A formação da mentalidade submissa
A manipulação
Além de insígnia militar romana e de pequena estola ornamental
dos sacerdotes, o manípulo, era também o punhado de forragem que
se punha diante do burro, de forma a que o não pudesse alcançar,
para que, ao persegui-lo, o animal carregasse ou puxasse a carga que outrem lhe
destinara.
Segundo os dicionários, manipular significa "operar com as
mãos, trabalhar demasiado alguma coisa, manuseá-la, manejar as
coisas a seu modo ou intrometer-se nas coisas alheias" e, por fim,
"intervir com meios hábeis ou, por vezes, astuciosos, na
política, na sociedade, no mercado, etc., com frequência para
servir interesses próprios ou de terceiros".
Desta forma, etimologicamente, manipulação acaba por ser uma
intervenção consciente num dado material com um fim determinado.
Neste sentido, diz-se que o oleiro manipula a argila ou que o realizador de
cinema ou de televisão manipula as imagens filmadas. Aqui, vamos
referir-nos à manipulação dos conteúdos de
consciência, das mensagens dos meios de comunicação no seu
sentido mais lato. Trata-se de uma intervenção com
consequências sociais e, portanto, de um acto político.
É certo que toda a utilização dos media pressupõe
sempre uma manipulação. Qualquer processo de
produção comunicacional, desde a selecção do meio,
à gravação, à mistura e montagem, à
realização e distribuição é uma
intervenção, uma manipulação do material existente.
Aquilo que importa, como assinalava Enzensberger em 1969, após os
acontecimentos do "Maio" francês e alemão do ano
anterior, não é que os meios e as mensagens da indústria
da consciência sejam manipulados ou não, mas sim quem os manipula,
em proveito de quem e ao serviço de que interesses.
Neste contexto da submissão das consciências e da
formação da opinião, vamos entender por
manipulação a orientação da
comunicação por uma minoria, com o objectivo da
dominação de todos os outros. O primeiro passo para sermos donos
das nossas vidas e do nosso futuro é o representado pela
identificação dos entraves que, interessadamente, outros nos
colocam no caminho para levarem a água ao seu moinho. Por isso
convém ter claro o conceito de manipulação e os seus
objectivos antes de passarmos à descrição das
técnicas utilizadas por essas minorias para conseguirem atingir os seus
objectivos.
A manipulação espiritual, como comunicação
orientada para o domínio ideológico, visa adaptar, na medida em
que lhe for possível, ao sistema social vigente, a consciência e
as actividades, incluídas as que se processam no tempo livre, da maioria
da população contra os seus próprios interesses e, dessa
forma, subordiná-los aos interesses minoritários que a promovem.
As maiorias devem submeter a sua imagem do mundo, a sua compreensão das
coisas, os seus gostos, em suma, o seu modo de vida, aos interesses das
minorias. A manipulação significa a deformação
espiritual do povo, significa privá-lo das suas faculdades e actividades
criadoras. Através dela, desgasta-se sistematicamente a subjectividade
do indivíduos, isto é, a sua personalidade.
Manipulação significa uniformização do
espírito, a desgraduação de todo o ser humano à
condição de objecto ou de um número que se vende por
"xis" ao milhão, no caso dos telespectadores das
audiências televisivas, por exemplo. O receptor e o consumidor das
mensagens e produtos desta indústria da consciência e do
entretenimento não participa na planificação, na
direcção, nas decisões nem na gestão desta
produção. Não se trata, como pretendia McLuhan, de que o
meio seja a mensagem, mas sim de todos os meios transmitirem a mesma mensagem e
até a mesma imagem. Por isso, "o que vemos, lemos e ouvimos, o que
se veste, o que se come, os sítios onde se vai e aquilo que se acredita
estar a fazer, passaram a ser responsabilidade de um sistema de
informação que fixa gostos e valores em função dos
seus próprios critérios de mercado, os quais, por sua vez, se
reforçam entre si" (H. I. Schiller).
[1]
Para lograr essa uniformização da consciência numa
sociedade fraccionada por contradições antagónicas
aplicam-se métodos psicológicos cujo êxito foi testado e
confirmado na "publicidade" comercial, a indústria do reclame.
Mobilizando recursos científicos nas disciplinas mais diversas
(sociologia, estudos de opinião, psicologia, politologia,
relações públicas, estudos comportamentais e
motivacionais, teoria da comunicação, etc), consegue construir-se
um pensamento em modelos pré-formatados. Uma maneira de pensar que,
para além do mais, reforça a aparência de que se
está a agir livremente. Sob a cobertura de uma suposta liberdade de
expressão, os poucos que dela realmente dispõem, quer dizer, as
minorias que detêm os meios para a expressar, tentam moldar
sistematicamente as consciências de milhões de pessoas,
condenando-as à menoridade intelectual, educando-as para a docilidade,
para suportar, sem críticas, o sistema de dominação e
exploração vigente, e para considerar como próprios os
falsos ideais deste mesmo sistema. As actuações e condutas
daí resultantes são apresentadas como "livres
decisões", autodeterminadas, quando na realidade são
induzidas, heterodeterminadas.
