Serás pobre
Trabalhes ou estejas desempregado, serás pobre. É esta a mensagem
subjacente às transformações que estão a ser
feitas, em simultâneo, no mundo do trabalho e na protecção
social no desemprego. É esta a sociedade de pobreza, com mais pobres e
maior intensidade de pobreza, que está a ser construída de forma
estrutural, porque o que se passa ao nível das
remunerações salariais e da protecção social tem
efeitos sobre todo o edifício económico, social e
político. Uma sociedade que era já das mais desiguais antes da
crise está a tornar-se mais desigual ainda.
Portugal caracteriza-se há muito por níveis salariais
extremamente baixos quando comparados com a média europeia. Mas a
"desvalorização interna" dos últimos anos mostra
que termos salários que são pouco mais de metade da média
dos salários na União Europeia (56,4%) não é ainda
suficiente nesta corrida para o abismo do trabalho (quase) escravo. Nos
últimos anos, além dos cortes salariais no sector público
(26%) e no sector privado (13%), registou-se uma acentuada quebra dos
salários nos novos contratos e nos contratos a termo (e mais no trabalho
feminino do que no masculino). Assim, entre 2012 e 2013, "
verificou-se uma travagem a fundo e os salários recuaram 1,9%,
correspondendo agora a uma média de 808 euros mensais
líquidos"
; e os trabalhadores que sofreram um corte maior, de 6% no último
trimestre de 2013, foram os diplomados do ensino superior, apesar de
continuarem a ter, em média, salários mais elevados
[1]
.
A confirmar esta percepção de que os novos empregos criados
são cada vez mais trabalhos de miséria está a
informação recente de que
"os contratos de trabalho feitos de Outubro de 2013 para cá e que
ainda estão em vigor apontam para um salário base de cerca de 581
euros brutos por mês"
[2]
. Isto é, os novos salários tendem a aproximar-se do
salário mínimo nacional, ainda agora aumentado para os 505 euros
mensais.
A construção desta pobreza laboral, que não é uma
característica nacional mas neoliberal, assenta em vários
factores, da emigração forçada (superior a 400 mil
pessoas) às várias formas de desregulação do
emprego. Nestas formas incluem-se as deslocalizações, a
precariedade, o trabalho temporário e a tempo parcial, os
estágios remunerados com fundos comunitários ou públicos,
sem perspectivas de inserção no mercado de trabalho, ou ainda o
(auto)emprego através da criação de empresas de desespero,
as quais, mascaradas por uma retórica de "empreendedorismo
individual", são em geral uma via para o sobreendividamento pessoal.
É este admirável mundo novo da emigração, da
precariedade, do biscate, do estágio perpétuo e do endividamento
para poder trabalhar que facilita a aceitação de
remunerações cada vez mais miseráveis. O exército
de reserva dos desempregados é hoje inseparável do
exército de reserva dos trabalhadores pobres e das
remunerações baixas. As estatísticas que usámos
durante décadas terão de ser muito afinadas para traduzirem bem
as novas realidades que as políticas sociais e de emprego devem combater.
Quando organismos como o Instituto Nacional de Estatística (INE)
apresentam os dados do desemprego (13,7% no primeiro trimestre de 2015) causam
entre os cidadãos uma certa ambivalência. Porque, sendo já
de si elevadíssimos, percebe-se que não contam com realidades bem
conhecidas: os que já desesperam das grilhetas da
apresentação quinzenal no Centro de Emprego, de onde não
vem qualquer trabalho; os que emigraram e continuam a pensar voltar mal
arranjem trabalho cá; os que trabalham muito menos horas (e semanas, e
meses
) do que estão disponíveis para trabalhar; etc.
É por isso importante surgirem estudos que ajudem a compreender melhor a
realidade. Exemplo disso é o estudo do "Barómetro das
Crise", onde se afirma que,
"tendo em conta as diversas formas de desemprego, o subemprego e
estimativas prudentes sobre a situação laboral dos novos
emigrantes, a taxa real de desemprego poderia situar-se, no segundo semestre de
2014, em 29% da população ativa"
[3]
. De facto, não só os números da criação de
emprego são francamente decepcionantes (pouco e mau emprego), como os
níveis do desemprego, em vez de descerem substancialmente,
mantêm-se perigosamente estáveis a níveis muito elevados
(muito e mau desemprego).
Regressemos à ideia de que as políticas actuais generalizam a
pobreza, tanto de quem trabalha como de quem está desempregado, por via
de uma actuação simultânea no mundo do trabalho e na
protecção social no desemprego. Se existe alguma racionalidade
individual que não colectiva em aceitar trabalhos
miseráveis ("é melhor que nada"), é justamente
porque esse "nada" foi fabricado, a montante, nas políticas
sociais, pela crescente desprotecção social, desde logo no
subsídio de desemprego e demais prestações, ainda para
mais num quadro de permanência de níveis muito elevados de
desemprego de longa duração.
É este o papel político da desprotecção social dos
desempregados. Quando temos, segundo dados do Instituto do Emprego e
Formação Profissional (IEFP), menos 100 mil empregos protegidos
entre Dezembro de 2012 e Dezembro de 2014, e quando chegamos a taxas de
absoluta desprotecção (sem subsídio de desemprego, nem
subsídio social de desemprego inicial, nem subsídio social de
desemprego subsequente) de quase metade dos desempregados
"oficialmente" registados (46% no segundo trimestre, 49% no quarto
trimestre de 2014)
[4]
, compreendemos que é um dos pilares do Estado social que está a
ser destruído. Qual? O direito à protecção social
no desemprego, condição fundamental para a igualdade de direitos
e de oportunidades, direito que combate a pobreza protegendo todos os
trabalhadores e a própria Segurança Social, ao impedir o
abaixamento das contribuições gerais pela aceitação
de quaisquer níveis remuneratórios.
Ainda para mais, a outra prestação social o rendimento
social de inserção (RSI), não criado especificamente para
os desempregados e dependendo apenas da falta de rendimentos que poderia
aliviar dramáticas situações de pobreza, não tem
acompanhado as necessidades decorrentes da crise e deixa crescentemente sem
protecção desempregados que já esgotaram a
duração do subsídio. É aqui que importa mexer, com
carácter de urgência, para que o Estado social garanta
níveis dignos de protecção social.
Se nem para defender o Estado social se conseguir implantar políticas
robustas, como escolher pelo menos um dos outros vértices (o Tratado
Orçamental ou a dívida pública actual) do
"triângulo das impossibilidades da política
orçamental",
na expressão do economista Ricardo Paes Mamede, de cujo cumprimento
terá de se abdicar para ser possível reverter a austeridade e o
empobrecimento?
10/Maio/2015
[1] Raquel Martins, "Licenciados sofreram a maior queda nos
salários em 2013",
Público,
8 de Fevereiro de 2014.
[2] Catarina Almeida Pereira, "Empresas estão a contratar com
salário-base de 581 euros",
Jornal de Negócios,
26 de Março de 2015.
[3] "Barómetro das Crises n.º13", 26 de Março de
2015,
www.ces.uc.pt/...
[4] Os números aqui referidos foram compilados pelo jornalista
João Ramos de Almeida, a quem agradeço.
[*]
Economista.
O original encontra-se em
pt.mondediplo.com/spip.php?article1057
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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