Dois mundos, duas licenças
por Rafael Evangelista
Embora o termo software livre seja ligado, usualmente, ao sistema operacional
GNU/Linux (o GNU de Richard Stallman mais o Linux de Linus Torvalds) ele
é muito mais do que isso. Para que um software seja livre, ele
não precisa ter nem uma linha de código desses programas mais
famosos. Basta que a sua licença incorpore filosoficamente os
princípios hackers que foram sistetizados por Richard Stallman e
descritos juridicamente por Mark Fischer.
Quando alguém vai até uma loja de software e compra uma caixinha
contendo os CDs de instalação de algum programa, essa pessoa
está, na verdade, adquirindo apenas o direito de usar aquilo. Ela nunca
será dona do sofware, que continua de propriedade de seus autores.
É como quando se compra um CD de música ou um filme em DVD:
você pode ouvir ou assistir aquilo mas não pode vender
cópias e nem mesmo vender uma versão alterada do original sem a
permissão do autor um remix, por exemplo.
ACEITE OU DESISTA
Porém, no caso do software, as condições de venda
são ainda mais duras. Acompanhado dos CDs de instalação
está um documento com valor jurídico chamado licença. Nela
estão descritos os direitos e os deveres sim, deveres dos
usuários - não donos, nem proprietários -
daquele programa. Os verdadeiros donos, os detentores dos direitos autorais ou
das patentes, colocam certas restrições para os usuários,
estipulando o que ele pode fazer ou não com programa. Na prática,
é como se as gravadoras pudessem dizer em que aparelho os CDs podem ser
tocados ou como se uma editora pudesse limitar quem pode ler os livros que ela
publica.
Para que um software seja livre, essa licença precisa ser
filosoficamente, ideologicamente diferente das licenças
proprietárias (do Windows, por exemplo). Quando alguém compra um
programa proprietário, na verdade adquire o direito de usar algo que
é de propriedade de outro. Para usá-lo, é preciso aceitar
as limitações impostas pelo proprietário. Já para
usar um programa livre não é necessário nem ao menos
aceitar a licença nele contida. A liberdade é um princípio
básico.
Isso, no entanto, não significa que não sejam colocadas certas
restrições. Um programa livre sempre permite o uso, o estudo, a
alteração, e distribuição de seu código e de
sua documentação os manuais de uso. Mas, enquanto os dois
primeiros pontos nunca são restringidos, a alteração e a
distribuição é disciplinada. Ninguém pode pegar um
programa livre e torná-lo proprietário, tornar seu o que foi
feito por outro, mesmo que você tenha alterado o código, mesmo
tendo melhorado o programa que recebeu.
USUÁRIOS ESCOLHIDOS
As restrições, na verdade, são muito pequenas se
comparadas às impostas pelo software proprietário. Elas apenas
disciplinam algo que é impossível em softwares como o Windows, ou
seja, olhar e modificar o código. Já aquilo que os sistemas
proprietários disciplinam a execução e o estudo do
código é algo permitido de forma irrestrita pelas
licenças livres. Cidadãos de países considerados inimigos
dos EUA, como Cuba, que são sujeitos a sanções comerciais,
não podem usar os produtos da Microsoft.
Uma leitura atenta do texto das duas licenças mais emblemáticas
de cada mundo revela como há uma distância grande entre elas. A
GPL, Licença Pública Geral, é a mais empregada das
livres e foi a primeira em seu grupo. A EULA, Acordo de
Licença para o Usuário Final, é a que rege, com algumas
pequenas variações de acordo com os softwares, os produtos da
Microsoft.
