Crescimento e desenvolvimento
por Daniel Vaz de Carvalho
|
Dizer que os interesses do capital e os interesses dos trabalhadores são
os mesmos, equivale simplesmente a dizer que o capital e o trabalho assalariado
são dois aspetos de uma mesma relação. E um se acha
condicionado pelo outro, como o usurário pelo devedor, e vice-versa.
C. Marx, Trabalho assalariado e capital
|
1- A FALÁCIA DO "CRESCIMENTO E EMPREGO"
O governo e os corifeus da tragédia neoliberal exultam apregoando os
"bons indicadores" do crescimento e do emprego. Mas a propaganda
não passa de uma bela embalagem sem nada lá dentro. O PIB regride
relativamente a 2012, cai para níveis de 2000 (há 14 anos!); o
desemprego é mascarado com a emigração e o subemprego
trabalho parcial, por exemplo, de 1 a 10 horas semanais.
Em "Utopía 14", Kurt Vonnegut descreveu uma sociedade de alto
nível tecnológico, dominada por uma camada desfrutando de
elevados padrões de vida, face à grande maioria marginalizada e
vivendo nos limites da subsistência. Admitindo por hipótese que
alguma estabilidade económica e social fosse possível nesta fase
do capitalismo, capitalismo senil, as políticas atuais configuram como
objetivo este modelo de sociedade: uma elite tecnocrática, face a um
proletariado na condição de "servo da gleba". Diga-se
que o livro termina com uma revolução.
No Portugal do salazarismo houve crescimento e emprego associado à
repressão, à miséria, a maior atraso relativo.
[1]
Na América Latina, em países submetidos aos critérios do
FMI e do neoliberalismo, impostos por sangrentas ditaduras, também houve
pelo menos de início, crescimento e emprego com aumento da pobreza e da
dependência externa.
Nos EUA, em dois anos da dita "recuperação
económica", os 7% mais ricos aumentaram em 27% a sua riqueza, mas
para os restantes 93% caiu 4%. O ganho acionista de 50% entre 2011 e 2013,
à custa dos milhões pagos pelos contribuintes, foi na sua grande
maioria para as mãos dos 5% mais ricos.
[2]
Porém, o sistema de saúde é para quem pode pagar e
segundo a "Feeding America" uma em cada seis pessoas passa fome.
Os instrumentos de gestão do Estado que democraticamente poderiam servir
para o desenvolvimento são eliminados e a sociedade entregue aos
"estabilizadores automáticos" dos "mercados", isto
é, ao domínio da especulação e dos
monopólios".
O período pós-guerra constituiu de facto uma fase de
desenvolvimento económico nos principais países capitalistas,
não se podendo ignorar que muito disto se devia a relações
coloniais e neocoloniais com países de capitalismo dependente. Nessa
altura o peso do Estado na economia atingia 50% ou mais do PIB e nos
países mais avançados quase 60%; a FBCF por parte do Estado e o
sector empresarial do Estado eram relevantes e considerados
condição do desenvolvimento económico e social.
Tratava-se de mais uma das máscaras do estado capitalista.
[3]
A derrota do nazi-fascismo, em que o grande capital tinha abertamente
colaborado com os agressores em muitos países e a luta popular, aliada
ao prestígio da URSS e das teses marxistas, obrigavam o sector
capitalista a cedências para conservarem o essencial do seu poder.
De facto, como dizem Marx e Engels no "Manifesto", em capitalismo
"a situação material do operário pode melhorar, mas
à custa da sua situação social" e do seu
empobrecimento relativo.
O neoliberalismo pode, transitoriamente, entre as crises, permitir algum
crescimento, mas sem desenvolvimento. O desenvolvimento visa a máxima
satisfação das necessidades sociais e a sustentabilidade
ecológica. Necessidades sociais que serão tanto mais e melhor
contempladas quanto menor for a desigualdade na repartição do
rendimento e o aumento da produtividade social.
