Desconstrução de alguns "programas informativos" da
indústria de exploração de animais
por Rui Pedro Fonseca
[*]
O consumo de carne no Ocidente já não é prática
conferidora de
status
social, nem é hábito exclusivo de grandes festividades. Embora o
carnismo esteja culturalmente sedimentado na história pela
Religião, Família e Estado, a sua acentuação na
época moderna e contemporânea deve-se essencialmente ao legado
empresarial / publicitário que têm vindo a incutir nas sociedades,
de forma cada vez mais massiva, práticas sociais que legitimam a
exploração de animais não humanos. Atualmente são
as instituições empresariais que têm moldado os
hábitos alimentares, formas de pensar, comportamentos e posturas
referentes aos designados "animais para abate".
Produtos derivados da exploração, os "animais para
abate" tornaram-se sinónimos de (falsas) necessidades, mas que
não deixaram de ser criadas. Considere-se um dos primeiros exemplos de
sucesso da história moderna: quando a empresa alimentar
Beech-Nut Packing contratara o pai da propaganda Edward Bernays
[1]
que, por "indicação científica de 5000
médicos"
[2]
, implementou, primeiro nos Estados Unidos na década de 1920, e depois
noutros países anglo-saxónicos, a prática alimentar do
Bacon and Eggs
por alegadamente ser um
"pequeno-almoço bem composto"
em detrimento do
"leve pequeno-almoço" "café, sumo de laranja e uma
torrada".
[3]
Que benefícios podem existir de uma carne processada (bacon) que
é preservada com conservantes químicos, sal,
defumação, e que está apinhada de colesterol e gorduras
saturadas? Atualmente, o World Cancer Research
menciona que benefícios não existem, e considera que quem
consumir elevadas quantidades de bacon acarreta 72% de hipóteses de
contrair doenças cardiovasculares (como ataques cardíacos) ou
cancro do cólon (11%)
[4]
. O modelo de publicidade "científica" de Bernays, que
reconhecera que
"a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e
opiniões das massas é um elemento importante numa sociedade
democrática"
[5]
é ainda hoje amplamente utilizado por empresas de
alimentação.
Um outro exemplo, entre muitos, pode ser dado pela Mimosa cujo
marketing
e publicidade são (auto)regulados pelo
Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial
(ICAP) que, com um "compromisso voluntário"
para com os/as consumidores/as, advoga
"respeitar e seguir as normas de conduta, promovendo a legalidade e
transparência da comunicação publicitária"
[6]
. Na página do seu sítio oficial, a Mimosa menciona que
desenvolve
"programas educativos"
(um eufemismo de campanhas publicitárias) de lacticínios
dirigidos a mulheres, idosos e crianças (públicos-alvo).
Pretendem implementar
"
hábitos de vida saudáveis, desde a infância,
sensibilizando para o seu papel estruturante no bem-estar, ao longo de toda a
vida (
) e estudar, informar e sensibilizar os portugueses para a
importância do leite
[de vaca]
e produtos lácteos como parte integrante de um estilo de vida
saudável."
[7]
Ou seja, pretendem consolidar e intensificar hábitos de consumo de
lacticínios desde a infância até à terceira idade, e
convencer as populações que consumir leite da espécie
bovina é sinónimo de obtenção de "vida
saudável".
Também já obtiveram o apoio do Estado português para a
implementação de um
"programa pedagógico"
que envolve mais de 100 mil crianças e professores do Ensino
Básico de todo o país onde promovem
"educação alimentar"
com o fim de
"contribuir decisivamente para uma geração melhor alimentada
e melhor informada sobre uma alimentação saudável"
[8]
. A nobre missão da Mimosa visa ainda
"aconselhar e atacar o colesterol e a osteoporose"
, assim como promover
"o consumo de leite como aliado na prevenção da obesidade
infantil"
[9]
.