ENTRE UM MANIFESTO E UM CONTRATO DE NEGÓCIOS
A diferença começa pela própria linguagem empregada. Ambas
são instrumentos jurídicos, ou seja, de leitura não muito
agradável. Mas a GPL parece sempre querer se distanciar disso. Nela,
quem fala não é uma entidade jurídica, sempre na terceira
pessoa, mas o coletivo. O nós é sempre usado
queremos proteger..., queremos evitar... - seja
literalmente ou de forma implícita. Antes de qualquer norma, ela coloca
explicações, justifica as restrições que
estabelece. Para proteger seus direitos, necessitamos fazer
restrições que proíbem que alguém negue esses
direitos a você ou que solicite que você renuncie a eles,
diz. A GPL é quase um manifesto.
Mas essas diferenças vão além da construção
do texto. As restrições colocadas pela EULA são tantas que
é provável que muitos usuários violem seus termos sem
saber, o que coloca mesmo aqueles que adquirem a licença e
não usam software pirata na ilegalidade. Quem compra uma caixinha
com Windows, ou adquire um computador com o sistema pré-instalado, tem
até trinta dias para ativar o produto. Isso significa enviar
à Microsoft, por telefone ou pela internet, algumas
informações sobre o usuário.
Logo quando o software é instalado, é pedido que o usuário
aceite as condições da EULA. Instalar o sistema operacional ou
ativá-lo significa concordar com seus termos, nenhuma cláusula
é negociável. E uma delas diz: Você concorda que a
MS, a Microsoft Corporation e suas afiliadas podem coletar e usar
informações técnicas recolhidas de qualquer forma como
parte do suporte oferecido a você, se houver algum, relacionado ao
software. Não é dito o que pode e o que não pode ser
considerado informação técnica.
A mesma cláusula ainda estipula que essa informação pode
ser usada pela Microsoft ou suas afiliadas somente para a melhoria dos
produtos ou para oferecer serviços e tecnologias adaptados para
você. Ou seja, a empresa exige recolher dos usuários
informações que serão úteis para a melhoria de seus
produtos e, portanto, proporcionarão à empresa melhorar
sua participação no mercado. Mas ela não oferece nada em
troca além da oportunidade de o usuário comprar um novo produto.
CADA COMPUTADOR UMA LICENÇA
E há ainda as limitações para a instalação.
Enquanto os software livres podem ser instalados em quantos computadores e em
quantas máquinas o usuário quiser, a EULA, na sua versão
típica, limita a instalação a apenas uma máquina.
Cada pacote de software deve pertencer a um único computador. Se ele foi
comprado com o sistema operacional, este só poderá ser vendido
acompanhado do computador.
As limitações atingem também os periféricos que
poderão ser instalados e os computadores em rede que poderão
fazer uso de serviços do sistema operacional. Algumas versões da
EULA do Windows limitam o número de processadores a serem usados no
computador que o software está instalado. A EULA do Windows XP Home
Edition limita a cinco o número de aparelhos que podem estar ligados ao
computador.
Projetos como o dos Telecentros, iniciado pela prefeitura de São Paulo,
não poderiam acontecer se os softwares utilizados não fossem
livres. Os Telecentros são formados por um servidor e várias
máquinas clientes, terminais. Ou seja, há um computador central,
mais potente, que recebe os comando de outros, mais simples e baratos, que
apenas emitem as instruções e recebem os resultados. A
licença do Windows XP Professional, usado em redes, permite que no
máximo 10 máquinas usem seus serviços de internet e
impressão. Nos Telecentros, há de 10 a 25 clientes para cada
servidor.
As limitações impostas pelas licenças proprietárias
não existem por acaso, assim como as liberdades do software livre. Elas
resumem um modelos de negócio diferentes. No modelo proprietário,
uma empresa desenvolve um produto, com um certo gasto, e consegue multiplicar
ao infinito seus lucros, pois vende cópias de algo que pode ser
reproduzido, o código. O modelo de negócio livre é outro,
intrinsecamente mais justo. Afinal, algo que foi produzido cooperativamente,
por uma comunidade, deve permanecer livre para todos e pode ser copiado sem
custos para ninguém. Ganham todos e não apenas o monopólio.
13/09/2004
O original encontra-se em
http://www.planetaportoalegre.net/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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