A privatização dos Serviços de Água
PRIVATIZAÇÃO
Está em curso um processo acelerado de privatização dos
serviços de água do abastecimento público, assim
como da drenagem e tratamento de águas residuais.
Esta privatização, designada por concessão,
consiste na entrega dos serviços públicos a empresas privadas
para que os explorem e deles obtenham lucro. A concessão é uma
alienação de direitos de propriedade e de poder de decisão
público, que não deve ser confundida com a
aquisição a privados de um trabalho ou um produto, como, por
exemplo, a operação de uma estação de tratamento de
água ou uma empreitada de construção, que não
são privatizações.
FUNÇÃO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA
A relação das pessoas e a água é muito especial,
muito mais ampla que o ciclo urbano da água. A água é
talvez o vínculo mais forte entre as pessoas e a natureza.
Faz parte de quase tudo o que nos cerca, desde o crescimento das plantas e
animais de que nos alimentamos ao processo de fabrico de quase todos os
produtos que usamos.
Toda a história dos homens e das civilizações está
ligada à água.
A água doméstica é uma percentagem reduzida do
uso humano da água, mas é o âmago desta
relação. O metabolismo dos seres vivos exige a
absorção de quantidades de água, constantemente renovadas,
sem as quais a vida não é possível.
A mesma água tem em geral um período de
residência num ser vivos de algumas horas. Não há
consumo nem apropriação da água, e
a mesma porção de água é reutilizada através
do tempo por seres vivos sucessivos.
A circulação da água é uma circulação
comum a todos os seres vivos, tão vital como a circulação
do sangue.
Na organização actual da sociedade os homens têm de
permanecer ligados à água por um processo artificial. São
os serviços de água.
Aos serviços de água abastecimento e saneamento - chamam
ciclo urbano da água. De facto não é nenhum
ciclo, é uma ligação: - das pessoas, e muito
particularmente do metabolismo humano, ao ciclo hidrológico.
O serviço de abastecimento é a ligação
no sentido da natureza para os homens e o serviço de águas
residuais devolve á natureza a maior parte da
água, que continuará o ciclo da natureza e da vida.
É esta ligação metabólica entre o homem e o ciclo
hidrológico que está a ser entregue para
exploração lucrativa nos contratos de
concessão da água.
O controlo desta ligação dá um poder imenso sobre os
homens. Um poder comparável ao de quem possuísse um interruptor
da máquina cardíaca dos outros homens.
A gestão dos serviços de abastecimento ou dos de
águas residuais tem características e
implicações diferentes:
No
abastecimento
estão em causa principalmente indivíduos, a
sobrevivência e a vida de cada um.
Os indivíduos podem ser desligados da rede, privados do
acesso à água, a quantidade acedida pode ser medida e cobrada.
A cada um é vendido o direito à vida.
Mas a quantidade e qualidade da água, a segurança,
dependem da origem - de uma captação inferior
à renovação da água, da gestão das
actividades humanas e do território na bacia hidrográfica, isto
é, da administração do território e das actividades
humanas.
Nas
águas residuais
, na forma como são tratadas e reinseridas no ciclo
hidrológico, está em causa a reutilização da
água, o meio receptor e o interesse público.
Está em causa a degradação da água do ciclo
hidrológico, da circulação comum dos seres vivos, da
água necessária à produção de alimentos e
às actividades humanas.
É um serviço público no sentido lato, de
interesse comum, que não é passível de ser cobrado
individualmente como mercadoria.
Quando o Estado privatiza os serviços de água vende a uma empresa
o poder de cobrar o direito à vida de cada cidadão e em
simultâneo uma influência importantíssima sobre a
utilização comum da água e do território.
É a venda de um feudo que inclui Homens, Natureza e território,
para que um grupo capitalista os explore e deles obtenha o máximo lucro.
A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA NO MUNDO
A tomada de terreno do poder económico na privatização dos
serviços de água tem sido vertiginosa.
Em 1996 a participação privada no abastecimento público
era apenas residual, concentrada em França e na Inglaterra, um pouco em
Espanha. Em 2001 o Banco Mundial apontava para a gestão/concessão
privada de 5% do abastecimento público do globo e está em
crescimento acelerado.