Numa economia sem desenvolvimento, como a neoliberal, o social é
considerado ineficiente visto que não produz lucro visível a
curto prazo e não reverte diretamente para o sector capitalista. As
despesas do Estado só são consideradas eficientes se o sector
capitalista tiver nelas interesse direto. Os apoios sociais, para além
da retórica de propaganda, só não são totalmente
retirados com receio das reações da opinião
pública.
Numa visão de futuro para o planeta e no interesse de todos os povos, os
países mais ricos e de alto nível tecnológico deveriam
concentrar os seus esforços não na corrida armamentista e no
"crescimento" sobretudo à custa dos mais pobres, mas no
desenvolvimento de tecnologias que reduzissem os impactos ambientais e na
melhoria das condições económicas e sociais de todos os
povos. Mas esta evidência e exigência para a própria
sobrevivência da humanidade, mais que uma utopia, trata-se de uma
impossibilidade teórica em termos capitalistas, por muito que tal custe
a ser reconhecido pela social-democracia/socialismo reformista.
2 -OS MITOS DO CRESCIMENTO
A decadência do sistema capitalista nesta fase neoliberal, derradeiro
recurso para a queda da taxa de lucro, torna-se evidente ao verificarmos que
apenas se fundamenta em mitos, negados pela realidade objetiva. A
existência social destes mitos fica apenas a dever-se a intensa
propaganda e à deliquescência ideológica da
social-democracia/socialismo reformista. Destacamos alguns, sem a
pretensão de análise exaustiva que pode ser encontrada em
vários textos deste espaço.
O mito dos "mercados"
corresponde à financeirização da economia, à sua
entrega à especulação e usura, apoiada em paraísos
fiscais, percorrida pela corrupção e pela fraude, suportada pelos
bancos centrais (BCE, FED, etc.). Os "mercados" servem de arma de
agressão social e opressão contra os povos por eles dominados,
concretizada na chantagem dos juros e nos planos de austeridade, com ou sem
troikas.
A eficiência capitalista
, erroneamente dita privada, é outro mito. As grandes empresas mundiais
são monstros burocráticos que só sobrevivem devido ao
poder militar do imperialismo, suas agências económicas (FMI, BM,
OMC, CE, BCE) e serviços conspirativos (CIA, agencias e ONG sob seu
controlo, outros serviços secretos).
As grandes empresas não correm riscos de depender do mercado, por isso
deslocam-se para áreas de lucro garantido na energia,
telecomunicações, distribuição alimentar,
imobiliário e turismo de luxo. Tudo muito longe dos riscos que
teoricamente o capital corre e que servem de argumento para os
privilégios obtidos.
O grande capital não vai à falência, as empresas podem
desaparecer, deslocalizar-se, serem absorvidas, vendidas por partes no
interesse exclusivo dos principais acionistas, com indemnizações
milionárias para os gestores Na banca, os governos assumiram a
responsabilidade pela irresponsável gestão financeira, e fazem-na
pagar aos trabalhadores. Os riscos de mercado estão reservados para as
MPME.
Aqui radica a decantada eficiência capitalista, que acarreta
despedimentos e degradação do nível de vida dos
trabalhadores. O capital permanece intacto, reage à taxa ROE (taxa de
lucro das ações) transforma capital produtivo em capital
fictício.
Se a economia dita de mercado é tão eficiente, então como
explicar as crises, por que não deixam falir os bancos insolventes,
porquê a fraude e a corrupção, a promiscuidade com o
dinheiro sujo do crime organizado, porquê oferecer rendas monopolistas ao
grande capital?
Com o álibi do "crescimento e do emprego" são
concedidos perdões fiscais, redução de impostos,
benefícios fiscais e "incentivos" ao grande capital, que o PS
apoia e a UGT aplaude. A falsa eficiência destes incentivos, resgates
financeiros e outros processos de drenar a riqueza criada para os bolsos de uma
ínfima minoria, está bem patente nos EUA.
Entre o final de 2007 e meados de 2010 o Fed proporcionou 16 milhões de
milhões de dólares para "resgates" ao sistema
bancário e grandes empresas nos EUA e na UE. Um roubo de US$16
milhões de milhões. É ingénuo esperar que a minoria
responsável por um sistema que para ela funciona bem democratize a
economia e a política. Esta é a tarefa central dos 99%.