Mas, inversamente ao que é dito, a
"nova geração",
alimentada por empresas de exploração pecuária como a
Mimosa, indicia elevadas taxas de obesidade e de doenças
crónicas, justamente devido ao consumo de lacticínios que possuem
elevados níveis de colesterol, lactose, e alto teor de gorduras
saturadas. As secreções mamárias de uma vaca são
apenas adequadas para os bezerros para que, após 60 dias do seu
nascimento, possam pesar em média cerca de 85kg até chegarem
à fase adulta com aproximadamente 400kg. O
"programa pedagógico"
da Mimosa assenta numa intensa doutrina para que o consumo de leite bovino
seja considerado "natural", "saudável" e
"necessário" o que torna a espécie humana no
único mamífero no planeta que consome leite de uma outra
espécie, e em fase adulta. Depois, sedimenta uma crença
generalizada de que o cálcio, tão essencial para a saúde
humana, só tem origem no leite de vaca. Em cerca de 5.000
espécies de mamíferos que habitam o planeta, não há
nenhuma que obtenha cálcio ou outros nutrientes a partir do leite de
outra espécie, seja na infância ou na fase adulta: um ser humano
que se apropria do leite que advém das glândulas mamárias
de uma vaca é um cenário tão bizarro como um felino sugar
o leite de um primata, ou de um suíno sugar leite de um canino.
Adicionalmente o que se pode esperar de vacas que são sujeitas a uma
exploração intensiva para ministrarem carne ou leite, e que
são submetidas a antibióticos, vacinas, hormonas
sintéticas (dietiletilobestrol e sulfato de sódio) pesticidas,
drogas alopáticas variadas, carrapaticidas, em que muitos casos
têm toxinas como o escatol, histamina, putrescina, cadaverina,
notrosaminas, nitritos e nitratos, formol, adrenalina, adrenocomo e
adrenolutina, benzopireno, sagihate, bactérias e vírus diversos;
brucelose, tuberculose bovina; substâncias linfocitárias
alergenos, antigenos, benzoquereno
[10]
, mais pus e sangue?
Certamente os resultados não podem ser positivos. Cada vez mais estudos
de investigadores/as e de nutricionistas independentes são
unânimes em certificar que os lacticínios têm a sua cota
parte nos problemas de saúde pública existentes nos países
ocidentais, contribuindo, designadamente, para o surgimento de cancros (mama e
próstata), diabetes, osteoporose, obesidade e alergias. Estudos de
organizações de referência, como o
World Cancer Research e o American Institute for Cancer Research, certificam
ligações entre casos de cancro da próstata
com o consumo de leite de vaca
[11]
. Ainda, um estudo levado a cabo pelo
Harvard's Physicians
(publicado em 2000), no qual foram seguidos 20.885 homens durante 11 anos,
revela que consumir duas ou uma porção e meia de produtos
lácteos por dia aumentaria o risco do cancro da próstata em 34%
[12]
.
Nos últimos trinta anos graças aos "programas
informativos" de produtos de origem animal, só nos Estados Unidos,
a obesidade infantil dobrou nas crianças e triplicou nos adolescentes
entre os 12-19 anos
[13]
. A percentagem de crianças obesas entre os 6-11 anos passou dos 7% aos
18% em 2010, e de adolescentes entre os 12-19 anos dos 5% aos 18% do mesmo
período
[14]
.
As tentativas das indústrias de exploração de animais
não humanos em aumentar os seus lucros são permanentes.
E.g.:
o
Internacional Business Times
noticiou que a
International Dairy Foods Association
e a National Milk Producers Federation
pretendem que a Federal Drug Administration
aprove o uso de aspartame no leite de vaca e derivados, sem que as/os
consumidoras/es acedam à presença do químico na
composição das embalagens
[15]
. Que utilidade pode ter este adoçante químico em
lacticínios do ponto de vista da indústria? Para que criem
dependência e, por conseguinte, para que o consumo se intensifique. Que
utilidade pode ter o aspartame para outras indústrias, como a
farmacêutica? É que também provoca graves problemas de
saúde, como alergias, cancros, diabetes, doenças cerebrais
degenerativas, a médio e a longo prazo, cegueira, espasmos, dores de
cabeça, perda de memória, convulsões, defeitos de
nascimento, fadiga crónica, etc.
