As contas do sr. Medina Carreira
por Daniel Vaz de Carvalho
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"Se quisermos compreender a realidade íntima e o movimento profundo
da economia capitalista não se pode ficar ao nível das
aparências, deve-se igualmente descobrir e explorar a face oculta dos
fenómenos. Os fenómenos visíveis são os
rendimentos obtidos por diferentes pessoas ou empresas. A realidade
oculta é a maneira como estes rendimentos são criados".
Jacques Gouverneur,
Compreender a Economia
, Ed. Avante, p. 14 e 16.
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1 UMA HISTÓRIA SOBRE COMO SE FAZEM CONTAS
Acontecia os navios que cruzavam o Atlântico carregados de escravos
negros a caminho das Américas demorarem mais que o previsto devido a
tempestades ou calmarias. O comandante tinha então de fazer as seguintes
contas: X dias de viagem que faltam, para Y quantidade de água e
mantimentos, dão para Z pessoas, temos Z+N.
Há pois N negros a mais.
N negros eram então atirados borda fora servindo de
refeição aos tubarões que, animais inteligentes e
normalmente pacíficos (como se pode ver no Oceanário), se
tornavam companhia habitual destes navios, os "negreiros".
As contas do comandante estavam erradas? Ninguém o poderia dizer
considerando inalteráveis os navios mal equipados, mal abastecidos, com
lotação insuficiente para a "carga" remotamente humana.
Além disso, os que os atiravam ao mar bem poderiam dizer que eram
defensores dos escravos
e da escravatura. Esta a metáfora da
"austeridade".
Ninguém pensava, pois, utilizar navios maiores, devidamente abastecidos
ou alterar o curso para rotas mais previsíveis, até porque os
mais fortes sobreviviam e se diminuía a quantidade aumentava a qualidade
e o preço, pelo que o resultado final do "negócio"
não ficaria desfavorecido, muito pelo contrário. As contas
estavam portanto certas
abstraindo que falamos de pessoas, algo que os
escravos só muito remotamente eram considerados como tal e apenas para
trabalhar.
Há portanto várias formas de fazer contas e todas elas certas em
termos matemáticos. Mas a matemática e a econometria sua derivada
nada têm que ver com a ética, a economia política sim e
é esta que abordamos ao fazer contas.
2 AS CONTAS DA DESPESA
Conforme apresentado pelo sr. Medina Carreira
[1]
,
entre 1970 e 1990 o PIB cresceu a uma média anual de 4,3%, mas a
despesa primária 6,8%; entre 1990 e 2010 o PIB cresceu a 1,9% e a
despesa a 4,0%. As despesas sociais cresceram entre 1970 e 2010, a uma
média anual de 6,5%, mas o PIB 3,0%. Assim em percentagem do PIB as
despesas sociais passam de 7,8% em 1970 para 30,2% em 2010, representando em
1970, 39% dos impostos, em 2010, 88%. Há assim um excesso de despesas
sobre as receitas sendo necessário cortar 6 000 M até 2018
(com crescimento de 1,5%), segundo o DEO 7 000 M até 2019.
Quando se diz que 38% dos impostos são para pagar pensões
está-se a ignorar que reformas e pensões pagam impostos e
são o resultado de anterior regime contributivo entregue ao Estado,
não podendo ser tratadas como esmolas ou, pior, como "roubo".
"Roubo", mas ao capital rentista das PPP e concessões, aos
monopolistas das privatizações, aos especuladores dos SWAP,
à agiotagem internacional que recebe do BCE a 0,5 ou 0,25% e empresta
sem risco a 3%, 4% ou mais.
A questão da não sustentabilidade da Segurança Social
é uma falácia como bem demonstrado nos livros coordenados por
Raquel Varela
[2]
ou nos textos de Eugénio Rosa, entre outros. Só o ambiente de
não contraditório em que as opiniões são difundidas
permitem ignorar estes trabalhos.
Quanto às prestações do Sistema de Proteção
Social de Cidadania (não contributivo) (por ex. complemento para idosos,
antigos combatentes, etc) representa solidariedade cidadã e
não caridade. Mas mesmo assim é uma solidariedade interessada
(não interesseira
) pois é também um contributo a
dinamização económica, que em 2011 correspondia a 3 620
M. Contra isto se voltam os defensores do "rigor", dizendo que
não há dinheiro, ao mesmo tempo que de repente aparecem 4 900
M para fingir que se "salva" o BES. Formas diferentes de fazer
contas e ser "rigoroso".
Sem prestações sociais quase 50% da população
estaria na pobreza, mesmo assim Portugal foi o país da UE onde em 2013
mais aumentou a "severa privação material". Apesar
disto, o valor das prestações sociais é apresentado como
uma causa da estagnação e endividamento, quando é uma
consequência de políticas erradas que a isso conduziram: o modelo
de integração na UE e no euro, a ruir nos seus pés de
barro.