Como fenómeno típico da vida espiritual nesta autodenominada
"sociedade de mercado livre", a manipulação das
consciências parte, entre outras, das seguintes condições
prévias:
1) A concentração sem precedentes do capital em sectores chave e,
ao mesmo tempo, a recente baixa das taxas de juros.
2) O problema daí derivado da valorização do capital e da
procura de novos investimentos.
3) O desenvolvimento do sector terciário, de serviços.
4) A eliminação das fronteiras nacionais por necessidade de
expansão do capital, ao mesmo tempo que se estão gerando
continuamente novas fronteiras e conflitos étnicos.
5) O agravamento das contradições do sistema capitalista,
especialmente entre Norte e Sul, entre pobres e ricos.
6) A existência de modernos meios técnicos e conhecimentos
científicos aquilo que costuma englobar-se sob a
designação "novas tecnologias" que permitem o
exercício unitário e simultâneo do poder económico e
ideológico sobre o conjunto de toda a sociedade.
7) Uma oferta massiva de mercadorias que estimula o consumo enquanto ideal de
desejo
8) O progressivo abandono da ideia de "público", conducente
à marginalização dos serviços públicos
enquanto organização e modo de regulação do sistema
9) O subsequente processo de desregulação e
privatização com a preponderância dos critérios de
rentabilidade financeira sobre os critérios de rentabilidade social
10) A comercialização de todos os aspectos da vida material e
espiritual dos cidadãos o que conduz, necessariamente, a que o produto
barato, isto é, o produto indiferenciado, uniforme, determine a
produção e os programas. O efeito final da
comercialização é, como se constata, o entretenimento
à base de enlatados fabricados em série e envoltos em reclames
publicitários.
11) Aquilo que se impõe é o valor de troca da
informação e do entretenimento como mercadoria destinada a
compensar ilusoriamente as carências afectivas da maioria da
população e não o útil potencial do seu valor de uso
12) A indústria da comunicação e da consciência,
principal instrumento de dominação e submissão,
transformou-se num sector estratégico nos campos económico,
político e cultural
A manipulação dirige-se ao pensamento, aos sentimentos, às
acções (e omissões) de toda e qualquer pessoa. Da esfera
íntima até à apresentação pública no
trabalho, na escola ou na política, não sobra um único
aspecto, uma única dimensão da vida que dela não receba a
influência. O objectivo final da manipulação é a
obtenção da passividade e da submissão. A
manipulação das mentes é uma guerra psicológica
planificada, elaborada a partir de conhecimentos científicos, contra o
desenvolvimento progressista, isto é, solidário e cooperativo do
ser humano ou, o que é a mesma coisa, orientada contra o progresso
social.
Naquilo a que se chama "sociedade de mercado livre", a
função da indústria da comunicação, como de
qualquer indústria, consiste em gerar lucro, mais ainda, em estimular a
sua criação e, sobretudo, em manipular a maioria da
população de maneira a que esta não empreenda
acções contra o sistema de economia privada, mas antes que o
apoie e reforce. A razão de ser da manipulação funda-se
nas leis que regem a economia de mercado. Por isso há quem a tenha
qualificado como um instrumento de conquista, como o fez Paulo Freire, na sua
"Pedagogia do Oprimido".
[2]
A manipulação, diz o pedagogo brasileiro, é um dos
recursos mediante os quais "as elites dominantes tratam de fazer com que
as massas se moldem aos seus objectivos". Valendo-se de mitos que
explicam, justificam e até adornam as condições existentes
de vida, a minoria que dispõe dos media mobiliza-se em favor de uma
ordem social que não serve os interesses das maiorias. Uma
manipulação bem sucedida fará com que as pessoas
não pensem noutros ordenamentos sociais possíveis nem,
consequentemente, em alterar os existentes.
Por outras palavras, a função primordial da indústria da
comunicação, da consciência, do entretenimento ou como quer
que se lhe chame, na sociedade capitalista consiste em desorganizar e
desmoralizar os submetidos. Neutraliza os dominados, por um lado, e consolida,
por outro, a solidariedade com a classe dominante e com os interesses desta. Ao
fim e ao cabo, "os ricos também choram", têm problemas
com os seus filhos, etc. Os modelos de conduta que apresentam, baseiam-se no
êxito pessoal, no individualismo, no isolamento e na
fragmentação social. O colectivo, segundo tal lógica,
não conduz a lado algum.