[16]
Os
lobbies
do agronegócio não constituem propriamente uma novidade nos
países desenvolvidos. Considere-se o exemplo do programa
"The investigators"
(1997), da Fox News, em que os repórteres Steve Wilson e Jane Akre viram
o seu caso de investigação sobre a hormona artificial para
crescimento bovino (rBGH) ser "abafado". Esta hormona artificial (a
Posilac da Monsanto) foi criada para os criadores a administrarem às
vacas e aumentarem a produção de leite. Antes da sua
comercialização, a toxicidade do produto haveria sido testada
durante 90 dias, em 30 ratos
[17]
. A Monsanto não cumpriu com os requisitos de segurança que
obrigavam a que o período mínimo de estudo sobre a viabilidade do
produto tivesse uma duração mínima de dois anos. A
Federal Drug Administration (FDA,)
que aprovara a circulação de Posilac, não retirou o
produto do mercado apesar do aparecimento de estudos que comprovavam que aquele
leite adulterado potenciava o aparecimento de cancro do cólon e da mama.
Prontamente, Steve Wilson e Jane Akre foram intimados a fazer
alterações da peça jornalística de acordo com o
guião dos advogados. Por exemplo, na versão da Monsanto a palavra
"cancro"
deveria ser alterada para
"implicações para a saúde humana"
[18]
. Os advogados da Monsanto prontamente deixaram claro que haveria graves
consequências se a história fosse para o ar e foi exigido que a
Fox efetivasse as modificações. Num dos faxes enviados aos
jornalistas, os advogados da Monsanto mencionaram:
"Nós acabamos de pagar
3.000.000.000 de dólares a estas estações de
televisão. Nós decidimos quais são as notícias. As
notícias são aquilo que nós decidirmos."
[19]
Os receios de um processo judicial e de perder o dinheiro da publicidade da
Monsanto, obrigara a Fox News a despedir os jornalistas e a peça
não foi para o ar. O caso da Fox News é paradigmático de
uma mega estação televisiva, privada, cujos compromissos
empresariais limitam a circulação da livre
informação. Os serviços editoriais de uma
estação televisiva não podem permitir que certas
reportagens ou notícias sejam consumadas e divulgadas. Ainda que a
tónica informativa se centre por vezes na (ir)responsabilidade dos/as
consumidores/as, o financiamento publicitário de grandes multinacionais
da pecuária nos intervalos das programações é
sinónimo de que os mecenas jamais serão beliscados.
Um último exemplo de "programas informativos" dirigidos a
consumidores/as pode ser dado com a página da marca Iglo, também
sediada em Portugal, e que faz referência aos
"Douradinhos".
É um produto essencialmente dirigido para
"crianças, sendo um importante aliado para as mães,
ajudando-as a acabar com as "birras" à hora das
refeições".
A marca manifesta o seu regozijo porque
"em Portugal, são consumidos mais de 66 milhões de
Douradinhos por ano, ou seja, quase 2 douradinhos a cada segundo".
"Os Douradinhos asseguram um crescimento saudável e divertido que
começa no prato pois estão cheios de coisas boas":
nomeadamente o selénio e o ómega 3
[20]
. Embora seja insofismável que muitos peixes possuem selénio e
ómega 3 (tal como consta nos pacotes "Douradinhos"), importa
expor um mito e revelar uma importante omissão desta marca, e da
indústria piscatória em geral, no que à saúde
humana diz respeito. Em relação ao mito: é que estes dois
imprescindíveis nutrientes para a saúde humana (selénio e
Omega 3) estão apenas presentes nos peixes. A castanha de caju, o
gérmen de trigo, a levedura de cerveja, as couves de folha escura, os
brócolos, e os frutos secos contêm grandes quantidades de
selénio. Quanto ao ómega 3 e 6 pode ser encontrado, ainda em
melhores proporções que nos peixes, nas sementes de
linhaça, nas sementes de chia, nozes, sementes de cânhamo, etc.
Estes são truísmos que qualquer licenciado/a em
nutrição adquire na academia. Em relação à
omissão: para a espécie humana o consumo de peixes é a
principal fonte de contacto com o mercúrio que é assimilado pelos
peixes devido à poluição dos rios e dos mares. Por sua
vez, os humanos que consomem os peixes (
e.g.:
cação, atum, sardinha, pescada, salmão, linguado pacu,
etc.) também assimilam doses assinaláveis de mercúrio. De
acordo com a
Organização Mundial de Saúde
o mercúrio é um veneno que tem vários efeitos nocivos em
adultos, crianças e fetos: para o sistema nervoso, cérebro,
sistema imunológico, sistema digestivo, pulmões, rins, pele,
olhos
[21]
. A palavra "mercúrio" não consta nos pacotes da
"Douradinhos".
