Os intelectuais e a luta pela paz
por Rui Namorado Rosa
A vida dos povos sempre esteve interdependente mediante relações
de troca comerciais e culturais. Na actual etapa imperialista do capitalismo,
essa interdependência tem-se ampliado em resultado da
intensificação dos fluxos comerciais e financeiros,
necessária à própria sustentação deste
sistema. A desintegração do bloco de países socialistas e
a integração mundial do capital financeiro derrubou fronteiras
à exploração da força de trabalho e dos recursos
naturais. As fábricas deslocalizam-se e mesmo actividades de
alta-tecnologia são deslocalizadas para periferias cada vez mais
remotas. Pelo contrário, trabalhadores altamente qualificados,
designadamente criadores intelectuais, como artistas e investigadores
científicos, são atraídos para os centros do sistema. A
larga maioria partilha a sorte dos trabalhadores não qualificados,
forçados a procurar trabalho em circunstâncias precárias,
embora sob a amável designação de mobilidade, com estatuto
de respeitabilidade social cada vez mais vazio de regalias sociais.
Este processo é mundial. Mas a União Europeia acelera-o à
sua escala. A criação dos espaços europeus do Ensino, da
Formação e da Investigação, entre outros planos de
acção, procuram derrubar fronteiras à
formação de uma força de trabalho flutuante, flexibilizada
e tanto quanto possível destituída de direitos fundamentais e
segurança social, enquanto as desregulamentações e a
apropriação privada de bens e património comuns, abrem
espaço para mercados cada vez mais omnipresentes, onde o grande capital
circula livremente, em prejuízo da fruição de bens e
serviços públicos que os povos europeus já haviam
conquistado. O alargamento da União Europeia a Leste é uma etapa
importante deste processo.
O capitalismo é por sua natureza desumano. O sistema, quando não
consegue comandar os recursos físicos e humanos de que necessita para a
sua sustentabilidade por meios pacíficos, ou seja, de
discreta violência, recorre à violência aberta, a guerra.
Desde a queda do sistema socialista, várias guerras foram travadas,
já sem o constrangimento de outras forças dissuasoras. Nos
Balcãs, para desembaraçar o caminho à
construção da nova Europa. No Golfo
Pérsico-Arábico e na Ásia Central, por sucessivas vezes,
incluindo as recentes intervenção no Afeganistão e
ocupação do Iraque, com o fito de realizar o controlo
geoestratégico dessa vasta região, para a rapina das mais
valiosas reservas mundiais de energia.
Observamos um movimento de reversão da ordem internacional saída
da Segunda Guerra Mundial e dos progressos sociais e económicos
adquiridos pelos trabalhadores desde então. Nos últimos treze
anos, A Rússia e os países do Leste da Europa sofreram perdas
económicas e sociais maiores do que as consequências directas da
Guerra-Fria. Na última década, no quadro da NATO (ou por esta
estimulada) estados europeus participaram na guerra de desmantelamento da
Jugoslávia, no ataque ao Afeganistão e na
intervenção agressiva dos EUA no Iraque. Agora, sob a hegemonia
mundial do capitalismo, velhos perigos se agravam e novos perigos entram em
cena. Por um lado, temos agressivas intervenções
humanitárias, a marginalização ou a
manipulação da ONU, a subversão da lei internacional,
novas estratégias de guerra preventiva e
acções concretas de guerra ao terrorismo. Enquanto,
por outro lado, temos a ascensão tolerada ou estimulada de movimentos
racistas, neofascistas, nacionalistas e extremistas. Por um lado ou pelo outro,
ou conjugadamente pelos dois, o capital internacional realiza o trabalho de
sapa ou o trabalho sujo com que prepara o terreno em que instala seja os seus
mercados seja as suas bases militares.
Os recentes desenvolvimentos militares, no mundo e particularmente na Europa,
comprovam que a guerra é parte integrante das relações de
produção capitalistas; que num quadro de guerra permanente e
global, à guerra-fria sucederam novos conceitos de guerra
preventiva, antiterrorista, etc.
A luta pelos direitos fundamentais -- incluindo o direito ao trabalho e à
segurança social -- e a luta pela Paz contra a guerra, estão
intimamente associados entre si. Têm o mesmo adversário comum: a
desumanidade do sistema de produção capitalista que se exerce
através da exploração e da violência. Daí a
razão de ser e a necessidade de solidariedade internacional entre os
povos e entre os trabalhadores em especial. A causa da Paz é uma causa
comum. E quando levada às suas raízes mais profundas, a luta pela
Paz é a luta contra o capitalismo, por uma sociedade humanizada, liberta
da exploração do homem e respeitadora dos limites da
exploração dos recursos naturais.
A Paz e a segurança são fundamentais à vida, aos direitos
humanos, à justiça, ao progresso material e espiritual, à
civilização. A coexistência pacífica de povos e de
estados são um elevado valor civilizacional que temos de preservar e
conquistar. A chamada construção europeia não
deve dividir o continente, nem isolá-lo dos povos vizinhos, antes
deverá manter e aprofundar essas relações. Tal como
não pode ignorar, tem de cumprir, os valores da igualdade, da equidade,
da justiça e da solidariedade entre os próprios estados membros.