Sem se temer a grosseria, as prestações sociais são
qualificadas de "eleitoralismo" para satisfazer "interesses
limitados", "para agradar a funcionários, reformados,
doentes" (!?). É a moral do navio negreiro, moram os que não
podem pagar saúde, incluindo a alimentação adequada. Fazer
comparações elogiosas com o salazarismo ofende o simples bom
senso, mesmo que não se disponha de conceitos humanistas. Acaba por ser
a sedução por uma sociedade oprimida, analfabeta, com fome,
vegetando no obscurantismo e na repressão, com a inteligência
perseguida, mortalidade infantil e materna ao nível de países do
"terceiro mundo".
[3]
3 ACERCA DA DESPESA SOCIAL
Em 2011, a despesa com prestações sociais em Portugal
correspondia a 26,5% do PIB quando a média na UE-28 era de 29% do PIB;
em euros por habitante, era na UE-28 de 6.666 , em Portugal, apenas de
3.890, ou seja, 58% da média da UE. Note-se que a produtividade
(PIB por trabalhador) era 62% da média da UE (dados AMECO).
Despesas sociais são consumo e investimento. Educação e
saúde são também investimentos, fundamentais para o futuro
do país e seu desenvolvimento. Pelo seu efeito multiplicador na economia
estas despesas transformar-se-iam em novo investimento, assim houvesse como
determina a Constituição um Plano Económico voltado para o
desenvolvimento da produção nacional.
Há despesas reprodutivas e não reprodutivas. O investimento e as
prestações sociais são (podem ser) reprodutivos, mas os
"contratos leoninos" das PPP (prof. Carlos Moreno), a
especulação dos SWAP, os juros de dívida ilegítima,
ilegal ou odiosa
[4]
, os lucros das SPGS colocados em paraísos fiscais, as rendas
monopolistas, não são reprodutivos.
Não há uma compreensão do que representam as despesas
sociais como fatores de equilíbrio económico e social. Na
realidade os cortes destinam-se a permitir satisfazer a gula dos
"mercados", máscara que a oligarquia nacional e estrangeira
assume para oprimir e explorar os povos da UE, respaldada em tratados
iníquos e num conjunto de dogmas totalmente desacreditados.
Por ação da crise em 2008 o crescimento real foi nulo, em 2009
caiu 2,9%. Há um enorme aumento da despesa e uma
diminuição da receita, em 2009 de 3 970 M. Assim, de 2006
para 2010 o défice público passou de 7 400 para 17 000 M, a
dívida de 102 000 para 162 000 M.
Embora a despesa em salários da função pública em
2010 fosse apenas 0,7% superior à de 2006. As despesas sociais tiveram
significativo aumento devido ao número de trabalhadores empurrados para
reformas antecipadas na função pública e nas empresas
privadas, pois a palavra de ordem era reduzir pessoal, com o argumento da
"eficiência"! Bem alertava a CGTP para o que se estava a criar.
O crescente desemprego e os apoios à pobreza foram fontes adicionais de
encargos. Além disto, de 2005 para 2010, as despesas com juros, consumos
intermédios, subsídios e outras despesas correntes aumentaram
26,8%.
Com a troika, em quatro anos, de 2011 a 2014, a austeridade somou 28 247
M, os juros 28 528,8 M, os défices orçamentais
34.646,2 M; a dívida pública passou de 94% em 2010 para
133% do PIB no 1º trimestre de 2014. Estes números configuram uma
economia totalmente fora de controlo. Perante este descalabro, não se
descortina mais do que prosseguir na via caótica da
"austeridade".
4 PARA ONDE VAI O DINHEIRO
Dizer-se que não podemos influenciar a economia, aumentar mais o
nível de impostos, fazer moeda, pedir mais dinheiro emprestado,
só há para cortar salários e prestações
sociais, não passa de tautologia, um raciocínio redundante e
falacioso, cuja lógica interna é à partida definida sem
saídas. Tudo está perfeito na UE, imutável como leis
divinas, este assim é o melhor dos mundos possíveis, temos
é que nos adaptar a ele e
cortar nos salários e
prestações sociais. Pelos vistos há quem nunca tenha
ouvido falar em renegociação da dívida
A responsabilidade da situação cabe então ao TC que se
baseia em "ideias vagas e nebulosas" como o princípio da
"igualdade e da confiança e não deixa baixar a despesa"
(?!). É espantoso considerar "ideias vagas e nebulosas",
"coisas esquisitas", princípios validados desde o
século XVIII
Nenhuma análise é válida se não tiver em conta os
contextos quer internos quer externos. Conhecer apenas um lado da
questão é, como disse Espinosa, não a conhecer de todo.
