GATS: a última fronteira da globalização
Um acordo global está a ser negociado para permitir às empresas
transnacionais apoderarem-se dos serviços públicos de todo o
mundo independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor, isso
significará a extinção do sector público. Maude
Barlow explica porque tal acordo deve de ser travado.
Se você fosse boliviano saberia porque é que o mundo se deve
preocupar com o GATS (General Agreement on Trade in Services, Acordo Geral
sobre o Comércio de Serviços). Volte atrás no tempo,
até à Primavera de 2000 na cidade de Cochabamba.
Sob pressão do Banco Mundial, o governo boliviano acabara de vender o
sistema de serviço público de água da cidade a uma
corporação norte-americana. Isso fazia parte do programa do
Banco Mundial para "dinamizar" a economia boliviana por outras
palavras, abri-la às corporações sediadas no ocidente.
Tudo isto assegurava-se aos bolivianos em nome da
eficiência económica.
As pessoas de Cochabamba logo descobriram o que significava tal
eficiência. Poucas semanas depois de a bandeira daquela
corporação ter sido hasteada sobre o que fora um serviço
público, as tarifas de água aumentaram brutalmente. A muitas das
famílias camponesas em Cochabamba foi exigido que pagassem mais de um
terço dos seus salários pela água que consumiam
mais do que gastavam com comida. Os encargos eram extremamente gravosos e
não havia qualquer alternativa até recolher água da
chuva para beber tornou-se ilegal.
As queixas não tiveram efeito na companhia de águas, cuja
finalidade era agora o lucro e não o atendimento de uma necessidade
básica. Então a população de Cochabamba saiu
às ruas. Em Abril, centenas de pessoas, e depois milhares, uniram-se em
manifestações contra a privatização deste recurso
básico. Quatro dias de greves levaram a cidade à
paralisação. O governo cedeu e prometeu baixar as taxas de
água. Logo em seguida eles mudaram de ideia. Os protestos
recomeçaram, e cresceram. Foi usado gás lacrimogéneo e
decretada a lei marcial. Cochabamba caiu no caos. Mesmo assim o governo e a
companhia recusavam-se a ceder. Líderes dos protestos foram cercados
à noite. Veículos de comunicação de massa
dissidentes foram fechados. Os lucros de uma corporação
estrangeira tinham prioridade sobre as necessidades diárias do povo
boliviano.
Mas a população não desistiu. Os protestos cresceram ainda
mais. Por fim, depois de um militar ter disparado no rosto de um jovem de 17
anos por protestar, até o governo percebeu que o jogo havia terminado.
Dois dias depois, eles assinaram um acordo estabelecendo o regresso ao controlo
público do abastecimento de água da cidade.
Mas poderá ser apenas uma vitória precária. E da
próxima vez, por maiores que sejam os protestos, as pessoas
estarão a perder o seu tempo.
FAZENDO O SEU CAMINHO
Uns poucos meses antes, na cidade norte-americana de Seattle, o encontro de
Novembro de 1999 da Organização Mundial de Comércio (OMC)
foi encerrado também com protestos em massa. Foi, aparentemente,
um evento que travou as forças globalizadoras das
corporações pelo menos no momento.
Mas não tão depressa. Alguns meses depois de a fumaça e o
spray
de pimenta se terem dissipado e os manifestantes, os responsáveis dos
governos e os repórteres terem regressado a casa, todo um novo ciclo de
colóquios internacionais entrou em curso discretamente, em Genebra.
Tiveram lugar sob os auspícios de um acordo pouco conhecido que se
chamou
Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços (GATS)
.
Você provavelmente nunca terá ouvido falar no GATS poucas
pessoas ouviram. É essa a intenção deles. Mas deveria
saber o que o GATS irá significar para si. Pois essas
negociações estão ainda, silenciosamente, em curso.
O seu propósito é simplesmente tomar de assalto todos os
serviços públicos do mundo para que as corporações
deles se apoderem e tornar o próprio conceito de serviço
público não só inverosímil, mas provavelmente
ilegal.
É exactamente isto o objecto do GATS. Se em Abril de 2000 o GATS
já estivesse em vigor, poderia simplesmente ter sido ilegal o governo
boliviano renacionalizar a companhia de água de Cochabamba. Boas novas
para os lucros das corporações. Más notícias para o
povo.