Manipula-se, em suma, quando se produzem informações que
não reflectem os interesses e necessidades dos seus consumidores, quando
deliberadamente se produzem mensagens desconformes com a realidade social.
O oposto da manipulação é a formação da
consciência crítica e da vontade democrática, tendo em
vista o desenvolvimento multifacetado da pessoa humana. Para isso requer-se,
entre outras coisas, a transformação do sistema de
produção material e espiritual, do sistema de ensino, a
criação de condições efectivas de acesso que
estendam a liberdade concreta de expressão a todos, a supressão
das medidas estatais que limitam essas liberdades, requer-se a travagem e
anulação da influência dos monopólios e
oligopólios na formação da opinião pública e
na cultura. Terão as maiorias de converter-se em protagonistas dos
media, recorrendo aos modelos e exemplos concretos e reais para a
formação da sua opinião em todos os aspectos da vida. O
povo como protagonista, implica que as maiorias trabalhadoras elaborem as suas
notícias e as discutam
[3]
.
Técnicas de manipulação
a) A selecção
Uma das técnicas de manipulação que melhor passam
despercebidas consiste no seleccionar para difusão aquelas
informações que melhor satisfazem os interesses e os objectivos
dos seus produtores. Qualquer objecção que se faça a esta
selecção costuma, segundo a escassíssima minoria que a
elabora e destina a todos os outros, equivaler a um atentado contra a liberdade
de expressão, de comércio, de criação, etc.
E, contudo, a informação é, por natureza, selectiva.
Não se consegue publicar tudo aquilo que acontece. Mesmo que fosse
possível sabê-lo, os jornais e as revistas têm um
número limitado de páginas, um espaço finito. O mesmo
acontece com os espaços e os tempos radiofónicos e televisivos.
Daí a necessidade de seleccionar entre o fluxo incessante, proveniente
dos correspondentes, das agências, do material em bruto que, depois de
uma primeira triagem é passado às redacções
jornalísticas, as quais, por seu lado, voltam a seleccioná-lo de
modo que, no fim do processo, apenas se publicará qualquer coisa como um
por cento da informação inicialmente gerada. Trata-se de uma zona
de desperdício astronómico, que bem valeria a pena analisar.
Logicamente, cada qual selecciona de acordo com os seus gostos,
educação, ideologia, interesses, necessidades, etc. Na
formação social que se denomina "mercado livre", quer
dizer, capitalismo, selecciona-se aquilo que se crê ir vender melhor e a
mais gente.
Seja como for, devido à concentração existente nesta
indústria da consciência, ou do entretenimento, como outros
preferem chamar-lhe, a verdade é que se contam pelos dedos de uma
mão as agências internacionais que seleccionam os acontecimentos e
as imagens que vemos na maior parte do mundo. O mesmo é válido
para a produção de filmes, séries televisivas, livros de
texto, etc. Basta recordar a informação sobre a Guerra no Golfo,
do princípio dos anos 90, cuja cobertura foi atribuída em
exclusivo à cadeia norte-americana CNN, com os jornalistas devidamente
escolhidos e previamente industriados pelos militares do Pentágono.
Basta recordar que 95 por cento das imagens difundidas pelos meios de
comunicação são fornecidas por uma agência noticiosa
dos Estados Unidos ou, ainda, que 90 por cento dos conhecimentos armazenados em
bancos de dados de todo o mundo são propriedade privada norte-americana.
Em suma, uns poucos detêm o poder de definir a realidade para a maioria
de todos os outros, de dizer-lhes o que se passa, o que é bom e o que
é mau, o que se deve ou não fazer e como fazê-lo, etc. Este
poder de fixar o programa social de qualquer comunidade é a chave do
controlo social. Lorde Nordcliffe, dono de um dos mais poderosos
consórcios jornalísticos dos princípios do século
XX, explicava-o muito directamente e sem muito gaguejar: "Deus ensinou os
homens a ler para que eu possa dizer-lhes quem devem amar, quem devem odiar e o
que devem pensar".
[4]
E a história que nos contam costuma ser, quase sempre, a dos outros,
não a nossa. Enquanto estamos entretidos a viver as histórias dos
outros, não temos tempo para nos interessarmos pelas nossas
próprias, isto é, com as histórias da nossa vida. Porque
se nos ocupássemos dela, se acerca dela descobríssemos como
são bem outros que a determinam e não nós, certamente
não ficaríamos de braços cruzados e tentaríamos
mudar a figura das coisas.
b) Silenciamento
O simples método de manipular comunicando tão-somente aquilo que
convém implica, por definição, o silenciamento do
inconveniente. Os governos, por exemplo, encontram um formidável
instrumento de controlo social no silenciamento de informações
vitais à população, como ocorreu em Espanha durante a
Guerra do Golfo com a questão dos sobrevoos e abastecimentos das tropas
norte-americanas.
