Aprendizes de Feiticeiro

Rui Namorado Rosa



A História, desde a antiguidade até hoje, continua a ser objecto de Teatro. Também episódios e sucessos da História da Ciência são por vezes temas de peças teatrais.

The Physicist é uma peça de 1962 por F. Dürrenmatt em que o autor reúne três físicos encerrados num asilo, supostamente doidos, personalizando o Rei Salomão, Newton e Einstein, que argumentam preocupados sobre o uso que as suas secretas descobertas nucleares poderiam ter se apropriadas por mãos diabólicas. O tema era então de enorme actualidade; o seu tratamento questionava intelectual e emocionalmente o público a propósito de graves preocupações contemporâneas, sem o recurso a factos históricos, mantendo óbvio distanciamento ficcional; a peça mereceu grande sucesso na época. Copenhagen é uma recente peça de Michael Fray (ed. Methuen 1998) que, de novo abordando a génese das armas nucleares, dramatiza o encontro historicamente real de Werner Heisenberg, admitido responsável do programa nuclear da Alemanha nazi, com Niels Bohr, seu antigo mestre, na Dinamarca ocupada pelo exército alemão, em 1941. Esse facto histórico, envolvendo dois dos mais notáveis físicos do século XX, tem ao longo dos anos sido objecto de especulação acerca dos motivos de ambas as partes e do que elas terão então dito e escondido, especulação esta alimentada pela posterior atitude, ambígua ou contraditória, de ambos os protagonistas acerca do sucedido então. O distanciamento em relação ao facto histórico é obtido dramatizando o retorno dos dois personagens do além túmulo para os colocar eles mesmos a discutir o que acontecera nesse encontro.

O essencial da peça é a problematização da reconstrução histórica e o problema epistemológico de em que medida cada um pode conhecer de facto as motivações de outrém e de si próprio. O autor procurou uma situação ficcional mas ao mesmo tempo o maior rigor histórico; o resultado é uma excelente peça, com enorme êxito desde a sua estreia em Londres em 1997, tendo ainda o mérito de levar a um público muito amplo a problematização da responsabilidade moral dos cientistas. O impacto público da peça realimentou a especulação em torno desse encontro e levou mesmo a família de Niels Bohr a decidir antecipar a divulgação de cartas que este escrevera mas nunca enviara a Heisenberg — o que aconteceu em Fevereiro deste ano de 2002. Todavia o debate, embora mais esclarecido, continua provavelmente porque, para além dos factos históricos, estão agora em jogo sobretudo questões filosóficas e morais.

As relações da Ciência e da Técnica com o poder político existiram desde sempre, e na esfera militar em particular. O aperfeiçoamento da metalurgia do ferro na Anatólia há 3200 anos, permitiu o fabrico em massa de armas com que foram equipados os primeiros grandes exércitos da antiguidade – Assírio e Persa – como recorda Heródoto nas suas Histórias. O desenvolvimento de armas de fogo, de artilharia e para a infantaria, após a introdução da pólvora na Europa no século XIV, permitiu a expansão dos impérios coloniais e foi instrumental no declínio do poder feudal.

O recente livro Les Apprentis Sorciers – Fritz Haber, Wernher von Braun, Edward Teller da autoria de Michel Rival, Ed. du Seuil, 1996 (versão em português Aprendizes de Feiticeiro, o armamento no século XX , Editorial Caminho , 2002), recorda e analisa o papel de três cientistas que protagonizaram algumas das mais mortíferas inovações técnicas militares do último século: a guerra química, a guerra balística e a guerra nuclear. É uma excelente obra sobre a história da indústria armamentista no século XX. A partir dos percursos individuais de Fritz Haber, Wernher von Braun e Edward Teller analisa o contexto político, geo-estratégico e militar em que surgiram as armas químicas, os mísseis e as armas nucleares. São casos excepcionais mas paradigmáticos de cientistas que personalizaram a progressiva constituição do complexo científico-militar-industrial, com uma obstinação de que estava ausente a consciência moral, sob um discurso abstracto de justificação patriótica e científica, vazio de valores humanos.

Entre 1914 e 1915, Fritz Haber, um químico alemão de nomeada, inventou os "gases de combate", precursores das armas químicas que marcaram tragicamente a Primeira Guerra Mundial; só em 1997 viria a ser assinada uma convenção internacional para o seu banimento, cujo cumprimento está porém ainda longe de ser cumprido. Em 1944, Wernher von Braun, então um jovem especialista alemão de foguetões, inventou as «bombas voadoras» V-2, responsáveis por milhares de vítimas em Londres e em Antuérpia durante a Segunda Guerra Mundial; prosseguiu depois o seu percurso nos Estados Unidos da América como um dos fundadores da indústria balística, indústria que tem produzido sucessivas gerações de mísseis mortíferos utilizados nas Guerras do Golfo e dos Balcãs, depois no Afeganistão e mesmo agora na Palestina, e que constitui peça central da "guerra das estrelas". Em 1952, Edward Teller revelou o enorme potencial destruidor da fusão termonuclear e inventou a Bomba de Hidrogénio; após o que promoveu a constituição de um arsenal de tais armas e defendeu a ideia do seu uso, contribuindo para a corrida aos armamentos que caracterizou toda a "guerra fria" e que ainda hoje continua a afligir a cena política internacional.

Numa altura em que a humanidade se confronta com novos conceitos de guerra e suas assustadoras armas, Aprendizes de Feiticeiro expõe, de um modo acessível mas claro e bem documentado, as ambições de cientistas e políticos que, ao serviço de ciclópicos interesses económicos, foram assimiladas e corporizadas no complexo militar-industrial para intensamente marcarem a história do armamento e da política internacional ao longo do último século. Mas é necessário registar também que a consciência social e o pacifismo têm sido uma outra face da acção activamente exercida por muitos outros cientistas, a título individual e de forma organizada.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em Julho de 1946, foi constituída a Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, com o propósito de estabelecer o diálogo internacional para a prevalência da Paz. Alguns anos depois, em Julho de 1955, a declaração de Albert Einstein e Bertrand Russell sobre armas nucleares abriu caminho à constituição do movimento Pugwash que anualmente realiza conferências internacionais sobre as problemáticas dos armamentos e da Paz. Joseph Rotblat, um dos seus fundadores e impulsionador de sempre, veio a ser reconhecido com o prémio Nobel da Paz em 1995. Também o movimento internacional de Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear , recipiente do prémio Nobel de 1985, se tem batido persistentemente pela abolição não só das armas nucleares, de efeitos catastróficos como em Hiroshima e Nagazaki, como também de minas terrestre e de pequenas armas de utilização corrente e indiscriminada que continuamente causam elevadíssimo número de vítimas.

As decisões sobre Ciência e Técnica, que se repercutem não só na realização de progressos sociais mas também no exercício da exploração e da guerra, não cabem só à capacidade profissional e à consciência moral dos cientistas, cabem igualmente à sua compreensão pelos demais cidadãos e à vigilância cívica de todos sobre o poder político. Daí a importância da Escola. E também a importância de todas as formas eficazes de levar ao povo o conhecimento da História e a percepção e a reflexão sobre as questões sociais e morais que a Ciência coloca. Pelo Teatro também, como a peça Copenhagen é um dos mais recentes e respeitáveis exemplos.

22/Abr/02