O GATS está a abrir o caminho para as privatizações de
serviços públicos através do mundo. Nada será
isento educação, saúde, serviços sociais,
serviços postais, museus e bibliotecas, transporte público
tudo será aberto aos interesses das corporações. Todo e
qualquer serviço actualmente providenciado pelo Estado em nome do bem
público será aberto às corporações privadas
e explorado com objectivo de lucro.
O GATS poderia, muito simplesmente, ser a última fronteira da
globalização: o fim do conceito fundamental de serviços
públicos sem fins lucrativos.
O GATS entrará em vigor em mais de 130 países, silenciosamente, e
sem cerimónias, em menos de dois anos. Se não se fizer nada.
O QUE É O GATS?
O Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços é um dos mais
de 20 acordos comerciais administrados e impostos pela
Organização Mundial de Comércio (OMC, ou WTO na sigla em
inglês). O GATS foi estabelecido em 1994, na conclusão do ciclo
de debates do "Ciclo Uruguaio" do GATT (General Agreement on Tariffs
and Trade. ou Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), que conduziu
à criação da OMC.
O GATS foi um dos acordos comerciais adoptados para inclusão na
criação da OMC, em 1995. As negociações deviam
começar cinco anos depois com o objectivo de "aumentar
progressivamente o nível de liberalização
[comercial]". Estas conversações tiveram seguimento conforme
o programado em Fevereiro de 2000. O plano é alcançar um acordo
final até Dezembro de 2002 em menos de dois anos.
O mandato do GATS é a liberalização do
comércio de serviços. Em português claro, isso
significa o desmantelamento das barreiras estatais em relação
à privatização dos serviços públicos. O seu
objectivo é tornar impossível aos Estados administrarem os
serviços públicos numa base não lucrativa, sem a
participação das companhias privadas. O GATS permitirá
à Organização Mundial de Comércio OMC restringir a
actuação do Estado sobre o serviço público,
através de um conjunto de condicionamentos legalmente vinculativos.
Qualquer desobediência por parte do governo às regras da OMC
implicará sanções.
Que acontecerá então se o GATS for implementado? Charlene
Barshefsky, a representante Comercial dos Estados Unidos, pode dizer-lho.
Antes das negociações do GATS começarem, no início
do ano passado, ela perguntou ao poderoso grupo de pressão dos Estados
Unidos, a Coalizão das Indústrias de Serviços, o que
queria que fosse incluído no acordo do GATS. A Comissão Europeia
fez o mesmo com a liga das indústrias, o Fórum Europeu de
Serviços. Entre elas, as corporações identificaram as
seguintes áreas prioritárias para a liberalização
comercial: cuidados na área de saúde, área hospitalar,
habitação, cuidados odontológicos, cuidados para a
infância, serviços para o idoso, educação
primária, secundária e universitária, museus, biblioteca,
actividade jurídica, assistência social, arquitectura, energia,
serviços de água, serviços de protecção
ambiental, imobiliário público, seguros, turismo, serviços
postais, transportes públicos, indústria editorial,
transmissão e muitos outros.
As implicações disto são arrepiantes. Isso significa que
os 137 países membros da OMC estão concordam em lançar
absolutamente todos os seus serviços públicos às
regras de livre comércio as mesmas leis que têm
permitido à OMC arruinar os cuidados de saúde, a
alimentação segura e as leis ambientais em dúzias de
países. Estão-se a meter os lobos corporativos dentro do
último redil que resta. E depois de entrarem será tarde demais
para expulsá-los.
UMA BREVE HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO
Como pôde isto acontecer? Como puderam os governos permitir esta
espoliação dos direitos mais básicos sem mesmo perguntarem
ou informarem ao seu povo? Para entender a resposta, é
necessário voltar às origens do sistema de comércio
mundial.
Em 1947 foi criada uma nova organização de comércio
a Organização de Comércio Internacional (ITO,
International Trade Organisation) com um mandato muito diferente da
actual OMC. A ITO deveria promover um comércio mundial ordenado sob a
jurisdição das Nações Unidas. O exercício
de comércio deveria explicitamente levar em conta importantes
considerações sociais, incluindo plena empregabilidade, os
direitos humanos e sociais garantidos pela Declaração dos
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU). A nova ITO até teve competência de regular o capital
transnacional para assegurar que ele servisse a estes objectivos sociais.