Quando a verdade não corresponde aos interesses do capital, não
se trata de mentir, mas antes de não dizer a verdade. Este método
é mais difícil de ser percebido pelos leitores, ouvintes ou
telespectadores.
Informa-se de maneira selectiva, mas credível, acerca de
fenómenos, pormenores, sem contexto, sem chegar, nunca, à
essência do sistema.
Os governos despendem centenas de milhões na acumulação de
informação que se destina a ser imediatamente silenciada, por
razões de Estado, de interesse ou segurança nacional, etc., mas
cujo conhecimento acabará repartido por uns quantos. Um exemplo quase
pueril, para não mencionarmos outros de maior substância, é
o daqueles ex-chefes de Estado que ao cessarem funções levam
consigo milhares de documentos para redigirem as suas memórias e, com
eles, fazerem, portanto, o seu negócio privado. Por isso se diz que
informação é poder ou, com maior precisão, que o
poder se baseia na ocultação da informação.
Não era diferente nos países socialistas.
c) A comunicação oficial e protocolar
A maioria das notícias dos meios de comunicação, em
especial da televisão, refere-se às actividades dos governantes.
A televisão considera precisar imprescindivelmente de notícias
que possam apresentar-se com imagens. Nas deslocações, visitas e
inaugurações dos chefes de Estado e dos governantes, podemos
assistir a como descem dos aviões, como têm à espera as
suas guardas de honra, apresentação de armas e hinos nacionais,
como chegam e partem nos carros topo de gama, como membros das comitivas e
guarda-costas abrem e fecham as portas, como os governantes olham para as
câmaras com expressões e gestos estudados.
Às vezes, nem se distingue, onde estão, se em Madrid, em Bruxelas
ou noutra qualquer capital. As imagens parecem-se entre si, como gotas de
água. Os personagens que decidem a nossa vida desaparecem, então,
atrás de portas que se fecham e, aí, onde verdadeiramente
começa a história, é onde nós ficamos sem saber o
que se negoceia e assina para lá delas. É assim que se encena o
espectáculo da democracia. Dá um trabalho considerável
distinguir entre espectáculo, política e reclame
publicitário. Mas o primado é sempre do espectáculo.
[5]
d) Os mitos da sociedade ocidental
A manipulação das consciências efectua-se também por
meio de uma série de mitos que estruturam os conteúdos das
mensagens. Herbert Schiller, no seu já antes citado "Mind
Managers", analisa cinco destes mitos.
1) O mito do individualismo e da decisão pessoal. Baseia-se na suposta
primazia do indivíduo como valor supremo. Aqui reside o fundamento da
liberdade, da propriedade privada, do triunfo pessoal a todo o custo, etc. Esta
forma de apresentar o progresso do ser humano oculta, capciosamente, o facto de
aquilo a que chamamos sociedade ou cultura humana ter surgido da
cooperação, da solidariedade e da comunicação.
É isso que distingue o humano do animal. O egoísmo selvagem
representa precisamente a animalidade.
2) O mito da neutralidade. A eficácia da manipulação
depende da inexistência de provas da sua existência, de que as
mentes submissas acreditem que as coisas são inevitavelmente como
são, sem que nada exista que possa mudá-las. Para esse efeito,
é fundamental que as pessoas creiam na neutralidade das
instituições sociais, dos governos, do sistema de ensino, dos
meios de comunicação e da ciência. Lamentavelmente para
esses interesses, os factos desmentem esta tão cacarejada neutralidade.
3) O mito da inalterabilidade da natureza humana. A opinião que tenham
sobre a natureza humana influi também no comportamento das pessoas e nas
suas expectativas. Quando se difunde a ideia, que se pretende até
demonstrar "cientificamente", segundo a qual a condição
humana é uma criação definitiva, acabada, seja por Deus ou
pelo ADN, genoma humano ou como quer que se denominem as novas
"divindades" da ciência, estará, então, a
admitir-se que as relações conflituais são inerentes
à própria condição humana, nada tendo a ver com as
circunstâncias sociais; que a agressividade é incorrigivelmente
própria da natureza humana; e que, portanto, não vale a pena
mudar o meio social gerador, ele sim, de tais conflituosidade e agressividade
de uns seres humanos para com os outros. Os efeitos sociais destas teses
são a desorientação, a incapacidade para identificar as
contradições e as suas causas e, o que é pior, a
aceitação submissa da situação existente.
