O Brasil, os EUA, a OPAQ e Bustani
Samuel Pinheiro Guimarães
(*)
1. A
OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas)
é uma organização internacional independente, afiliada
às Nações Unidas, criada em 1997 e sediada na Holanda, com
o objectivo de implementar a Convenção sobre a
Proibição do Desenvolvimento, Armazenagem, Produção
e Uso de Armas Químicas e sobre sua Destruição.
2. A OPAQ é a única organização na área do
desarmamento e da não-proliferação de armas de
destruição em massa (nucleares, químicas,
bacteriológicas e seus vectores) que não é
assimétrica, isto é, em que os países mais poderosos
militarmente têm as mesmas obrigações que os menos
poderosos.
3. Todos os países membros (inclusive os Estados Unidos) assumiram os
compromissos de permitir a inspecção pela OPAQ de qualquer
instalação que possa produzir armas químicas -- inclusive
instalações industriais privadas --, de destruir, até
2007, todos os arsenais dessas armas e de não produzir armas
químicas.
4. Os demais acordos ou regimes de não-proliferação, como
o TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear) e o MTCR
(regime de controle de tecnologia de mísseis), atribuem um status
privilegiado aos países militarmente poderosos, em especial os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações
Unidas que podem ter estoques, desenvolver armas nucleares e mísseis e
até usá-las. Enquanto isto, países desenvolvidos menores
e países da periferia, ex-colónias e desarmados, foram levados a
aderir a esses acordos assimétricos por persuasão,
cooptação e coerção política e a aceitarem
neles uma condição de inferioridade e de
capitis diminutio
: não podem ter, desenvolver, comercializar e usar essas armas.
5. A OPAQ adquiriu esta característica de simetria talvez por duas
razões principais. O desenvolvimento de armas químicas é
mais barato em comparação com as armas atómicas; sua
utilização não depende de mísseis; as
instalações que podem produzi-las são mais fáceis
de dissimular. A segunda razão é que a conclusão da
negociação do tratado ocorreu após a
dissolução da União Soviética, do fim do conflito
Leste-Oeste e da Guerra do Golfo. O reconhecimento da necessidade de garantir
a universalidade da CPAQ -- expressa no seu preâmbulo -- levou as grandes
potências a aceitarem abrir-se, pela primeira vez, a
inspecções internacionais.
6. Para evitar a proliferação de armas químicas e sua
eventual utilização dissuasória por Estados da periferia
ou por organizações terroristas, as grandes potências
aceitaram a obrigação de eliminar suas armas químicas
(pois ainda detêm extraordinária superioridade de armamento
convencional sofisticado e de armas nucleares) para poder eliminar as armas
químicas nos países da periferia que acaso desafiassem seus
desígnios e se opusessem a sua gestão hegemónica
condominial. As grandes potências, todavia, se recusaram, desafiando a
expectativa internacional de que não mais existiriam regimes
discriminatórios, a concordar com a criação de
Organização para a Proibição de Armas
Biológicas, que seria também não discriminatória
como a OPAQ.
7. Por outro lado, apesar de seu desejo oculto de manter sua capacidade de
desenvolver e deter armas químicas, as grandes potências se
submetem às inspecções, inclusive as de
"desafio", isto é, sem aviso prévio, feitas pelos
inspectores da OPAQ cuja isenção e independência em
relação às grandes potências é essencial para
evitar que a organização se torne mais um instrumento de
hegemonia. Assim, apesar do incómodo que suas inspecções
geram, os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Inglaterra, a
França, a Alemanha, o Japão e dezenas de outros países
têm tido instalações inspeccionadas pela OPAQ.
8. Todavia, a estratégia de preservação de hegemonia
desenvolvida pelos Estados Unidos, em um ambiente mundial cada vez mais
violento, instável e imprevisível, se transformou com o governo
Bush que, mesmo antes de 11 de setembro, já demonstrara sua
preferência por um estilo arrogante, temerário e unilateral, como
demonstrara a sua recusa em ratificar o Protocolo de Kyoto, sobre a
redução da emissão de gases-estufa; a proposta de
construção de um sistema de defesa anti-míssil em
violação frontal ao ABM (Anti-Balistic Missile Agreement) e a
recusa em participar do Tratado Penal Internacional.