Mas a ITO foi um natimorto morta pelos Estados Unidos, que estavam
decididos a construir um regime global muito diferente de comércio e
investimentos, baseado em menos, e não em mais. regulação;
um regime que os beneficiaria a eles próprios, às suas grandes
corporações e aos seus interesses internacionais. Assim os
Estados Unidos criaram o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade),
removendo-o da jurisdição das Nações Unidas.
Desde a formação do GATT em 1947, houve oito ciclos de
negociações comerciais, centrando-se cada um no desvanecimento
gradual dos condicionamentos ao comércio global.
Os seis primeiros ciclos concentraram-se exclusivamente na
redução de taxas (tarifas aduaneiras), e o poder crescente do
GATT foi largamente ignorado pela sociedade civil.
Mas o sétimo encontro em Tóquio (1973-1979) coincidiu com o
aparecimento do chamado "Consenso de Washington" um modelo
global de economia baseado nos princípios de privatização,
do mercado livre e da desregulamentação e o despontar de
corporações transnacionais gigantescas, que, por serem já
operadores globais, se tinham isentado das regulamentações
internas dos estados e queriam também desregulamentação
internacional. Estas corporações incluíram gigantescas
transnacionais de serviços, sedentas de se apoderar dos
monopólios estatais, particularmente em sectores de serviços
sociais.
Pela primeira vez, o GATT começou a negociar em "barreiras
não-tarifárias" as regras, políticas e
práticas de Estado, tais como leis ambientais e serviços sociais
de financiamento público que pudessem ter impacto no comércio. O
ciclo de negociações do Uruguai (1986-1994) expandiu o
âmbito dos conteúdos dramaticamente, aludindo pela primeira vez
aos serviços e abrangendo muitas áreas normalmente não
associadas ao comércio.
DESPERTA, MUNDO, DESPERTA !
De repente ficou claro para muitas ONGs (Organizações Não
Governamentais), advogados de justiça social e ambientalistas que,
enquanto eles estiveram ocupados pressionando seus governos e as
Nações Unidas, muito do poder que estes anteriormente detinham se
havia deslocado silenciosamente para uma nova arena regimes de
comércio global não eleitos e praticamente
invisíveis.
Os arquitectos da agenda final do encontro no Uruguai queriam instituir um
corpo de regras que regessem a economia global regras que iriam
beneficiá-los, e que seriam sustentadas pelos poderes e instrumentos de
um governo global. Foi o ciclo do Uruguai que levou à
criação da OMC (Organização Mundial de
Comércio) a polícia global para a agenda comercial das
corporações ricas. Ao contrário do GATT, que foi
efectivamente um contrato entre nações, à OMC foi dada uma
"personalidade jurídica" própria. Ela tem um estatuto
internacional equivalente ao das Nações Unidas, mas
adicionalmente possui enormes poderes para impor-se.
Contrariamente a qualquer outra instituição global, a OMC tem
poder legislativo e judiciário para desafiar leis, práticas e
políticas de países individuais e revogá-las se forem
consideradas "restritivas do mercado". A OMC não contempla
quaisquer normas de protecção do trabalho nem dos direitos
humanos, assim como não contempla quaisquer princípios sociais ou
ambientais. Todas as vezes (sem uma única excepção) que a
OMC tem sido usada para combater uma lei de saúde doméstica, de
segurança alimentar, de comércio justo ou de meio ambiente a OMC
ganhou. Através dos seis últimos anos, as operações
da OMC demonstram que ela tem-se tornado o corpo mais poderoso, sigiloso e
antidemocrático da Terra, assumindo rapidamente o manto de um governo
global e agindo activamente para ampliar os seus poderes e o seu âmbito.
MOLDANDO OS SERVIÇOS
Os serviços públicos já estão em linha para entrar
na máquina demolidora das transnacionais da OMC. As
corporações globais têm sido tão bem sucedidas em
persuadir os governos que os seus objectivos são comuns (que a
maximização do lucro das corporações e o bem da
sociedade são a uma e a mesma coisa) que o seu acesso a muitas
áreas de vida pública já está instituído.
Agora querem comer a sobremesa.
Os Serviços são o sector com maior crescimento no comércio
internacional, e oferecem excelentes rendimentos para corporações
astutas. E de entre os serviços públicos, saúde,
educação e abastecimento de água estão
identificados como os de maior potencial lucrativo. Os gastos mundiais com
serviços de abastecimento de água excedem actualmente em US$ 1
trilião (10
12
) por ano; em educação eles excedem 2 triliões; e em
saúde, excedem 3,5 triliões. Em muitas partes do mundo, o que o
GATS vai acelerar já começou, por tentativas.