4) O mito da ausência de conflitos sociais. Consequência
lógica do anterior, impõe-se o mito de que não existem
conflitos sociais, de classe. O conflito apresenta-se sempre como um problema
individual. Do ponto de vista da sua comercialização, dizem-nos
os investigadores, a apresentação como colectivos dos problemas
sociais, requer não apenas um esforço acrescido, como perturba os
consumidores. Daí que os entretenimentos e produtos culturais de maior
difusão estejam tão impregnados de violência individual. A
cooperação, a unidade e a luta colectivas constituem conceitos
potencialmente perigosos.
5) O mito do pluralismo dos media. Este baseia-se na ilusão de que ao
dispor de um grande número de títulos de jornais e revistas ou de
muitas emissoras de rádio ou canais de televisão, o
cidadão está apto a escolher entre uma oferta efectivamente
diversificada. É uma ilusão que surge reforçada pelo facto
de o consumidor poder realmente optar por um ou por outro título, ou
canal. Mas caso se observe mais de perto os conteúdos, facilmente se
verá como são todos mais ou menos idênticos. Multiplicidade
de botões (canais) não é sinónima de diversidade de
opiniões. Onde se encontra, por exemplo, um diário de grande
projecção ou um canal de televisivo de esquerda? O pluralismo
autêntico é o das opiniões diferentes e contrastadas. O
aumento de títulos, canais e programas não basta. Se todos
oferecem a mesma informação oficial protocolar, a mesma
música, os mesmos espectáculos banais, os mesmos concursos e os
mesmos reclames publicitários, não é pluralismo o que se
tem, mas sim uniformidade e conformismo, compensação fácil
para os défices emocionais, as angústias e
frustrações e, em última instância,
doutrinação.
a) Os inquéritos e sondagens de opinião
Transformaram-se actualmente numa verdadeira indústria de que a
política e outras indústrias mal podem prescindir. São
técnicas para averiguar e determinar os hábitos e
preferências individuais e colectivos. Não são, de modo
algum, instrumentos neutrais, uma vez que os gostos e as tendências
humanas não podem ser separados das relações sociais em
que existem. A sua publicação pode, inclusivamente, criar, ela
mesma, estados de opinião; através dela podem dissipar-se as
dúvidas dos indecisos, estimular o espírito gregário.
Pelas sondagens não se pretende ficar a saber o que as pessoas desejam,
mas antes se os métodos anteriormente empregues foram eficazes ou se,
pelo contrário, é preciso modificá-los. A indústria
dos inquéritos e sondagens emprega-se, consabidamente, para dirigir
gostos e decisões, tanto na compra de bens de consumo, como nas
eleições políticas.
b) A censura
É a forma mais brutal de intervenção para manipular as
consciências. Ainda que deva ter-se em conta que existem diversos tipos
de censura. Assim, nos regimes totalitários, pratica-se a censura
prévia, isto é, a que se efectua antes de que os produtos se
imprimam e saiam para a rua. Também acontece censurar depois da
impressão, intervindo antes da publicação e
comercialização. Deste modo, podem confiscar-se jornais, revistas
e livros nos quais já se tenham investido somas consideráveis,
infligindo os correspondentes prejuízos aos seus editores. Mas
não se pode, igualmente, esquecer a autocensura que a si mesmos
impões os produtores (jornalistas, escritores, artistas, etc.), antes de
darem por concluídos os seus trabalhos, de forma a que estes agradem
às instâncias superiores e não lhes criem problemas.
A arma contra a censura é a motivação. Quando se quer
escutar a mensagem, de pouco valem as barreiras e as intromissões. Os
espanhóis que queriam escutar a "Pirinaica" [como os
portugueses que queriam ouvir a Rádio Argel ou a Rádio Moscovo]
durante a ditadura, bem que o faziam apesar dos perigos e das
interferências. A censura não resolve nada, apenas prejudica a
sociedade sobre a qual é exercida. Os obstáculos impostos
à liberdade conseguem apenas, como regra, estimular ainda mais o desejo
de conhecer o interdito. Quando a opinião pública não pode
informar-se nem expressar-se livremente, procura as suas próprias formas
de satisfazer as necessidades que sente e os interesses que partilha.