[4]
O investimento externo
é outro mito numa economia sem planeamento e com livre
transferência de capitais e lucros para paraísos fiscais. Tem sido
uma forma das transnacionais absorverem concorrentes (muitas vezes para os
fecharem) num processo de concentração e
monopolização em que de qualquer forma o país perde o
controlo sobre os processos de desenvolvimento. As privatizações
têm servido para o grande capital transnacional se alojar em sectores
estratégicos da economia e em monopólios naturais exportando
lucros, depauperando o país.
Um outro aspeto é a subcontratação a empresas que podem
ser ou passar a ser do mesmo grupo, baseada na troca desigual, na sub e
sobrefaturação. A estes subcontratos, embora por vezes consistam
na fase mais importante do processo produtivo, cabe apenas uma percentagem
mínima do preço de venda. Num caso estudado (telemóvel
Nokia), esse valor não ia além dos 2%.
[5]
A flexibilidade laboral
é um argumento a que a social-democracia/socialismo reformista e o
sindicalismo colaboracionista se agarram para justificar em nome do crescimento
e do emprego a redução de direitos laborais e salários
reais. A flexibilidade representa o trabalhador sem direitos, sem autonomia,
sem garantias nem no emprego nem no desemprego. O objetivo da flexibilidade
é baixar salários, mas baixos salários provocam a
estagnação económica. A ausência de
"crescimento e emprego" resulta, sim, da falta de investimento
produtivo e de desenvolvimento económico e social, consequência de
uma sociedade hipertrofiada pelo grande capital monopolista, pela usura e pela
especulação.
A ilusão tecnocrática
é um outro mito pelo qual
os problemas e contradições do capitalismo podem ser resolvidos
pela tecnologia. Não é a tecnologia que define ou muda o
padrão e o modo de funcionamento de uma sociedade refira-se por
exemplo, o nazismo ou as condições sociais nos EUA mas sim
as leis fundamentais da economia política que vigoram nessa sociedade.
O consumismo
é outra ilusão propagandeada, a "modernidade" com
precariedade, estagnação ou redução dos
salários reais e consequente endividamento. Representa uma das formas
mais evidentes das contradições do sistema capitalista, sem
dúvida uma das mais perversas, baseada na alienação da
consciência social e ambiental das pessoas. A contradição
entre um crescimento constante, guiado pela maximização do lucro,
num mundo de recursos finitos.
A sociedade espelho desta ideologia são os EUA: com 5% dos habitantes do
planeta consome 25% dos recursos mundiais disponibilizados anualmente e polui
na mesma proporção. Na realidade, "o capitalismo não
tem compromisso com o progresso social, não será capaz de
satisfazer as necessidades da população".
[6]
O free-trade,
o mito da concorrência "livre e não falseada" (com
monopólios!) obriga os países à exportação.
Aos países tecnologicamente menos avançados resta a
competição em nichos de mercado praticamente saturados, na base
de baixos salários e trabalho sem direitos. O significado deste processo
é exemplarmente definido por Marx em "Teorias da Mais Valia":
"O comércio externo determina a forma social das
nações atrasadas".
O "exportar mais" não passa de uma comodidade de
raciocínio, um simplismo para semear ilusões. No estado de
(não) desenvolvimento económico que Portugal atingiu, não
se obtém "crescimento e emprego", isto é, aumento do
mercado interno, com base nas exportações, mas é a partir
do desenvolvimento do mercado interno que se desenvolvem as
exportações.
A solidariedade europeia
é outro mito, a que se agarrou a social-democracia/socialismo reformista
para tentar mascarar a sua decadência ideológica. Mas não
passa de uma ilusão, a "solidariedade europeia" está
apenas ao serviço dos "mercados", não dos povos.
