Os processos de mudança no Uruguai num novo contexto continental

por Carlos Flanagan [*]

Manifestação em Montevideo. É indubitável que no nosso pequeno país o 1º de Março será notícia e objecto de comentários, análises e curiosidade a nível internacional.

Não é caso para menos, já que após mais de 150 anos de governo dos Partidos chamados “tradicionais” ou “fundacionais”; o Partido Colorado (que governara o país – excepto em três períodos (1958-1962, 1962-1966 e 1989-1994) durante todo o século XX – e o Partido Nacional (ou Blanco). [1]

Não é menos importante notar que ambos os Partidos, junto com o Liberal e Conservador da Colômbia e o Republicano e Democrata dos EUA, são dos mais antigos do mundo.

Muitos jornalistas, analistas e politólogos costumam fazer – além de uma ou outra variante de estilo – a seguinte pergunta: “a quem se parecerá o governo de Tabaré Vázquez: ao de Lula, ao de Chávez ou ao de Kirchner?”. Nós, comunistas uruguaios, sorrimos e respondemos que o governo de Tabaré Vázquez se parecerá.... ao de Tabaré Vázquez!

E de nada servem os jogos de palavras. Pelo contrário. Para os militantes que se formaram no Partido de Rodney Arismendi e de José Luis Massera, esta é uma resposta natural. Arismendi, um intelectual orgânico e dirigente de Partido respeitado, soube ter a coragem intelectual de ser muitas vezes um “herege” para o movimento comunista internacional. Quando, em finais da década de 50 e nos anos 60 afirmava que no Uruguai, dadas as suas características, a aliança principal não era a “operário-camponesa” e sim da classe operária com as camadas médias da cidade e do campo. Assim, havia que dar prioridade à aliança socialista-comunista para preparar uma Frente Democrática de Libertação Nacional. Em síntese, foi um materialista dialéctico consequente, no sentido em que aplicou “com a própria cabeça” (não existe outra forma acertada de o fazer) a teoria à análise da realidade material concreta do nosso país, expressa na Declaração Programática do PCU de 1958, ou na elaboração da tese sobre a democracia avançada como etapa prévia ao socialismo, num processo de governo popular; um grande contributo à teoria marxista, que passou praticamente despercebido e que tem hoje mais actualidade que nunca no processo uruguaio. [2]

A PECULIARIDADE URUGUAIA

Além das características próprias das políticas internas dos governos vizinhos da Argentina e do Brasil, cuja análise não constitui objecto deste breve artigo, ou das do processo de mudanças estruturais profundas da Revolução Bolivariana, na irmã Venezuela, é inegável que o quadro regional no qual a esquerda conquista o governo no Uruguai é marcadamente distinto e muito mais favorável que o de há cinco anos atrás.

Tendo na devida conta este marco regional, passamos a enumerar algumas características próprias que nos diferenciam de outros processos.

Em primeiro lugar, o processo de acumulação de forças no forjamento de ferramentas unitárias. Já na Declaração Programática de 1958 do PCU se delineiam as tarefas políticas principais a conseguir na etapa: a unidade da classe operária numa central única, a unidade da esquerda numa frente comum e para isso e em simultâneo, a construção de um grande Partido Comunista de quadros e de massas.

Em 1964, mais de 600 organizações sociais e sindicais reunidas no Congresso do Povo, uniram-se numa plataforma programática e reivindicativa comum. No ano seguinte forma-se a Convenção Nacional de Trabalhadores, que unifica as três centrais existentes e que hoje permanece como PIT-CNT.

Em 5 de Fevereiro de 1971 nasce a Frente Ampla, cadinho no qual se unem cristãos e marxistas, mulheres e homens independentes ou provenientes dos chamados Partidos tradicionais. Unidos por um Estatuto, uma estrutura orgânica, um programa e candidatos comuns. Um programa de corte nacional, popular e democrático e por conseguinte anti-oligárquico e anti-imperialista. Não é um programa socialista. Passados 34 anos, a Frente Ampla continua unida e passou com honra a dura prova da ditadura fascista que assolou o país. Mas não é possível compreender cabalmente o nascimento da FA, sem se referir aos antecedentes do ano de 1962, de experiências unitárias de esquerda da Frente de Esquerda de Libertação (FIDEL) formada pelos comunistas e independentes e figuras vindas dos Partidos tradicionais, que ainda existem dentro da nossa sub-coligação Democracia Avançada, e a União Popular, de socialistas e blancos, hoje desaparecida.

