Os intelectuais e a luta pela paz

por Rui Namorado Rosa

'Viva a paz', de Picasso. A vida dos povos sempre esteve interdependente mediante relações de troca comerciais e culturais. Na actual etapa imperialista do capitalismo, essa interdependência tem-se ampliado em resultado da intensificação dos fluxos comerciais e financeiros, necessária à própria sustentação deste sistema. A desintegração do bloco de países socialistas e a integração mundial do capital financeiro derrubou fronteiras à exploração da força de trabalho e dos recursos naturais. As fábricas deslocalizam-se e mesmo actividades de alta-tecnologia são deslocalizadas para periferias cada vez mais remotas. Pelo contrário, trabalhadores altamente qualificados, designadamente criadores intelectuais, como artistas e investigadores científicos, são atraídos para os centros do sistema. A larga maioria partilha a sorte dos trabalhadores não qualificados, forçados a procurar trabalho em circunstâncias precárias, embora sob a amável designação de mobilidade, com estatuto de respeitabilidade social cada vez mais vazio de regalias sociais.

Este processo é mundial. Mas a União Europeia acelera-o à sua escala. A criação dos espaços europeus do Ensino, da Formação e da Investigação, entre outros planos de acção, procuram derrubar fronteiras à formação de uma força de trabalho flutuante, flexibilizada e tanto quanto possível destituída de direitos fundamentais e segurança social, enquanto as desregulamentações e a apropriação privada de bens e património comuns, abrem espaço para mercados cada vez mais omnipresentes, onde o grande capital circula livremente, em prejuízo da fruição de bens e serviços públicos que os povos europeus já haviam conquistado. O alargamento da União Europeia a Leste é uma etapa importante deste processo.

O capitalismo é por sua natureza desumano. O sistema, quando não consegue comandar os recursos físicos e humanos de que necessita para a sua “sustentabilidade” por meios pacíficos, ou seja, de discreta violência, recorre à violência aberta, a guerra. Desde a queda do sistema socialista, várias guerras foram travadas, já sem o constrangimento de outras forças dissuasoras. Nos Balcãs, para desembaraçar o caminho à “construção” da “nova Europa”. No Golfo Pérsico-Arábico e na Ásia Central, por sucessivas vezes, incluindo as recentes intervenção no Afeganistão e ocupação do Iraque, com o fito de realizar o controlo geoestratégico dessa vasta região, para a rapina das mais valiosas reservas mundiais de energia.

Observamos um movimento de reversão da ordem internacional saída da Segunda Guerra Mundial e dos progressos sociais e económicos adquiridos pelos trabalhadores desde então. Nos últimos treze anos, A Rússia e os países do Leste da Europa sofreram perdas económicas e sociais maiores do que as consequências directas da Guerra-Fria. Na última década, no quadro da NATO (ou por esta estimulada) estados europeus participaram na guerra de desmantelamento da Jugoslávia, no ataque ao Afeganistão e na intervenção agressiva dos EUA no Iraque. Agora, sob a hegemonia mundial do capitalismo, velhos perigos se agravam e novos perigos entram em cena. Por um lado, temos agressivas “intervenções humanitárias”, a marginalização ou a manipulação da ONU, a subversão da lei internacional, novas estratégias de “guerra preventiva” e acções concretas de “guerra ao terrorismo”. Enquanto, por outro lado, temos a ascensão tolerada ou estimulada de movimentos racistas, neofascistas, nacionalistas e extremistas. Por um lado ou pelo outro, ou conjugadamente pelos dois, o capital internacional realiza o trabalho de sapa ou o trabalho sujo com que prepara o terreno em que instala seja os seus mercados seja as suas bases militares.

Os recentes desenvolvimentos militares, no mundo e particularmente na Europa, comprovam que a guerra é parte integrante das relações de produção capitalistas; que num quadro de guerra permanente e global, à “guerra-fria” sucederam novos conceitos de guerra – “preventiva”, “antiterrorista”, etc.

A luta pelos direitos fundamentais -- incluindo o direito ao trabalho e à segurança social -- e a luta pela Paz contra a guerra, estão intimamente associados entre si. Têm o mesmo adversário comum: a desumanidade do sistema de produção capitalista que se exerce através da exploração e da violência. Daí a razão de ser e a necessidade de solidariedade internacional entre os povos e entre os trabalhadores em especial. A causa da Paz é uma causa comum. E quando levada às suas raízes mais profundas, a luta pela Paz é a luta contra o capitalismo, por uma sociedade humanizada, liberta da exploração do homem e respeitadora dos limites da exploração dos recursos naturais.

A Paz e a segurança são fundamentais à vida, aos direitos humanos, à justiça, ao progresso material e espiritual, à civilização. A coexistência pacífica de povos e de estados são um elevado valor civilizacional que temos de preservar e conquistar. A chamada “construção europeia” não deve dividir o continente, nem isolá-lo dos povos vizinhos, antes deverá manter e aprofundar essas relações. Tal como não pode ignorar, tem de cumprir, os valores da igualdade, da equidade, da justiça e da solidariedade entre os próprios estados membros. A União Europeia, em que Portugal se integrou não pode, não deve, ser um bloco político, económico e ainda menos militar, contra nenhum outro povo ou estado. A União Europeia deve contribuir para a ordem internacional, segundo os princípios da Carta da ONU e dos tratados internacionais validados posteriormente, para a prevenção de conflitos civis e militares, para a resolução pacífica de disputas. Através da sua intervenção na ONU, na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e na UE, os estados europeus devem prosseguir vias de desarmamento, de relações internacionais pacíficas, de abstenção de uso desproporcionado da força, de prevenção de tensões e potenciais conflitos, de resolução pacífica de disputas no seu seio e na sua vizinhança, de cooperação no interesse mútuo entre os estados.