Não há muros que possam entravar a radiodifusão, como
acontecia na ex-República Democrática Alemã (RDA), cuja
população escutava diariamente os programas de rádio da
então República Federal, através dos quais podia
dedicar-se a imaginar o fascinante espectáculo do
"paraíso" capitalista que tanto viria a frustrá-la
posteriormente.
c) A fulanização da política
Os acontecimentos sociais, no discurso dos media, personalizam-se. Os
dirigentes políticos passam a ser julgados pelos seus atractivos
pessoais e não pelos respectivos programas, por aquilo que conseguiram
fazer ou pelos falhanços que averbaram. Os principais problemas
apresentam-se ao público reduzidos a análi-ses de atributos
pessoais, dos seus hobbies, deslizes sentimentais, vida familiar e, até,
por via da análise dos vestidos e penteados. Os conflitos sociais
são interpretados e expostos como conflitos de personalidades. A guerra
no Golfo não é uma luta pelo controlo do petróleo e pela
independência nacional de determinados países, mas antes uma
questão pessoal entre Bush e Saddam, por exemplo. Estrategicamente, esta
fulanização tem a virtualidade de alienar as
atenções das pessoas e das grandes massas relativamente aos
problemas sociais que as afectam, de facto.
d) A exposição linguística
Como mencionámos ao falar da violência psicológica ou
simbólica, a linguagem continua a ser o principal instrumento de
manipulação. Se os seres humanos desenvolveram a linguagem para
poderem entender-se uns aos outros, para poderem cooperar entre si para
benefício de todos, o capitalismo de hoje utiliza a linguagem
precisamente na direcção inversa, para os confundir e dividir. As
notícias são, quase invariavelmente, apresentadas sem
conexão entre si. Esta fragmentação dificulta e impede a
sua compreensão, pois sem contexto não há significado. Uma
coisa existe, através das outras, dizia Hegel. Se não nos
são apresentadas as relações que existem entre
acontecimentos e estados de coisas, não podemos simplesmente entender o
que se passa. Explicar a violência na Irlanda do Norte em termos de
católicos e protestantes, sem dizer a quem pertence a riqueza, quem
ocupa os postos de trabalho e quem são os pobres ou os que estão
no desemprego, não serve de nada para perceber o que ali se passa. O
mesmo poderia dizer-se de todos os conflitos no mundo, veiculados pelos media.
No conflito jugoslavo, parece que só há um "mau", os
sérvios, que se qualificam de "antigos comunistas". Ao
comunismo e neo-comunismo da Sérvia, opõe-se a
"liberdade" da Croácia, ainda que o seu governo seja fascista.
Na "sociedade de mercado livre" incluem-se as monarquias feudais da
Arábia, todas as ditaduras latino-americanas e quase todas as africanas
e asiáticas. O modelo da sociedade democrática e livre por
excelência são os Estados Unidos da América, que apesar do
ardor com que proclamam a liberdade de circulação de pessoas e
bens, impõem há mais de 40 anos, um bloqueio económico a
Cuba, ou que com a sua legislação proteccionista impedem a
importação de bens de outros países, entre os quais
europeus. E podíamos continuar indefinidamente.
Um método simples de observar o facciosismo da opinião dos media
consiste em atentar nos adjectivos com que qualificam os acontecimentos e as
pessoas. Através deles, saberemos como os julgam, que pretendem, se a
sua tão propalada neutralidade e independência tem, afinal, ou
não tem, alguma a coisa a ver com a realidade e a lógica das
coisas.
O entretenimento
Entreter significa compensar durante um lapso de tempo, as debilidades e
carências emotivas e sentimentais. O entretenimento apela aos
défices emocionais que, de vez em quando, todos nós temos.
É disso que vive esta indústria. Porque o objectivo último
do entretenimento maioritariamente proporcionado pelos media de hoje não
é o postulado ético da coexistência entre povos e etnias e
culturas, mas é antes o de ganhar dinheiro com programas que exploram os
mais primitivos instintos (sexo e violência). Quando a
aspiração de toda a construção cultural consistiu
ao longo dos séculos em refrear e sofisticar estes instintos, hoje em
dia, o direito do mais forte limita-se, ao potenciá-los, a contradizer
todo o património de avanço cultural e político nos
direitos humanos.
Enquanto jogo lucrativo com as emoções de terceiros, o
entretenimento torna-se, na realidade, uma questão política
determinada pelos meios que se utilizem para o disseminar. Quem diariamente se
distrai com o assassinato, a morte, a fraude, a violência bruta, aprende
que o direito do mais forte e que o individualismo egoísta prevalecem
sobre os direitos humanos, a solidariedade e a cooperação e
aprende ainda que a melhor maneira de responder às opiniões
contrárias é partir a cara àqueles que as expressem. O
simplismo e a rudimentaridade dos punhos, em vez da complexidade e diversidade
das opiniões, da força dos argumentos racionais, produz mirones
cínicos e não cidadãos democratas, dotados de
consciência crítica e sentimentos solidários.