A União Europeia, em que Portugal se integrou não pode,
não deve, ser um bloco político, económico e ainda menos
militar, contra nenhum outro povo ou estado. A União Europeia deve
contribuir para a ordem internacional, segundo os princípios da Carta da
ONU e dos tratados internacionais validados posteriormente, para a
prevenção de conflitos civis e militares, para a
resolução pacífica de disputas. Através da sua
intervenção na ONU, na Organização para a
Segurança e Cooperação na Europa e na UE, os estados
europeus devem prosseguir vias de desarmamento, de relações
internacionais pacíficas, de abstenção de uso
desproporcionado da força, de prevenção de tensões
e potenciais conflitos, de resolução pacífica de disputas
no seu seio e na sua vizinhança, de cooperação no
interesse mútuo entre os estados.
Temos pois de estar vigilantes e críticos quanto ao conteúdo da
Convenção Europeia sobre a cidadania, a relação
entre estados e o posicionamento da União Europeia no contexto
internacional. Assim como também vigilantes e actuantes contra os
desígnios de manter a NATO instrumento de agressão e
não estrutura de defesa a actuar, seja na Europa seja no Golfo
Pérsico-Arábico, bem como contra o desígnio de criar
forças armadas ou de intervenção rápida europeias,
para actuarem em parte alguma do mundo.
Os trabalhadores intelectuais, através dos seus conhecimentos
profissionais e dos seus relacionamentos internacionais, podem dar uma
contribuição valiosa para a análise dos problemas
relativos à sua qualidade de trabalhadores no contexto internacional, e
bem assim os relativos aos domínios de conhecimento ou de
criação em que trabalham. Através das redes de contactos
profissionais, das associações, federações ou
uniões internacionais, sindicais, científicas ou culturais, em
que estão filiados, eles participam na formulação e no
intercâmbio de questões, análises e propostas, que
são património valioso e necessário à
orientação das lutas comuns, nos planos de cada país e
internacional.
Os trabalhadores intelectuais estão ao lado de todos os demais
trabalhadores nos movimentos, passados e presentes, de denúncia da
guerra e de mobilização pela Paz. Após a Segunda Guerra
Mundial, artistas, cientistas e outros trabalhadores mantiveram abertos canais
de comunicação entre povos cujos estados estavam em guerra
latente, fazendo prevalecer a mensagem da compreensão e da
solidariedade, por essa via defendendo a Paz e derrotando a guerra. Em
particular, os trabalhadores científicos através da sua
Federação Mundial e do movimento Pugwash tiveram importante
acção na informação ao público e na
persuasão dos governos, no sentido de denunciarem a corrida armamentista
e de prevenirem a guerra nuclear.
No curso deste último ano, os trabalhadores intelectuais foram parte
activa e insubstituível na denuncia das mentiras dos agentes belicistas,
na contestação da invasão e na denuncia da
ocupação do Iraque, por múltiplas formas, designadamente
também em impressionantes mobilizações de massas
sintonizadas à escala mundial a 15 de Fevereiro, a 20 de
Março e a 25 de Outubro de 2003 e em breve de novo a 20 de
Março próximo.
Em Portugal, os trabalhadores intelectuais têm mantido a sua
participação activa em movimentos de solidariedade e de
cooperação, nos núcleos locais pela Paz, na torrente do
movimento sindical. Esta frente de trabalho não pode deixar
ninguém indiferente e sempre pode encontrar forma de se exprimir em
qualquer parte.
Ao ganhar as consciências para a causa da Paz, ao denunciar a violenta
arrogância dos senhores da guerra, está-se a questionar e a acusar
o próprio imperialismo.
A nossa causa é de sempre e é de hoje. Há dias, o
primeiro-ministro anunciou ao país a decisão do Governo
português em enviar uma presença militar para o
Afeganistão. Invocou a legitimidade da ocupação do
Afeganistão por forças estrangeiras à luz de
resolução das Nações Unidas e foi mais longe,
afirmando o interesse em que a NATO assuma uma posição
formal na ocupação daquele país.
O governo português considera como boa a cobertura da ONU nuns casos e
não a considera necessária noutros como seja recentemente
na Palestina e no Iraque. Repudiamos a existência e, ainda mais, o
alargamento do âmbito de intervenção de um bloco militar
a NATO, supostamente de defesa mas de facto braço armado do
imperialismo a áreas remotas dos seus países membros,
tornando-o de num instrumento de intervenção em qualquer
parte do mundo e, neste caso concreto, até insidiosamente apresentado
como estando ao serviço da ONU.
Assistimos a uma escalada em que essa organização militar vai
cada vez mais abertamente tomando uma postura ofensiva, processo em que o
governo português também tem responsabilidade e na qual parece
querer adoptar protagonismo. Este protagonismo, à semelhança do
adoptado na cimeira dos Açores, antecipando o ataque ao Iraque em
Março de 2003, não serve os interesses dos povos nem o do povo
português em particular. Pelo contrário, cria dificuldades
às normais relações entre os povos e distorce a imagem do
povo português no mundo - um povo tolerante, aberto a solidário
com outros povos e culturas. A política subsidiária e seguidista
do governo português não serve os seus interesses e repudiamos a
ideia que o povo português seja levado a servir interesses alheios e
contra-humanistas.
Não é pela via da força e da imposição
militar que se resolvem os numerosos e complexos problemas que se colocam ao
mundo. De uma forma ou de outra, são todos os povos as vítimas de
tal opção agressiva de contornos imperiais. Os povos querem a
cooperação e a Paz que significam a vida, o bem-estar, o
progresso material e espiritual e a fraternal solidariedade.
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