Os Estados Unidos da América podem sugerir o modelo de desmantelamento
dos serviços públicos que o GATS irá desencadear por todo
o mundo. Na América, cuidados com a saúde já se tornaram
um enorme negócio com corporações gigantes na área
da saúde cotadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Rick Scott,
presidente do Columbia, a maior corporação hospitalar com fins
lucrativos do mundo, afirma claramente que a área de saúde
é um negócio, não diferente da indústria de
aeroplanos ou de rolamentos de esferas. Tem prometido publicamente destruir
todos os hospitais públicos da América do Norte os
médicos, diz ele, não são bons "cidadãos
corporativos".
Entretanto, correctoras de investimentos como a Merril Lynch já
estão a prever que a educação pública será
globalmente privatizadas na próxima década, assim como
terá acontecido com a saúde. Dizem que haverá lucros
incalculáveis quando isso acontecer. A União Europeia anunciou
recentemente que toda escola financiada publicamente na Europa deve ser
participada por uma empresa privada até o fim da
década. A conquista de mercados estrangeiros tem-se tornado uma
estratégia comum entre instituições de
educação superior em todo o mundo.
Muitos países do "Terceiro Mundo" têm sido
forçados a desmantelar as suas infra-estruturas públicas nas
últimas décadas sob programas de ajuste estrutural impostos pelo
FMI. Para terem acesso à renegociação da dívida,
por exemplo, dúzias de países em desenvolvimento"
têm sido obrigados a abandonar os seus programas sociais públicos
ao longo dos últimos 20 anos, e a permitir que corporações
estrangeiras entrem e vendam os seus "produtos" em
educação e saúde aos "clientes" que possam pagar
por eles, deixando milhares sem os serviços sociais básicos.
Países da América Latina estão actualmente a sofrer uma
invasão de empresas dos EUA na área da saúde, e
países asiáticos permitem a instalação de filiais
de universidades e cadeias de cuidados de saúde estrangeiras.
Recentemente, o Banco Mundial tem vindo a forçar os mesmos países
a privatizarem seus serviços de abastecimento de água e
está a cooperar abertamente com transnacionais de água gigantes
como a Vivendi e Suez Lyonnaise des Eaux, para que estas instituam
"direitos" de lucro no "Terceiro Mundo".
Agora, através das negociações do GATS, essas
corporações exigem regulamentações contratuais
globais e irreversíveis garantindo-lhes o acesso à
concessão dos serviços públicos em todos os países
do mundo. E elas estão a ter êxito. Mais de 40 países,
incluindo toda a Europa, inscreveram a educação no domínio
do GATS, abrindo seus sectores da educação pública
à competição das empresas estrangeiras. Quase 100
países têm feito o mesmo com a saúde. À medida que
as negociações progridem, será muito difícil para
qualquer país nadar contra a corrente mesmo se alguns forem
suficientemente corajosos para tentar.
O QUE HÁ NO GATS?
O acordo GATS existente que de modo nenhum está finalizado, e que
poderá ficar ainda pior cobre todos os sectores de
serviços e a maior parte das medidas de Estado, incluindo leis,
práticas, regulamentos e linhas directrizes, escritas e não
escritas. Nenhuma medida de Estado que afecte o comércio em
serviços, seja qual for o seu objectivo, mesmo de
protecção do meio ambiente ou do consumidor, à cobertura
de universal da Segurança Social ou ao cumprimento de normas de
trabalho, está acima do Acordo Geral sobre o Comércio de
Serviços. Nada público está a salvo.
Essencialmente, o acordo proibiria "discriminação"
contra uma corporação estrangeira que se candidatasse a
administrar um serviço público mesmo que esta
corporação tivesse maus antecedentes em áreas sociais ou
ambientais.