Temos pois de estar vigilantes e críticos quanto ao conteúdo da Convenção Europeia sobre a cidadania, a relação entre estados e o posicionamento da União Europeia no contexto internacional. Assim como também vigilantes e actuantes contra os desígnios de manter a NATO – instrumento de agressão e não estrutura de defesa – a actuar, seja na Europa seja no Golfo Pérsico-Arábico, bem como contra o desígnio de criar forças armadas ou de intervenção rápida europeias, para actuarem em parte alguma do mundo.

Os trabalhadores intelectuais, através dos seus conhecimentos profissionais e dos seus relacionamentos internacionais, podem dar uma contribuição valiosa para a análise dos problemas relativos à sua qualidade de trabalhadores no contexto internacional, e bem assim os relativos aos domínios de conhecimento ou de criação em que trabalham. Através das redes de contactos profissionais, das associações, federações ou uniões internacionais, sindicais, científicas ou culturais, em que estão filiados, eles participam na formulação e no intercâmbio de questões, análises e propostas, que são património valioso e necessário à orientação das lutas comuns, nos planos de cada país e internacional.

Os trabalhadores intelectuais estão ao lado de todos os demais trabalhadores nos movimentos, passados e presentes, de denúncia da guerra e de mobilização pela Paz. Após a Segunda Guerra Mundial, artistas, cientistas e outros trabalhadores mantiveram abertos canais de comunicação entre povos cujos estados estavam em guerra latente, fazendo prevalecer a mensagem da compreensão e da solidariedade, por essa via defendendo a Paz e derrotando a guerra. Em particular, os trabalhadores científicos – através da sua Federação Mundial e do movimento Pugwash – tiveram importante acção na informação ao público e na persuasão dos governos, no sentido de denunciarem a corrida armamentista e de prevenirem a guerra nuclear.

No curso deste último ano, os trabalhadores intelectuais foram parte activa e insubstituível na denuncia das mentiras dos agentes belicistas, na contestação da invasão e na denuncia da ocupação do Iraque, por múltiplas formas, designadamente também em impressionantes mobilizações de massas sintonizadas à escala mundial – a 15 de Fevereiro, a 20 de Março e a 25 de Outubro de 2003 – e em breve de novo a 20 de Março próximo.

Em Portugal, os trabalhadores intelectuais têm mantido a sua participação activa em movimentos de solidariedade e de cooperação, nos núcleos locais pela Paz, na torrente do movimento sindical. Esta frente de trabalho não pode deixar ninguém indiferente e sempre pode encontrar forma de se exprimir em qualquer parte.

Ao ganhar as consciências para a causa da Paz, ao denunciar a violenta arrogância dos senhores da guerra, está-se a questionar e a acusar o próprio imperialismo.

A nossa causa é de sempre e é de hoje. Há dias, o primeiro-ministro anunciou ao país a decisão do Governo português em enviar uma presença militar para o Afeganistão. Invocou a legitimidade da ocupação do Afeganistão por forças estrangeiras à luz de resolução das Nações Unidas e foi mais longe, afirmando o interesse em que a NATO assuma uma posição formal na ocupação daquele país.

O governo português considera como boa a cobertura da ONU nuns casos e não a considera necessária noutros — como seja recentemente na Palestina e no Iraque. Repudiamos a existência e, ainda mais, o alargamento do âmbito de intervenção de um bloco militar — a NATO, supostamente de defesa mas de facto braço armado do imperialismo — a áreas remotas dos seus países membros, tornando-o de num instrumento de intervenção em qualquer parte do mundo e, neste caso concreto, até insidiosamente apresentado como estando ao serviço da ONU.

Assistimos a uma escalada em que essa organização militar vai cada vez mais abertamente tomando uma postura ofensiva, processo em que o governo português também tem responsabilidade e na qual parece querer adoptar protagonismo. Este protagonismo, à semelhança do adoptado na cimeira dos Açores, antecipando o ataque ao Iraque em Março de 2003, não serve os interesses dos povos nem o do povo português em particular. Pelo contrário, cria dificuldades às normais relações entre os povos e distorce a imagem do povo português no mundo - um povo tolerante, aberto a solidário com outros povos e culturas. A política subsidiária e seguidista do governo português não serve os seus interesses e repudiamos a ideia que o povo português seja levado a servir interesses alheios e contra-humanistas.

Não é pela via da força e da imposição militar que se resolvem os numerosos e complexos problemas que se colocam ao mundo. De uma forma ou de outra, são todos os povos as vítimas de tal opção agressiva de contornos imperiais. Os povos querem a cooperação e a Paz que significam a vida, o bem-estar, o progresso material e espiritual e a fraternal solidariedade.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

17/Fev/04