Concentra-se praticamente em sete grupos económicos, encabeçados
por duas transnacionais de origem francesa - Suez/Lyonaise des Eaux e
ex-Vivendi (ex-Generale des Eaux, CGE). Esta última já instalada
em Portugal, com várias concessões de
abastecimento de água e outros serviços, como, por exemplo a
Transtejo.
Essas transnacionais actuam muito mais em corporação ou
oligopólio que em concorrência. Constituem-se em grupos de
pressão fortíssimos junto dos órgãos de poder
supranacionais, sobretudo os financeiros — Banco Mundial, FMI, GATS, ALCA, UE,
MERCOSUL, etc.
O seu poder tem vindo a crescer extraordinariamente na última
década e dominam, de facto, a política mundial da água.
Fazem parte do Conselho Mundial da Água, que organiza o Forum Mundial da
Água. Junto à UE, a Vivendi e a Suez fazem parte, por exemplo, do
"Forum Europeu dos Serviços" (ESF), acreditado como ONG e
consultado nos processos de decisão, incluindo muitos que não
são submetidos ao Parlamento Europeu.
A privatização dos serviços de água significa uma
enorme cedência de poder político, isto é, do poder de
autodeterminação dos cidadãos, em favor do poder
económico. Este processo tem tido a conivência da maior parte dos
Governos dos países ricos e tem sido imposto aos países com
dívida externa pelo Banco Mundial e FMI assim como pela UE.
A privatização efectiva é ainda minoritária e
está a encontrar resistência na maior parte dos países da
UE, assim como nos EUA e no Canadá. Mas a pressão continua
sobretudo através dos acordos internacionais de comércio e a
Directiva Quadro da Água da UE está a ser um instrumento de
penetração da mercantilização da água.
Muitos Governos que não tiveram ainda força para implementar a
privatização nos seus países, devido à
oposição dos cidadãos, têm sido coniventes e agentes
activos desta legislação.
PORTUGAL
Em Portugal, logo que o Governo PSD/CDS tomou posse anunciou a
intenção de privatizar as Águas de Portugal e tornou
evidente a orientação política de
privatização de todo o sector das águas.
É gravíssimo e iminente, mas não é uma
intenção nova é o culminar de um processo de duas
décadas, conduzido pelos sucessivos Governos e maiorias parlamentares.
Ao contrário de outros países, como a Holanda e a Irlanda, que
garantem o carácter exclusivamente público da água e dos
serviços de água, em Portugal foram sucessivamente removidas as
defesas legais do direito público aos serviços de água.
Esse processo legislativo decorreu essencialmente de 1982 a 1994:
Assim, passou a ser permitido que o Estado alijasse a responsabilidade de
prestar o
serviços de água aos cidadãos, concessionando
("arrendando") a longo prazo as infra-estruturas e os
serviços a empresas privadas para exploração comercial.
Mas os serviços de água são competência
autárquica, e só algumas autarquias concessionaram
voluntáriamente os serviços.
Segue-se um processo de pressão, por parte do Governo, para
forçar as Câmaras renitentes a transferirem para o
Governo as competências e infraestruturas ou, pelo menos, a parte
mais importante, a ligação com o ciclo
hidrológico.
O enquadramento é dado pela legislação sobre os
sistemas multimunicipais (ver quadro 1). É um modelo
administrativo de gestão comum a vários
municípios das componentes com ligação directa ao rio:
captação, tratamento e adução, no abastecimento de
água, ou transporte, tratamento e rejeição, nos sistemas
de águas residuais (designados por ligação em
alta, por analogia com os serviços de electricidade).
A aceitação do modelo de sistema multimunicipal por
um grupo de municípios contíguos transfere para o Governo a
competência sobre essa parte das ligações,
ficando as câmaras apenas com competências sobre as redes
(sistema em baixa - distribuição de água ou
drenagem, conforme os casos).
Associada a cada sistema multimunicipal foi criada uma
empresa a quem é feita a concessão da
exploração do sistema. Essas empresas — Águas do
Douro e Paiva, Águas do Algarve, etc — são
Sociedades Anónimas, em que as Águas de Portugal tem pelo menos
51% das acções. Existem sistemas multimunicipais de
abastecimento ou de águas residuais, ou com ambas as
funções. Também existem para resíduos
sólidos (lixos).
