A calúnia das alegadas "perdas de água" no
abastecimento público
Tem vindo a ser apregoadas percentagens muito altas de "perdas de
água" em sistemas de abastecimento público. É uma
acusação muito grave, mais ainda quando se fazem sentir
intensamente os efeitos da seca. E muita gente acredita.
É propaganda ideológica falsa, que importa desmontar e esclarecer.
1. O que eles chamam "perdas de água"
Usam muito abusivamente a designação de "
perdas de água
" como sinónimo de "
água não facturada
". Chamam "
perdas de água
" à diferença entre o volume de água captada, (ou o
volume de água comprado ao sistema multimunicipal) e o volume de
água
vendido
ao utilizador final. É um
balanço de caixa, um balanço comercial,
que nada tem a ver com o balanço hidráulico nem com o
benefício social.
Acontece que as Autarquias usam água. E muita.
Mais rigorosamente os munícipes e visitantes usam muita
água que não lhes é cobrada.
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Para fornecimento à Câmara e aos serviços
autárquicos,
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Para chafarizes e fontanários públicos,
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Para balneários públicos, escolas, creches, pavilhões
desportivos, bibliotecas da autarquia,
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Para lavagem de ruas, limpeza de edifícios públicos
-
Para manutenção de jardins e espaços públicos
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Para instalações sanitárias públicas
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Para apoios a eventos e feiras municipais
-
Para as bocas de incêndio
-
Para uma enorme quantidade de serviços gratuitos que são
disponibilizados aos munícipes e, naturalmente, precisam de água
e saneamento.
As Câmaras não cobram a água a si próprias
umas medem, outras não, o que não afecta os serviços
prestados mas, naturalmente, não cobram a si próprias,
não tem qualquer sentido emitir facturas, porque essa água
não é cobrada. Note-se que a instalação e
manutenção dos contadores, bem como as rotinas de leitura,
registo e processamento dos dados implicam despesas e encargos administrativos
ao erário municipal "alternativos" a outras
prestações aos munícipes. As Câmaras e SMAS
são entidades de direito público, têm por objectivo o
serviço e a contabilidade é completamente diferente das entidades
de direito privado.
Os concessionários dos serviços privatizados não fornecem
nada gratuitamente cobram cada gota então, as Autarquias
pagam o uso próprio e todos os serviços gratuitos ou esses
são eliminados logo que o concessionário instala o
negócio, como já aconteceu, por exemplo, com os
fontanários em Tondela. Este tem sido mais um dos aspectos das
privatizações ruinosos para as Autarquias.
Só com as cobranças às Autarquias, as
privatizações por concessão originam muito mais
facturação, naturalmente. Facturação ao
serviço público e ao serviço gratuito!
Assim, todas as privatizações formais passagem do direito
público ao direito privado se traduzem em muito mais
facturação.
É o "usado e não facturado" que constitui a mais grossa
fatia daquilo que nos apregoam como "perdas de água".
2. As "perdas reais"
Apresenta-se abaixo a terminologia usada pela
IWA
(Associação Internacional da Água), muito
generalizadamente citada em documentos
técnicos sobre "perdas de água"
Terminologia Standard
Fonte: IWA (International Water Association) (2000)
Sublinha-se que só as
PERDAS REAIS
têm significado físico, de "água que não
cumpriu o seu destino" e voltou à Natureza sem abastecer
ninguém.
As
PERDAS REAIS
são calculadas subtraindo ao
VOLUME ENTRADO NO SISTEMA
o
CONSUMO AUTORIZADO
e as
PERDAS APARENTES.
Mas só as
parcelas medidas
dos consumos autorizados são conhecidas
e as PERDAS APARENTES são problemas jurídico-administrativos,
que só existem enquanto "desconhecidos", porque, logo que
detectados, são eliminados.
Os consumos autorizados não medidos são lícitos e fazem
parte do objectivo social do sistema.
Incluem frequentemente todas as prestações gratuitas já
referidas atrás.
Somam-se ainda casos de utentes com abastecimento de água gratuito e sem
contador, por opção da Autarquia e por razões muito
diversas, entre as quais sobressai a garantia do direito universal à
água em zonas com inviabilidade técnico-económica de
instalar contadores e/ou de assegurar as leituras por exemplo, nalgumas
Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) e noutros casos em que as
características de dispersão populacional, de rede ou de origem
de água não permitem o fornecimento com a pressão
regulamentar ou o cumprimento ininterrupto de todos os parâmetros legais
então, algumas Câmaras optam por fornecer gratuitamente o
"possível".
Assim, uma percentagem muito elevada da utilização social e
fundamental da água está frequentemente "oculta" nos
CONSUMOS LÍCITOS não facturados...
Só seria possível fazer uma avaliação das
PERDAS REAIS
se não houvesse "consumos não medidos" o que exigiria
um sistema muito completo e sofisticado de medições
contínuas ao longo de toda a rede de distribuição e
ramais, uma bateria enorme de contadores e a administração e
leitura sistemática de tudo isso. Na verdade, em nenhum sistema
português é feita essa monitorização completa e, por
isso,
as alegadas "perdas" não são conhecidas
.