O entretenimento e a diversão das grandes massas das
populações e a organização perversa dos seus tempos
livres, converteram-se numa das indústrias mais lucrativas e
prósperas dos nossos dias. Aproveitando-se das forças produtivas
mais modernas, as novas tecnologias da informação e da
comunicação, como costumam ser designadas, gera-se uma ampla
oferta de organização do tempo livre, entendido como tempo de
ócio, de não trabalho. Mas, isto em nada significa que este seja
um tempo efectivamente à nossa disposição, ocupado com
actividades organizadas e dirigidas por nós mesmos. O que se passa
é que esta indústria utiliza, na projecção dessa e
doutras ilusões, todas as formas de cultura popular: histórias,
desenhos animados, discos, cassetes, jogos de vídeo, programas de
rádio e de televisão, cinema, revistas ilustradas, acontecimentos
desportivos, concertos e festivais de pop e de rock, fascículos, livros
promovidos pelos reclames comerciais, etc., etc. Existe uma enorme quantidade
de produtos para iludir as pressões e angústias da vida
quotidiana, para a evasão através do jogo e do entretenimento,
para tentar, enfim, satisfazer esperanças e desejos secretos.
Esta exploração interessada das necessidades humanas de
entretenimento, de descanso, de distensão cumpre uma outra
função importante: abstrair da sua realidade as grandes massas da
população, algo que deve entender-se também no
âmbito da manipulação ideológica e da
formação da mentalidade submissa. E, não obstante,
encontra-se muito arreigado o mito de que a diversão e o lazer
são neutrais, carecem de pontos de vista orientados e existem à
margem dos restantes processos sociais. No fim de contas, que pode ter de mal
seleccionarmos o programa que mais nos agrade, a estância balnear que a
carteira nos autorize, ou os video-jogos com que se entretêm os nossos
filhos, enquanto nos poupam, aliás, a ter de aturá-los e
responder às suas perguntas? Se dermos, porém, uma olhadela,
ainda que superficial, aos conteúdos, não tardaremos em descobrir
o negócio da violência que se empenha em projectar a ilusão
de um "oeste selvagem", nas fitas de cowboys, por exemplo. Um
"oeste" que já por volta de 1875 bem tinha desaparecido, mas
de que ainda hoje continua a alimentar-se a fábrica de sonhos de
Hollywood. Ou o negócio do terror, do sexo, da pornografia, a chirichia
das revistas cor-de-rosa ou os supostos debates (magazines) da hora da
sobremesa. A própria guerra e a morte são convertidas em
diversão. Quem pára o suficiente para pensar no sentido existente
por trás do facto de que as pontes e edifícios que voam pelos
ares, os choques de comboios, os saltos do décimo andar, os voos
supersónicos do Super-Homem, etc., etc., equivalem apenas a uma burla
estética? Hoje em dia, aluga-se inclusivamente público para jogos
e concursos junto de lares de terceira idade, escolas primárias ou
faculdades. Há adultos, jovens ou crianças, que por dez euros ou
um simples lanche e um sumo, estão dispostos a rir ou aplaudir de cada
vez que a produção os mande fazer uma coisa ou a outra.
Vivemos a cultura do simulacro.
A cultura popular já não é feita pelo povo. Como salienta
Herbert Schiller, "a rede da cultura popular que relaciona entre si
os elementos da existência e que fixa a consciência geral daquilo
que existe, do que é importante, do que está reciprocamente
ligado, converteu-se, primordialmente, num produto manufacturado". Esta
cultura, que pode perfeitamente designar-se por "cultura dos media",
impregna a mentalidade e contribui decisivamente para a formação
da opinião da maioria, uma vez que esta não dispõe, na
verdade, de qualquer outra fonte de informação. A UNESCO estima
que, hoje em dia, 85 por cento dos serviços culturais do mundo
são veiculados pelos meios de massas, especialmente pela
televisão. Os seus conteúdos e programas proporcionam
reiteradamente a quem os vê chaves interpretativas e hierarquias de
valores na nossa sociedade, bem como indicações sobre como
proceder para atingir o sucesso e a felicidade, como educar os filhos, como
deve o casal fazer amor, etc., etc. Estes materiais formam, doutrinam,
estimulam a ambição e o lucro pessoais e propagam a ideia de que
a natureza humana é imutável. Negam, enfim, a viabilidade de
outras formas de organizar a vida e a coexistência humanas.
O êxito da indústria do entretenimento assenta nas expectativas do
público. O espectador espera do televisor o prazer, a diversão, o
desafogar das tensões, da mesma forma que da máquina de lavar
espera roupa limpa e do frigorífico alimentos frescos. Ao mesmo tempo
que subsistem, bem longe desta indústria, aquilo que são as
naturais necessidades de lazer e de actividade livre das dos seres humanos e
das grandes massas populacionais por eles constituídas, necessidades que
ainda não se precisaram devidamente e que qualquer programa
político emancipador deverá ter bem em conta.