9. Os atentados de 11 de setembro causaram profundo choque na sociedade
americana, que preza a inviolabilidade de seu território, e na elite de
política exterior que, de um lado, executou acção
punitiva-demonstrativa de grande letalidade e, de outro lado, articulou uma
nova "visão de mundo" para justificar a política
hegemónica em torno da ideia do "eixo do mal" e da luta contra
um terrorismo difuso, porém paradoxalmente coordenado e contra os
Estados que alegadamente o apoiam. O mundo, que antes se organizava em torno
da disputa capitalismo versus comunismo, agora é induzido a optar entre
o Bem e o Mal, entre a cooperação irrestrita com os Estados
Unidos e o terrorismo.
10. Nessa luta, a questão das armas químicas assume especial e
reafirmada importância, pois os países que as desenvolvessem ou
que forem acusados de as desenvolver seriam de certa forma cúmplices das
organizações terroristas e poderiam ser atacados preventivamente
pelos Estados Unidos.
11. O Iraque, devido à permanência no poder de Sadam Hussein, a
quem os Estados Unidos haviam firmemente apoiado na guerra contra o
Irão, e que ousara desafiar os Estados Unidos na Guerra do Golfo, passou
a constituir alvo preferencial da estratégia contra o "eixo do
mal", tendo as autoridades americanas declarado sua intenção
de derrubar Sadam Hussein e de financiar sua derrubada, o que o mais
distraído observador pode verificar ser um atentado flagrante à
Carta das Nações Unidas.
12. Uma das principais alegações contra o Iraque é que
este país teria estoques de armas químicas, desenvolveria essa
tecnologia e estaria pronto a cedê-la a grupos terroristas que poderiam
usá-la contra os Estados Unidos e seus interesses no mundo. Todavia, o
Iraque não é o único país-alvo da nova
estratégia político-militar americana. Documentos recentes do
Pentágono listam sete países como alvos possíveis de
ataque nucleares preventivos norte-americanos, quais sejam a Rússia, a
China, a Coreia do Norte, o Sudão, a Líbia, o Irão e o
Iraque, em clara afronta ao compromisso assumido, em 1995, pelos EUA e demais
potências nucleares de não usar armas atómicas contra
países não-nucleares. Naturalmente, a divulgação
dessa lista gerou enorme preocupação nesses países e em
seus vizinhos, mas também na Europa e, certamente, deu novo impulso
à corrida armamentista mundial e regional.
13. Aí entra agora nesse quadro a OPAQ. O Embaixador José
Maurício Bustani foi eleito em 1997 e reeleito em 2000, um ano antes do
término de seu primeiro mandato, por aclamação e,
portanto, com o voto dos Estados Unidos, Director Geral da OPAQ. O Embaixador
Bustani é um dos mais inteligentes, experientes e dedicados
funcionários do Itamaraty e goza de excelente reputação na
diplomacia mundial.
14. Na OPAQ, Bustani, através de seus esforços, conseguiu
aumentar o número de países membros (e, portanto, sujeitos
à inspecção de suas instalações) de 87 para
145. Foram realizadas em sua gestão mais de 1.100
inspecções em mais de 50 países, inclusive o Brasil, e se
estima ter sido possível lograr uma redução de 15% do
estoque de armas químicas no mundo e, portanto, do risco de sua
utilização por Estados ou organizações terroristas.
Esta bem sucedida e competente gestão de um brasileiro foi
alcançada apesar da relutância paradoxal dos Estados Unidos em
cumprir com suas obrigações financeiras em dia, devendo cerca de
onze milhões de dólares.