No XXI Congresso da Ordem dos Engenheiros, que decorreu em Coimbra em 23 e 24
de Novembro de 2017, o Eng. José Sardinha, Presidente da EPAL, fez uma
comunicação intitulada
"Wone: Um Sistema Inteligente na Gestão e Controlo de Perdas de
águas nas Cidades"
sobre o moderníssimo sistema de medição e controlo
instalado na EPAL para identificação, monitorização
e redução das "perdas de água". Nessa
comunicação, dirigida a profissionais de engenharia, não
conseguiu fornecer quaisquer dados que discriminassem as várias
componentes da terminologia oficial de cálculo das perdas reais. De
facto, sempre referiu as "Perdas de água" como a
diferença entre os volumes de água saídos das
Estações de Tratamento e a "Água Facturada"
incluindo nas "perdas" todos os consumos autorizados e
não facturados, mas excluindo as perdas entre a captação e
a saída da ETA. Neste cômputo, e não identificado
explicitamente, a "redução de perdas" abrangia os
cortes de abastecimento de água a utilizadores domésticos.
Referindo determinada Autarquia (não nomeada) exemplificou como
"escândalo" de "perdas de água" o
abastecimento gratuito não facturado a numerosos utentes
domésticos (relembro, o direito universal à água).
Ficámos assim cientes que a própria EPAL, que tem o mais
sofisticado e avançado sistema de monitorização,
processamento e controlo do circuito hidráulico da água existente
em Portugal,
não sabe
as PERDAS REAIS e aplica o termo "perdas de água" a toda a
"água tratada e não facturada". O que são coisas
totalmente diferentes.
Se não são conhecidas as PERDAS REAIS nesse sistema, não
são possíveis de conhecer em nenhum outro.
Só por má fé são alardeados valores de PERDAS DE
ÁGUA atribuídas a tal ou tal autarquia. Só por má
fé e propaganda ideológica apodam de PERDAS DE ÁGUA os
serviços públicos gratuitos, dando-lhes a conotação
de desperdício.
3. Inevitabilidade das perdas reais de água
É fisicamente impossível eliminar perdas reais significativas num
sistema de abastecimento público.
Por imposição regulamentar e sanitária, a água de
abastecimento tem de circular nas tubagens em alta pressão; isto obriga
a que havendo microfissuras nos canos, ou em caso de roturas, a água
tratada saia em pressão impedindo a contaminação por
afluência de águas poluídas. No esgoto é o inverso,
circula a baixa pressão para que em caso de contacto com o meio a
água exterior entre no tubo e não haja derrames.
Por projecto, a rede de abastecimento de água "perde
água" e a rede de esgotos "mete água".
Quanto mais extensão de cano, mais perdas de carga há e maior
é a pressão necessária no início para manter o
essencial na zona final. Mais pressão, mais fugas...
Não são comparáveis as percentagens de perdas globais em
sistemas diferentes quando muito, é vagamente comparável a
perda média por quilómetro de conduta. A dimensão da rede
quilómetros de tubos é a principal fonte de perdas,
e também o maior e mais dispendioso obstáculo à
manutenção, ao rejuvenescimento e ao controlo.
O concelho de Lisboa, com uma enorme concentração de
população, maioritariamente "empilhada" em
prédios de vários andares, tem uma rede muito mais curta que
Sintra ou Loures. Cinquenta por cento da área do País tem
densidades populacionais inferiores a 35 habitantes por km2...
Mesmo que soubéssemos as PERDAS REAIS comparávamos o quê?
4. Dar às coisas as proporções devidas
O abastecimento de água doméstico incluindo as perdas
todas representa uma pequeníssima percentagem do uso total da
água.
O Plano Nacional da Água de 2001 estima as necessidades de água
para abastecimento público em
6,5% das necessidades totais de água,
atribuindo às necessidades de água para agricultura e
pecuária
90%
do total. Isto, sem contar a produção hidroeléctrica, que
é, de longe, o maior utilizador e devolve ao rio a água toda,
mas, em época de seca, pode depauperar muito as reservas em albufeiras.
Por outro lado, calculei a "minha" utilização
individual da água segundo o método da
pegada de água
(
waterfootprint.org
) que inclui uma estimativa de perdas nos vários processos. A parte da
minha "pegada" em uso doméstico é 5% do total.
O meu uso individual da água -
cálculo segundo "waterfootprint.org"
waterfootprint.org/en/resources/interactive-tools/...
Estes cálculos são inexactos, mas é bem real a diminuta
proporção de disponibilidades necessária à
satisfação universal do direito à água. É
noutros sectores e hábitos de consumo que devíamos priorizar a
optimização do uso da água.
Só o ódio aos serviços públicos acessíveis e
gratuitos motiva a campanha sobre falsas "perdas de água".
Estejamos alerta!
[*]
Engenheira.
O original encontra-se em
www.avante.pt/pt/2303/emfoco/148345/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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