Problema nosso

por David Martelo [*]

        Continuando uma tradição com quase quatro décadas, celebramos no presente convívio o 40.º aniversário da arrancada libertadora do Movimento dos Capitães e do erguer de um dos padrões mais significativos da nossa história de quase nove séculos. Nessa arrebatadora aventura, iniciada por Afonso Henriques, a consolidação da independência e o alargamento do território, de aquém e de além-mar, foi, desde sempre e fundamentalmente, problema dos que arriscavam a vida de armas na mão.

        Quando, já no tempo dos nossos pais, Portugal se deixou agrilhoar por uma quase interminável ditadura, foi problema nosso, dos militares, tentar por 16 vezes, embora sem êxito, colocar ao serviço da liberdade as armas que então detínhamos. E foi doloroso problema dos militares envolvidos nessas tentativas, o conjunto de medidas retaliatórias a eles aplicadas, que iam da reforma compulsiva à demissão sem quaisquer direitos, da prolongada prisão ao degredo ou ao forçado exílio.

        Iniciadas as guerras em Angola, Guiné e Moçambique, foi problema nosso aguentar o peso maior de um longo e difícil conflito, como foi problema nosso garantir ao poder político o tempo mais do que suficiente para a adopção de uma solução política.

        Foi problema nosso termos que sofrer as críticas dos nossos concidadãos, que injustamente nos acusavam de não acabarmos vitoriosamente com as guerras porque estávamos a lucrar financeiramente com o seu arrastamento.

        Como foi problema nosso o sermos vistos como pilares de um regime que se não legitimava no voto livre e justo e reprimia com violência a minoria que se atrevia a resistir.

        Foi problema nosso conhecer aprofundadamente o risco e a morte e com eles fazer a intimidade necessária à valorização da vida. E, para tal, foi problema nosso fazer do medo coragem – a única virtude que se não pode fingir, como dizia Napoleão.

        Foi problema nosso – que hoje comemoramos – derrubar o regime do Estado Novo, restituindo a liberdade ao povo português, confiados em que os mecanismos democráticos constituíssem, apesar de tudo, a melhor forma de o país se reencontrar, num cenário de paz e de progresso social.

        Também foi problema nosso conduzir um espinhoso processo de descolonização, após 13 anos de guerras – caso raro no contexto colonial europeu – e, caso verdadeiramente único, enquanto a Metrópole se agitava num complexo processo revolucionário, de transição para um regime democrático.

        Foi problema nosso criar as condições para a elaboração de uma Constituição democrática, fundamento do Estado de Direito, cujo respeito a todos deveria salvaguardar de qualquer tipo de tirania. E foi problema nosso entregar o poder na hora prometida, pressentindo já a animosidade que, vinda dos novos poderes, sobre nós se abateria.

        Foi e continua a ser problema nosso assistir ao medrar de uma classe política carreirista, onde surgem, com frequência cada vez maior, as cliques corruptas que, beneficiando de cumplicidades partidárias, vão ao ponto de assaltar bancos, sem máscara nem temor de castigo.

        Foi e é problema nosso constatar que mais remunerador do que ser ministro é a ascensão à categoria de ex-ministro, estatuto que, para não poucos, em vez de currículo merecia constituir cadastro.

        Foi e é problema nosso suportar a sistemática deselegância e a proverbial ingratidão da maior parte daqueles a quem oferecemos de mão beijada a possibilidade de alcançar o poder, por via da liberdade readquirida.

        Depois de tudo isto, nos anos de crise mais recentes, em que a mentira e o desrespeito pela lei se reforçaram no poder, tem sido problema nosso e dos portugueses da nossa geração sermos miseravelmente tratados como indevida "despesa" e vergonhosamente desprezados, só por teimarmos em permanecer vivos.

Não admira, por isso, que também tenha sido problema nosso o sobressalto que, não poucas vezes, nos terá transportado a um sonho em que, ao som da Grândola Vila Morena, nos víamos, uma vez mais, a sair dos quartéis para repor a ordem na subversão reinante, recuperar a esperança e impedir que também prescreva a liberdade.

        Mas nunca será problema nosso – antes será motivo de imorredouro orgulho – a memória desse dia inicial, inteiro e limpo onde, nas palavras de Sophia, emergimos da noite e do silêncio.

Porto, 25 de Abril de 2014

[*] Coronel, historiador militar. Alocução proferida no IASFA/Porto, por ocasião do convívio de oficiais comemorativo do 40.º aniversário do 25 de Abril.

Este discurso encontra-se em http://resistir.info/ .
26/Abr/14