Já foi também acordado que algumas normas existentes da OMC sejam
válidas "horizontalmente" para os serviços
públicos por toda a parte, tenha a área já sido inscrita
no GATS ou não. Uma destas regras "horizontais" é
"nação mais favorecida", que diz que uma vez que
corporações de outro país estejam operando no seu mercado,
é preciso permitir que corporações de todos os outros
países entrem também. Esta regra será valida para todos os
serviços, mesmo aqueles ainda protegidos em alguns países, como
saúde e educação. Similarmente, sob a regra horizontal,
todos os regulamentos em qualquer sector, incluindo serviços sociais,
devem ser "menos comercialmente restritivos" traduzindo, todos
os serviços públicos - mesmo o do bem-estar social
terão que funcionar com os mecanismos de mercado.
Defensores do GATS insistem que seus oponentes estão histéricos.
Não há nada com que se preocupar, dizem eles. Apontam para a
"isenção" no âmbito do Acordo Geral para alguns
serviços sociais providenciados pelos Estados. Alguns países,
dirão eles, já reivindicaram isenções para seus
programas de Segurança Social financiados por fundos públicos.
Mas não é assim tão simples. Sob o artigo 1.3C do GATS,
para que um serviço seja considerado sob a autoridade do governo, ele
tem que ser provido "inteiramente grátis". O que significa
que o serviço em questão deve ser completamente financiado pelo
governo e não ter nenhum propósito comercial. Como quase nenhum
sector de serviços no mundo é inteiramente grátis, esta
isenção perde quase totalmente o sentido.
QUE É PROPOSTO PARA O GATS ?
No seu novo livro
'GATS, Como as novas negociações da OMC sobre serviços
ameaçam a Democracia'
, o investigador canadiano Scott Sinclair identifica as três prioridades
do corrente bloco de negociações.
Primeira: Os funcionários do GATS tentarão expandir o acesso das
corporações aos mercados nacionais. Os governos serão
fortemente pressionados a inscreverem um número maior dos seus
serviços e a isentarem menos. A arma mais poderosa será a
tensão para a prática horizontal do Tratamento
Nacional. O Tratamento Nacional é um dogma fundamental
do mercado livre; proíbe os Estados de protegerem seus os sectores
nacionais em relação a empresas sediadas no estrangeiro. O
"Tratamento Nacional", é já valido para certos
serviços no GATS; a meta é aplicá-lo a todas as
actividades e todos os países, sem excepção, sem
limitações de fronteiras. Além disso, os poderosos
países ocidentais irão pressionar pela introdução
de cláusulas mais vinculativas de "acessibilidade de mercado",
compelindo os países "em desenvolvimento" a garantir o acesso
irreversível aos seus mercados, e a reduzir a autoridade do Estado
democrático.
Segunda: os funcionários do GATS esforçam-se por impor severas
restrições às regulamentações nacionais,
limitando deste modo as competências dos Estados na
promulgação de normas nas áreas de ambiente, de
saúde, e outras que estorvem o livre comércio. O artigo VI:4
exige o desenvolvimento de quaisquer "disciplinas necessárias"
para assegurar que "medidas relativas a exigências e procedimentos
de qualificação, normas técnicas e exigências de
licenciadores não constituam barreiras desnecessárias ao
comércio". Traduzindo: Não deixe que seus malditos
padrões nacionais se metam no caminho dos lucros das
corporações estrangeiras. Esta cláusula seria
também aplicável horizontalmente. Os Estados seriam compelidos a
demonstrar a "necessidade" dos seus regulamentos, normas e leis para
alcançar um objectivo sancionado pela OMC, e ainda a inexistência
de outra alternativa menos restritiva do comércio.
E terceira: As novas negociações visam desenvolver novas regras
e restrições do GATS, destinadas a restringir ainda mais o uso de
subsídios do Estado, tais como os usados nas obras públicas,
serviços municipais e programas sociais. Um desenvolvimento
particularmente ameaçador é a exigência da
amplificação das aparentemente brandas regras de
"Presença Comercial". A "Presença Comercial"
permite que um "investidor" num país do GATS estabeleça
presença em qualquer outro país do GATS e compita, não
só por negócios contra fornecedores nacionais, mas também
ao financiamento público, contra instituições e
serviços nacionais dotados pelo orçamento público.
Em conjunto, estas propostas irão aumentar extraordinariamente o poder
da OMC sobre as atribuições correntes dos Estados. Elas
tornarão praticamente impossível o exercício do controle
democrático sobre o futuro dos serviços públicos
básicos.
COMO O GATS IRÁ AFECTÁ-LO
O GATS irá afectar todas as facetas da vida pública. Todos os
países do mundo estão já a sofrer uma
transformação fundamental em consequência da
globalização. A riqueza flui para cima, ampliando o abismo
económico entre os beneficiários do sistema e uma subclasse cada
vez maior.
