo.

Finalmente, devemos mover-nos em direcção a um verdadeiro engajamento público nas regras que governam o comércio internacional. Porque sabemos que os nossos governos não nos irão ouvir porque temos bons argumentos, mas porque somos força política, devemos procurar criar uma democracia global na qual os estados serviriam aos seus cidadãos e honrariam os seus compromissos relativos aos direitos humanos e fiscalização ecológica. Não podemos sentar-nos em silêncio permitindo o comércio dos nossos direitos.

As pessoas de todo o mundo disseram não ao MAI. Um número cada ver maior diz não ao Ciclo do Milénio da OMC. Temos agora de dizer não ao GATS. E temos de ser ouvidos. Não há outra alternativa.

Adenda (Fevereiro/2002):
A agenda GATS acelera-se após a Conferência de Doha.


Até 30 de Junho de 2002, todos os países devem listar seus pedidos para acesso ao mercado de serviços de outros países e em Março de 2003 todos os países deverão dar resposta a cada pretensão.

Todos os acordos estão a ser preparados para serem completados e entrarem em vigor com a conclusão do ciclo GATS, em 2005.

Mas o processo não está isento de problemas. Até agora, dez países opõem-se ao avanço das negociações, e está-se a formar um movimento social internacional a fim de bloquear a trajectória do GATS.

A Our World is not For Sale Network (Rede Nosso Mundo Não Está à Venda) está determinada a expor a agenda real da OMC e reafirmar o direito de cada pessoa na Terra a direitos humanos e sociais e a um ambiente seguro e duradouro.

CONTRA O GATS:

As organizações seguintes estão a fazer activamente campanhas contra o GATS. Entre em contacto com a mais próxima de si e veja como pode participar!
- The Council of Canadians, Ottawa.
- Public Citizen, Washington.
- World Development Movement, Londres.
- Corporate Europe Observatory, Amsterdam.
- Observatoire de la Mondialisation, Sauve 30610, França.
- Third World Network, Penang, Malásia.

[*] Maude Barlow é presidente do Conselho dos Canadianos e uma activista dos direitos dos cidadãos. É autora de vários livros, incluindo MAI: The Multilateral Agreement on Investment and the Threat to Canadian Sovereignty (AMI: O Acordo Multilateral de Investimentos e a ameaça à soberania canadiana) e "Global Showdown: How the New Activists Are Fighting Global Corporate Rule" (Desafio Global: Como os novos activistas lutam contra a dominação global das corporações), em co-autoria com Tony Clarke. A sua autobiografia Confissões de uma canadiana não arrependida foi publicada em 1998.

O original deste artigo encontra-se em http://www.theecologist.org/lastfrontier.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

09/Jan/03