Com base nos relatórios do Banco de Portugal o saldo do que sai do
país em juros de privados, dividendos, lucros e transferências com
a UE atingiu de 2000 a 2013 um valor negativo de cerca de 11 mil milhões
de euros, uma média anual de 766 M, que de 2007 a 2013, atingiu 1
430 M.
A estes valores devemos somar os juros pagos pelo Estado: entre 2000 e 2013, 69
500 M, uma média anual de 4 964 M ano, que se agravou nos
anos da troika para 7 130 M. O "ajustamento" é
tão só um processo de garantir transferência de riqueza
para a oligarquia usurária e monopolista.
Segundo a CMVM, entre 2010 e 2013, o valor das ações das empresas
cotadas na bolsa subiu de 193 224 milhões de euros para 229 285
milhões de euros, os seus proprietários aumentaram 36 061 M
as suas fortunas (21,7% do PIB). O Governo recusa-se a lançar impostos
sobre estas gigantescas mais-valias que, excluindo as pequenas
poupanças, são transferidas para paraísos fiscais.
As dívidas à Segurança Social, muitas delas referentes a
descontos feitos nos salários dos trabalhadores, faz perder todos os
anos mais de 3.000 M de receitas.
[6]
A renegociação da dívida permitiria libertar até 5
600 M; em 2013 foram entregues por conta das SWAP 1 008 M existindo
1 200 M de perdas potenciais que o Supremo Tribunal de Justiça
confirmou ser uma dívida ilegítima. Em 2012 os benefícios
fiscais às SPGS, escondidos pelo governo, mas revelado pelo Tribunal de
Contas, ascenderam a 1 045 M.
Relativamente ao orçamento de 2014, a CGTP elaborou um estudo em que sem
austeridade poderia haver um aumento de receita do Estado de 10 313,5 M.
Tratava-se de tributar o grande capital, grandes lucros, transferências
financeiras, progressividade do IRC. O documento previa também um
desagravamento fiscal no IRS e no IVA permitindo aumentar o rendimento
disponível das famílias em 3.482,4 M, ou seja, um saldo de
6.831,1 M.
[7]
Mesmo que apenas 80% daquele montante se concretizasse, não seria
necessária mais austeridade, seria possível repor o que foi
anteriormente cortado e concretizar investimento público produtivo. Em
abril de 2013 a CGTP calculava uma redução da despesa, no valor
de 10.373 M, nomeadamente com poupança nos juros da dívida,
eliminação da sobretaxa da "ajuda" da troika (1.744,9
M), eliminação de potenciais perdas do Estado com o BPN,
eliminação dos benefícios fiscais e da
dedução de prejuízos no sector financeiro,
redução da TIR das PPP rodoviárias.
[8]
A economia de um país deve ser avaliada pela forma como procede para a
maioria da população. O seu nível civilizacional pela
forma como trata os seus velhos, as suas crianças, os seus jovens.
São estes, e os "doentes", que são considerados
"interesses limitados".
Depois de uma década de estagnação, brutal agravamento dos
défices da Balança Comercial, acumular de dívida, perda de
potencial produtivo, a situação tornava-se insustentável
como foi desde logo clarificado, sendo ridicularizado como "a
cassete". A "solução" dos partidos da troika
interna, perdidos no naufrágio neoliberal, foi aprovarem sucessivos PEC
até ao pedido de intervenção da troika externa que
só agravou o que então se propunha sanear.
Como no caso do navio negreiro, mantendo tudo igual era necessário
atirar ao mar gente viva. O caminho seria evidentemente outro, mas quem
põe de parte a análise marxista dificilmente entende que as
conjunturas resultam das estruturas produtivas e modos de
produção existentes.
Notas
[1] TVI-24,
Olhos nos Olhos
, 28/07/2014
[2]
A segurança social é sustentável
,
Quem paga o Estado Social em Portugal?
, Ed. Bertrand.
[3]
De Carmona a Cavaco e à "salvação nacional
[4]
Alternativas à dívida e sua renegociação
,
[5]
O que o governo quer comemorar em 17/Maio/2014
, Eugénio Rosa
[6]
A ignorância e a mentira na campanha de manipulação da opinião pública contra a Segurança Social
, Eugénio Rosa
[7]
Propostas da CGTP-IN para a política fiscal, Por uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, Contra a Exploração e o Empobrecimento
, Lisboa, 25/Outubro/2013
[8]
Propostas da CGTP. In Contra a Exploração e o Empobrecimento, Uma vida melhor
, Abril/2013
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http://resistir.info/
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