15. O Embaixador Bustani, em estrito cumprimento a decisões adoptadas
anualmente pela Conferência dos Estados-parte da OPAQ em favor da
universalização da Convenção, realizou
gestões junto a países não-partes, em especial,
países possuidores ou ex-possuidores de armas químicas. A
adesão de países do Oriente Médio como o Irão, o
Sudão, a Arábia Saudita e a Jordânia foi considerada como
um passo importante para o desarmamento regional e para a paz em uma
região tão conturbada. A possibilidade de o Iraque aderir
à OPAQ -- o que depende de decisão do regime de Sadam Hussein --
desagradou os executores da política exterior americana que procuram
valer-se de pretextos para empreender ataque militar contra o Iraque (que,
aliás, é bombardeado regular e ilegalmente pelos Estados Unidos e
pela Inglaterra desde o fim da Guerra do Golfo). Um desses pretextos, nunca
comprovado, seria a posse de armas químicas e a recusa em continuar a se
sujeitar às inspecções extraordinárias da UNSCOM,
comissão criada após a Guerra do Golfo, que, como se sabe, eram
instrumentalizadas pelos EUA, conforme o testemunho amplamente divulgado de um
ex-inspector, de nome Scott Ritter.
16. A adesão à OPAQ sujeitaria o Iraque a
inspecções regulares em suas instalações e a
inspecções por desafio -- do tipo surpresa -- solicitada por
outro país quando houvesse suspeita de violação da
Convenção. Aliás, graças à
acção do Embaixador Bustani as inspecções da OPAQ
têm sido imparciais, não tendo sido possível
instrumentalizá-las para fins políticos. Portanto, a eventual
adesão do Iraque à OPAQ frustraria o pretexto americano e a
articulação para a criação de
condições favoráveis, na opinião pública
americana e mundial, para justificar uma operação militar
maciça contra o Iraque.
17. Assim, o governo americano desencadeou uma operação
diplomática para forçar a saída do Embaixador Bustani da
OPAQ, procurando acusá-lo de "incompetência", o que
contraria frontalmente os dados de sua gestão e o facto de ter sido
reeleito por unanimidade em 2000, com o voto americano e nunca ter sido sua
gestão criticada anteriormente.
18. Nesta operação diplomática, o governo americano
procurou obter o apoio do Executivo brasileiro, através de
sugestão para que o governo brasileiro o convencesse a renunciar,
oferecendo inclusive, em troca ao nosso governo, outro cargo como o de Alto
Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, cuja
detentora, Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda, caiu em desgraça e
suscitou a ira norte-americana por fazer críticas à
situação dos prisioneiros de guerra em Guantanamo.
19. O Executivo brasileiro, segundo consta nos círculos
diplomáticos no Brasil e no exterior, teria aceito a
intimação pessoal feita por Colin Powell, que vem exigindo a
saída de Bustani, o qual tem mandato conferido a ele não pelos
Estados Unidos ou pelo Brasil, mas por 145 países, até 2005.
Assim, se explica o facto de que todos os países da América do
Sul, vizinhos do Brasil, ciosos de nossa amizade, tenham simplesmente se
abstido na votação da moção de desconfiança
apresentada pelos Estados Unidos na reunião do Conselho Executivo da
OPAQ. Certamente se tivesse havido empenho da Chancelaria brasileira na defesa
do mandato do Embaixador Bustani, e da isenção e
independência da OPAQ, o que é vital para o Brasil, pelo menos
algum país vizinho teria votado com o Brasil. Não é
possível acreditar que a Argentina, por exemplo, a quem o Brasil tem
apoiado em sua crise, não teria apoiado nosso país, caso o Brasil
assim tivesse solicitado.
20. A questão é de extrema gravidade não pela
situação do Embaixador Bustani, mas pelo facto de abrir um
precedente que coloca em risco a isenção e a independência
de órgãos internacionais, precedente que pode eventualmente se
voltar contra o Brasil e seus interesses.
21. Por esta razão, o Congresso brasileiro e a sociedade civil devem
acompanhar a questão e fortalecer a actuação do Itamaraty
para que este tenha o respaldo e a vigilância necessária para
articular o apoio de todos os países para a defesa da integridade da
OPAQ e evitar sua futura utilização em manobras belicistas que
colocam em risco a paz mundial.
(*) Embaixador brasileiro, ex-director do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
O original deste artigo foi publicado em
Correio da Cidadania
. O texto foi adaptado à ortografia portuguesa.
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