Maurice Allais
[7]
criticou as políticas de mercado livre da UE, o tratado de Maastricht,
previu a bolha imobiliária, opôs-se ao consenso de Washington e a
todas as teses do neoliberalismo e monetarismo. Para M. Allais, contrariando as
políticas da UE, "o mercado livre só é
benéfico em circunstâncias especiais e os seus efeitos só
são favoráveis entre regiões com níveis de
desenvolvimento comparáveis". É uma evidência que
mostra como na UE "o rei vai nu". Foi, apesar do seu
prestígio, silenciado. A então jovem "estrela" do PSF,
Jacques Atalli, conselheiro especial de Mitterrand, depois de Sarkozy, e algo
parecido com F. Hollande (!); ele próprio se tornou financeiro,
considerou estas ideias "estúpidas" e que "todos os
obstáculos ao mercado livre são um fator que leva à
recessão".
[8]
Na realidade, com estes "inteligentes" a UE apenas conheceu
recessão ou estagnação, desemprego e pobreza para
níveis inqualificáveis.
3 COMO CONCLUSÃO
Todas estas falácias soçobram perante as várias crises que
simultaneamente o sistema traz ao mundo: a económica e financeira, a
social, a ambiental, a militarista.
A eficiência capitalista é feita à custa da
exploração imperialista e da troca desigual, da
insegurança dos trabalhadores e da repressão, conduzindo a um
processo de irreversível decadência; depredação
ambiental e a expansão parasitária, estreitamente
interrelacionadas.
As anémicas recuperações são seguidas de
recaídas, a pobreza aumenta, os países capitalistas considerados
mais ricos são Estados cada vez mais insolventes.
A social-democracia/socialismo reformista pretende resolver a crise
económica e financeira e apenas esta! pelo empobrecimento
da classe trabalhadora e a opção pelo militarismo (vide recentes
resoluções na UE sobre o tema e a sua participação
na agressão e desestabilização da Líbia,
Síria, Ucrânia, para só mencionar estes).
O conceito de desenvolvimento opõe-se ao crescimento capitalista,
baseia-se na maximização da eficiência económica
tendo em conta os custos e benefícios sociais e não a
maximização do lucro, o que só é possível
com uma política não capitalista, visando a
construção do socialismo.
Notas
1 Ver
De Carmona a Cavaco e à "salvação nacional"
2
Recuperação para os 7 por cento
, Paul Craig Roberts
3 As máscaras do Estado capitalista, Avelãs Nunes, Ed.
Avante, 2013.
4 Atilio A. Boron,
Socialismo para os ricos, mercado para os pobres
,
5 European Competitiveness Report 2010, Brussels, 28.10.2010, SEC (2010)
1276, p.82.
6 A crise económica mundial, a globalização e o
Brasil, Edmilson Costa, Ed. ICP, 2013, p. 179.
7 Maurice Allais (1911-2011) foi um liberal que se opôs totalmente
ao neoliberalismo, sendo por isso marginalizado. Notável
académico, recebeu o prémio (dito) Nobel de economia em 1988.
Porém, praticamente, a partir daquela data apenas periódicos
progressistas como o
L' Humanité,
publicaram seus textos. Allais opôs à especulação,
à criação monetária pela banca, etc, no geral a
todas as políticas económicas que hoje vigoram na UE. Sendo um
defensor da comunidade europeia nunca admitiu a supressão
sistemática das barreiras alfandegárias, atendendo aos
desníveis económicos existentes. Nos seus estudos
económicos fez entrar aspetos psicológicos, demonstrando a
falsidade dos axiomas neoliberais. Uma das suas ideias interessantes foi a de
opor-se ao "custo de oportunidade", mostrando que não se pode
falar (em termos macroeconómicos) no custo de um bem ou de um
serviço, mas sim do custo de uma decisão. O que nos leva,
obviamente à avaliação no cálculo económico
dos custos e benefícios sociais das decisões políticas.
(ver mais em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Maurice_Allais#mw-navigation
)
8 The Death of Economics, Paul Ormerod, Faber and Faber, Londres, 1994,
p.8
Acerca deste tema ver também:
Reindustrializar
dizem eles
Acerca do desenvolvimento industrial
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|