Esta concessão a uma Sociedade Anónima de capitais
públicos designa-se em direito económico por
privatização formal — está pronta
para ser privatizada, pela alienação de cotas. E passa a ser uma
decisão exclusiva do Governo, sem necessitar do consentimento das
Câmaras.
Os Governos (PSD - PS - PSD/CDS) têm vindo a pressionar as Câmaras
intensamente para a adesão aos sistemas multimunicipais.
Os investimentos nos sistemas multimunicipais têm sido
largamente comparticipados pelo Orçamento de Estado e pelo Fundo de
Coesão, cujo acesso é negado, ou muito substancialmente reduzido,
a Autarquias que pretendam manter as competências e o serviço
público.
As Figuras 4, 5 e 6 ilustram os resultados dessa política em
relação ao abastecimento de água. No que diz respeito
às águas residuais o processo é semelhante.
Na figura 4 pode ver-se a evolução do número de concelhos
portugueses abrangidos por sistemas multimunicipais, incluindo os concelhos
servidos pela EPAL (que também é uma sociedade anónima
detida pelas Águas de Portugal).
As figuras 5 e 6 associam a população servida ao tipo de controlo
de capitais das entidades gestoras dos sistemas de abastecimento de
água.
Os sistemas de distribuição de água a 31% da
população portuguesa residente, e a captação,
tratamento e transporte da água que abastece 69% estão incluidos
no lote de privatização das Águas de Portugal. Na Madeira
a IGA SA, cuja maioria do capital é controlado pelo Governo Regional,
tem a concessão de todos os sistemas em alta.
Em paralelo também decorrem vários processos de
privatização de serviços detidos pelas autarquias.
A situação em relação às águas
residuais é semelhante, embora com um ligeiro atraso em
relação ao abastecimento, e tudo isto num processo tão
célere que os dados apresentados estarão já
desactualizados.
APELO
Este resumo muito sumário do panorama da privatização da
água mostra como estamos a ser desligados do ciclo
hidrológico.
O Governo PSD/CDS tem nas mãos um fabuloso negócio e pretende
aproveitar a legislatura para o entregar ao capital. Por 30 ou 40 anos.
Preconizando-se também o aumento da pressão, já muito
intensa, sobre as autarquias até agora resistentes.
É necessária a união de todos os esforços para
travar e reverter o processo em curso.
Porque ainda é tempo.
As leis podem ser alteradas.
E apesar de tudo, a tutela da larga maioria das empresas concessionárias
é do Estado Português.
Os cidadãos em conjunto têm poder democrático para exigir e
impor-se aos órgãos de soberania.
Mas, a partir do momento em que estes alienarem a responsabilidade e a
propriedade, esse poder é perdido. Pode-se reconquistar, mas não
da mesma forma, e é muito mais difícil.
Urge, por isso, agir.
Temos muito pouco tempo.
11 de Junho de 2003
[*]
Engenheira hidráulica. Responsável da "pro-Associação Água
Pública", que está em constituição. A
Associação Água Pública defenderá o acesso
de todas as pessoas à água. Ver
http://aguapublica.no.sapo.pt
____________
NOTAS
Fontes das figuras 1, 2 e 3
Figura 1 (metabolismo humano) e Figura 2 (ligação da
povoação ao meio hídrico)
Dossiers scientifiques Sagascience
L'eau douce CNRS Centre National de la
Research Scientifique (France)
http://www.cnrs.fr/cw/dossiers/doseau/accueil.html
images - schemes et images 3d -
http://www.cnrs.fr/cw/dossiers/doseau/imgArt/troisD.html
Figura 3 (privatização em países em
desenvolvimento) Dados em Karen Bakker, 2002 From
archipelago to network: Urbanization and privatization in the south
http://www.geog.ox.ac.uk/research/wpapers/economic/wpg02-05.htm
Ver também: Halifax Initiative -
Privatization no debt relief for impoverished countries without it
http://www.halifaxinitiative.org/hi.php/General/313
e Sara Grusky , 2001, IMF Forces Water Privatization on Poor Countries
http://www.waternunc.com/gb/ProblemofWater.htm
e
http://www.ratical.org/co-globalize/waterIMF.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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