Num processo de ampliação do leque de alianças, surge em 1994 o Encontro Progressista e em 2004 a Nova Maioria.

A FA – EP – NM conseguiu quase um impossível: triunfar na primeira volta e conquistar o governo com maiorias absolutas em ambas as Câmaras (Senadores e Deputados). A lei eleitoral, aprovada por reforma constitucional para as passadas eleições de 1999, instituiu a segunda volta para evitar o já palpável triunfo da esquerda. Para ganhar na primeira volta foi preciso obter metade mais um dos votos emitidos. Portanto, também pesavam contra os votos nulos e brancos. Isto é uma diferencia substancial em relação ao governo do PT e seus aliados no Brasil, que estão em minoria no Parlamento.

Por isso, é claro que o nosso processo histórico na construção de um conglomerado social e suas ferramentas unitárias sociais não sindicais, sindicais e políticas difere dos processos de outros países do continente.

O PROGRAMA DO NOVO GOVERNO E O PAPEL DOS COMUNISTAS

O nosso programa de governo, foi elaborado ao longo de mais de uma década, no âmbito de diferentes unidades temáticas, abertas a todos os militantes da FA – EP –NM que quiseram participar. Estes trabalhos, actualizados, foram formando o plano de governo aprovado pelo IV Congresso da Frente Ampla em Dezembro de 2003. Portanto, as grandes linhas programáticas são mandato de Congresso; são lei para todos os membros da Frente Ampla.

Este programa abarca cinco áreas temáticas:

  • o Uruguai produtivo
  • o Uruguai social
  • o Uruguai inovador e inteligente
  • o Uruguai democrático
  • o Uruguai integrado na região e no mundo

O desenvolvimento destes eixos programáticos em conferências dadas pelo Companheiro Dr. Tabaré Vázquez pode ser encontrado no sítio web www.epfaprensa.org .

O Comp. Tabaré afirmou, durante toda a campanha eleitoral pelo país, e reafirmou enfaticamente no acto de massas de encerramento de campanha de 27.10.2004: “se não formos capazes de implementar nos primeiros meses um plano de emergência que tenha em conta e erradique a situação de emergência social que afecta tantos compatriotas, não merecemos que nos chamem de esquerda, nem sequer progressistas”.

Para tanto será criado por lei o Ministério de Políticas e Participação Social, que coordenará e aplicará as políticas sociais do novo governo. Esse Ministério comandará o Plan de Atención Nacional a la Emergencia Social (PANES). Esta tarefa definida pelo Comp. Tabaré como o “navio insígnia” do governo, que começará a implementar-se a partir de 1 de Março, foi confiada ao PCU, nas pessoas das Camaradas Marina Arismendi e Ana María Olivera, como ministra e sub-secretária respectivamente, com o apoio de todo o Gabinete Ministerial. O futuro Presidente foi taxativo ao dizer a todos os ministros: “todos em apoio do Plano de Emergência por um futuro melhor”.

É um reconhecimento por parte do Comp. Tabaré à trajectória do PCU e à sua real inserção de massas nos sindicatos, nas organizações sociais não sindicais em cada bairro ao longo e ao largo do país.

Para os membros e apoiantes da FA em geral, e para nós comunistas em particular, é uma tremenda responsabilidade impulsionar o projecto junto às grandes maiorias nacionais organizadas e mobilizadas em cada bairro, cada cidade e cada aldeia da nossa pátria; para que o sintam, o façam seu, o apliquem e o defendam. Não podemos defraudar a esperança e a alegria que o nosso povo hoje recobrou.

Notas
1- No século XX devemos excluir da alternância bipartidária o golpe de Estado do Presidente Gabriel Terra (1933-1936) e a ditadura civil-militar de corte fascista (1973-1984).

2- A via uruguaia para o socialismo deve ser vista dialeticamente unida ao caminho de avanço da democracia no país, da sua consolidação, aprofundamento e desenvolvimento”. “Este processo de um governo popular na etapa de democracia avançada é uma via de aproximação nas tarefas democrático – libertadoras do curso revolucionário, até ao culminar da fase agrária e anti-imperialista, fase inicial na conquista do socialismo”. (Conferência Nacional do PCU – 1985).


[*] Secretário de Relações Internacionais do PCU.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

26/Fev/05