Nos exemplos de "programas informativos", ou de campanhas
publicitárias, mencionados acima, as empresas de
exploração de "animais para abate" passam uma imagem
positiva dos seus feitos e objetivos: da sua missão digna e útil
à sociedade, dos seus cuidados para com o ambiente e para com os
animais, de como os seus produtos são saudáveis, naturais e
necessários. Estas conceções desfasadas da realidade, que
contam com o apoio mediático e estatal, com a falta de
regulação dos produtos, com a existência de
lobbies
, e com a ambição desenfreada em aumentar os lucros, são
fatores que, em conjunto, resultam no afastamento da opinião
pública dos impactos reais destes produtos na sua própria
saúde; nos animais não humanos explorados; no ambiente; e na
gestão de recursos naturais.
Notas:
(1) E. Bernays também elaborou outras campanhas de sucesso,
e.g.:
fazer com que as mulheres começassem a fumar tabaco como símbolo
de emancipação; colaborou na elaboração do Golpe de
Estado na Guatemala, sendo contratado pela United Fruit Company para aconselhar
Kissinger, Nixon e a CIA.
(2) O próprio Edward Bernays a falar sobre os alegados benefícios
do
Bacon and Eggs:
www.youtube.com/watch?v=KLudEZpMjKU&feature=player_embedded
(3)
Idem
(4) Cf. Denis Campbell, "Cancer risk higher among people who eat more
processed meat, study
finds"
The Guardian,
7 March 2013
www.theguardian.com/society/2013/mar/07/cancer-risk-processed-meat-study
(5) Bernays, Edward (2005)
"Propaganda",
pág. 35, Brooklyn, New York
(6) Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial
"Auto Regulação > Declaração de
Princípios Comuns > III. Normas recomendadas para as boas
práticas de actuação na Auto-Regulação"
www.icap.pt/...
(7) Ver sitio da Mimosa em
www.mimosa.com.pt/mimosa/iniciativas-com-a-comunidade/
(8)
Idem
(9)
Idem
(10) Barreto, Suzete
"Porque não comer carne?",
Saúde Integral; 7 de Junho de
2007
www.saudeintegral.com/artigos/por-que-nao-comer-carne.html
(11) Cf. Physicians Committee for Responsible Medicine
"Milk and Prostate Cancer: The Evidence Mounts"
www.pcrm.org/...
(12)
Idem
(13) Cf. Centers for Disease Control and Prevention,
"Chidhood obesity facts"
11/01/2013
www.cdc.gov/healthyyouth/obesity/facts.htm
(14)
Idem
(15) Christopher Zara,
"Aspartame In Milk: Big Dairy Wants To Sneak In Sweeteners Without
Labels, But There's One Last Chance To Comment On FDA Petition",
Internacional Business Times,
May 21, 2013
www.ibtimes.com/...
(16) O aspartame seria aprovado pela FDA, com a grande
contribuição de Donald Rumsfeld, em 1974. Mais sobre os impactos
do aspartame na saúde humana ver, por exemplo: H.J. Roberts
"For Aspartame Disease: An Ignored Epidemic",
Sunshine Sentinel Press.
(17) The Corporation (2003)
"Monsanto Cancer Milk
FOX NEWS KILLS STORY FIRES Reporters".
www.youtube.com/watch?v=gVKvzHWuJRU
(18)
Idem
(19)
Idem
(20) Cf. Página da Iglo:
"Os douradinhos do Capitão Iglo"
www.iglo.pt/pt-pt/a-iglo/capitao/douradinhos/
(21) Cf. World Health Organization,
"Mercury (International Programme on Chemical Safety)"
(2013)
www.who.int/ipcs/assessment/public_health/mercury/en/
[*]
Do Instituto de Sociologia Universidade do Porto
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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