Para assegurar o que o pedagogo americano Jonathan Kozol designa como a
"sobrevivência dos filhos dos mais adaptados"
(Survival of the Children of the Fittest)
, estão-se a tornar regra em todo o mundo sistemas de
educação e de Segurança Social segregativos, enquanto
abandonamos colectivamente o antigo sonho de direitos universais. Estamos a
criar escolas de ponta e cuidados de saúde para a elite do mundo e um
sistema segregativo ou simplesmente sistema nenhum para aqueles
que não contam.
O GATS serve esta visão da sociedade mercantilista e orientada para o
lucro. É importante entender, em termos prosaicos, o que está em
jogo.
Sob o regime proposto pelo GATS, as empresas estrangeiras de saúde e
educação poderão estabelecer-se em qualquer país da
OMC. Terão o direito de competir por dinheiro público com
instituições públicas como hospitais e escolas. As normas
para profissionais de saúde e de educação serão
sujeitas às regras da OMC para assegurar que eles não são
um "impedimento para o comércio". A autorização
de conferir graus académicos será dada a
corporações educacionais sediadas no estrangeiro. Serviços
de telemedicina (virtual) com sede no exterior tornar-se-ão legais. E os
países não serão capazes de parar a
competição transfronteiriça de profissionais da
saúde e da educação de baixo custo.
A divisão de serviços da OMC já contratou uma companhia
privada chamada Global Alliance for Transnational Education para documentar
políticas mundiais que "discriminem contra provedores educacionais
estrangeiros". Os resultados deste "estudo" serão usados
para compelir os países que ainda detêm um sector de
educação pública a cedê-lo ao mercado global.
Perturbadoramente, o GATS também inclui autoridade sobre
"Serviços Ambientais" e protecção a recursos
naturais. Os nossos parques, vida selvagem, sistemas fluviais e florestas
poderiam tornar-se áreas de competição se
corporações transnacionais globais de "Serviço
Ambiental" requeressem o modelo competitivo para sua
"gestão". puericultura
(child care)
ávidas de lucro invadiriam todos os países, assim como redes de
presídios como Wackenhut, com sua reputação por
violência e abuso dos prisioneiros e dos trabalhadores. Teria que ser
dado a empresas estrangeiras acesso praticamente ilimitado a concessões
municipais em construção civil, esgotos, colecta de lixo,
saneamento, turismo e abastecimento de água.
Simplesmente, os "bens comuns", ou o que restou deles, serão
completamente tomados de assalto se o GATS entrar em vigor. O que era
património comum, como sementes e genes, ar e água, cultura e
herança cultural, saúde e educação, será
retalhado para comercialização, será privatizado e vendido
aos que oferecerem mais no mercado livre. Países como o Canadá e
França, que têm (e prezam) sistemas nacionais universais de
saúde e educação, irão perdê-los. Para
países como Grã-Bretanha e Chile, que já tiveram programas
sociais universais, ou os Estados Unidos, que nunca tiveram serviço
público de saúde, desvanece-se a possibilidade de um modelo
público no futuro, assim como a países como a Índia e a
África do Sul, que actualmente lutam para assegurar tais direitos aos
seus cidadãos.
Um alto funcionário da OMC nos EUA fez talvez o melhor resumo do
objectivo último deste exercício, afirmando sem rodeios sobre o
processo GATS/OMC: "Basicamente, ele não irá parar
até que finalmente os estrangeiros comecem a pensar como americanos,
agir como americanos e sobretudo a comprar como americanos".
O QUE SE PODE FAZER
Se se quiser derrotar GATS, não há de facto tempo a perder. O
mundo precisa de acordar e rápido para o que está a
ser feito nas suas costas. Precisamos urgentemente de um movimento
internacional do género do que se reuniu para combater o MAI (Acordo
Multilateral em Investimentos, AMI) e continuou para inviabilizar a rota de
Seattle. (Veja abaixo uma lista de grupos e indivíduos que já
estão a combater o GATS).
Precisamos de investigar todas as facetas do GATS em cada país, e
precisamos de partilhar esse conhecimento. Precisamos de formar frentes comuns
em cada país, incluindo os principais sectores envolvidos
educadores, profissionais da saúde e advogados, sindicatos do sector
público, ambientalistas, agricultores, escritores e artistas, povos
indígenas, e outros. Precisamos de solidariedade,
cooperação e rapidez.