NOTAS
[1]
A citação do autor é da edição em
castelhano de Schiller, Herbert I. (1972) Mind Managers, "Los
Manipuladores de Cerebros" (1989), Gedisa, Barcelona (:189). H. I.
Schiller (1919-2000) foi um dos mais profundos e radicalmente críticos
pensadores do dispositivo mediático. Professor na Universidade da
Califórnia, em San Diego, a sua obra está por traduzir em
português. Na linha de estudos sobre as relações de
dependência mediática imperial, sobretudo da América Latina
em relação ao seu país, os Estados Unidos, a sua abordagem
da globalização comunicacional e da evolução
tecno-política dos dispositivos contemporâneos de
comunicação, centrava-se nas possibilidades perversas de os novos
meios e as novas redes se transformarem em extensões imperialistas de
controlo e manipulação à escala planetária (NT)
[2]
Freire, Paulo (1970), Pedagogia do Oprimido, acerca oposição
entre a teoria dialógica da acção (cujo objectivo é
a adesão das massas às formas de organização da sua
libertação), e a teoria antidialógica da
acção cujo instrumento é a manipulação e
objectivo a conquista e a dominação). Ver especialmente
páginas 102 e segs. da edição aqui consultada, 17ª,
de 1987, Rio de Janeiro, Paz e Terra. (NT)
[3]
Matéria essencialmente ideológica e política, tal como o
autor aqui a coloca, a verdade é que as práticas e o debate em
torno do jornalismo participativo, do cidadão-jornalista, etc.,
têm vindo a conhecer um impulso que à data da edição
deste livro, poucos poderiam antever. Um interessante roteiro sobre o estado da
arte no debate internacional deste tema, e não só, pode ser
encontrado no excelente Ponto Media, o actualizado, atento e cuidado blogue do
jornalista português António Granado, disponível em
http://ciberjornalismo.com/pontomedia/ (NT)
[4]
O autor vai, aqui, uma vez mais à raiz da questão. De assinalar,
porém, que bem depois de Nordcliffe, as ciências da
comunicação chegaram a conclusões que validam palavra por
palavra a asserção do lorde britânico. Onde melhor e de
modo mais acessível podemos continuar, ainda hoje, a encontrar
coligidos, em língua portuguesa, os estudos que corroboram o aqui
explanado, é nas colectâneas organizadas por Nelson Traquina, da
Universidade Nova de Lisboa, contendo, entre outros importantes estudos, os
textos e autores fundamentais das principais teorias do "valor
notícia" e dos critérios de selecção noticiosa
(gate keeping), das teorias funcionalistas sobre o trabalho e a
organização das redacções jornalísticas, bem
como das teorias do agendamento (agenda setting), em especial da
evolução de 25 anos de pesquisa nesta área por parte dos
seus autores McCobms e Shaw (1972 e 1993). Portanto, duas obras de
referência e aprofundamento, em português: Traquina, Nelson (org)
(1993), Jornalismo: Questões, Teorias 'Estórias', Lisboa, Ed.
Vega. E Traquina, Nelson (2000), O Poder do Jornalismo, Análise e Textos
da Teoria do Agendamento, Coimbra, Minerva. (NT)
[5]
Uma das mais importantes e radicalmente profundas obras sobre estes aspectos
sócio-comunicacionais e políticos das nossas sociedades é
da autoria do co-fundador francês da chamada Internacional Situacionista,
Guy Debord: "Comentários sobre a sociedade do
espectáculo". Obra original de 1988, escrita duas décadas
após o seu outro clássico, "A sociedade do
espectáculo" (original de 1967), os "Comentários"
antecipam com uma precisão cirúrgica a evolução do
sistema espectacular nas suas formas mais recentes, e que ultrapassaram a
própria vida do seu autor, que se suicidou a 30 de Novembro de 1994.
Existe uma (esgotada) tradução portuguesa dos
"Comentários", pela editora Mobilis in Mobile, datada de 1995
e uma outra igualmente esgotada edição portuguesa de "A
Sociedade...", de 1991, pela mesma editora, depois de uma primeira
edição ter circulado semi-clandestinamente em português em
1972. (NT)
[*]
Catedrático de Comunicação Audiovisual (jubilado em 2005)
da Universidade de Sevilha, doutorado pela Universidade Complutense de Madrid e
doutorado cum laude pela Universidade de Münster, autor de 13 livros.
O
presente texto é um excerto de
A formação da Mentalidade submissa,
tradução de Rui Pereira,
Deriva Editores
, Porto, 2006, 165 pgs., ISBN 972-9250-20-0
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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