Precisamos de "Zonas livres do GATS" em universidades e em escolas
secundárias, igrejas e centros comunitários locais. Precisamos de
dirigir-nos aos nossos governos e apresentar resoluções locais
contra o GATS. Precisamos de escrever cartas aos nossos governos, jornais e
nos media alternativos.
Em resumo, devemos fazer do GATS uma palavra conhecida e nada simpática.
Os opositores ao GATS e à sua concepção subjacente
deveriam ter três reivindicações básicas: Em
primeiro lugar, exigir uma moratória completa nas
negociações do GATS e nas cláusulas draconianas do acordo
existente, como o assalto à regulamentação nacional.
É absolutamente inaceitável que nossos governos se estejam a
reunir por trás de portas fechadas a fim de arrasar os nossos direitos
em beneficio de suas amigas corporações. Isso deve parar
imediatamente, enquanto fazemos o balanço da situação e
trazemos este tema ao público. Essencialmente, deveríamos exigir
que os bens comuns" sejam completamente removidos dos acordos de
livre comércio.
Em segundo lugar, precisamos de garantias férreas por parte dos nossos
governos de que nenhuma negociação futura do GATS impedirá
o Estado de providenciar bons serviços públicos aos seus
cidadãos. Alem disso, precisamos de um GATS orientado para fortalecer
estes programas nacionais através de leis internacionais, e encorajar
seu desenvolvimento ao redor do mundo.
Finalmente, devemos mover-nos em direcção a um verdadeiro
engajamento público nas regras que governam o comércio
internacional. Porque sabemos que os nossos governos não nos irão
ouvir porque temos bons argumentos, mas porque somos força
política, devemos procurar criar uma democracia global na qual os
estados serviriam aos seus cidadãos e honrariam os seus compromissos
relativos aos direitos humanos e fiscalização ecológica.
Não podemos sentar-nos em silêncio permitindo o comércio
dos nossos direitos.
As pessoas de todo o mundo disseram não ao MAI. Um número cada
ver maior diz não ao Ciclo do Milénio da OMC. Temos agora de
dizer não ao GATS. E temos de ser ouvidos. Não há outra
alternativa.
Adenda (Fevereiro/2002):
A agenda GATS acelera-se após a Conferência de Doha.
Até 30 de Junho de 2002, todos os países devem listar seus
pedidos para acesso ao mercado de serviços de outros países e em
Março de 2003 todos os países deverão dar resposta a cada
pretensão.
Todos os acordos estão a ser preparados para serem completados e
entrarem em vigor com a conclusão do ciclo GATS, em 2005.
Mas o processo não está isento de problemas. Até agora,
dez países opõem-se ao avanço das
negociações, e está-se a formar um movimento social
internacional a fim de bloquear a trajectória do GATS.
A Our World is not For Sale Network (Rede Nosso Mundo Não Está
à Venda) está determinada a expor a agenda real da OMC e
reafirmar o direito de cada pessoa na Terra a direitos humanos e sociais e a um
ambiente seguro e duradouro.
CONTRA O GATS:
As organizações seguintes estão a fazer activamente
campanhas contra o GATS. Entre em contacto com a mais próxima de si e
veja como pode participar!
- The Council of Canadians, Ottawa.
- Public Citizen, Washington.
- World Development Movement, Londres.
- Corporate Europe Observatory, Amsterdam.
- Observatoire de la Mondialisation, Sauve 30610, França.
- Third World Network, Penang, Malásia.
[*]
Maude Barlow é presidente do Conselho dos Canadianos e uma activista
dos direitos dos cidadãos. É autora de vários livros,
incluindo
MAI: The Multilateral Agreement on Investment and the Threat to Canadian
Sovereignty
(AMI: O Acordo Multilateral de Investimentos e a ameaça à
soberania canadiana) e "Global Showdown: How the New Activists Are
Fighting Global Corporate Rule"
(Desafio Global: Como os novos activistas lutam contra a
dominação global das corporações),
em co-autoria com Tony Clarke. A sua autobiografia
Confissões de uma canadiana não arrependida
foi publicada em 1998.
O original deste artigo encontra-se em
http://www.theecologist.org/lastfrontier.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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