A minha passagem por Caxias
Como a CIA ensinou os portugueses a torturar
por Christopher Reed
[*]
nota de esclarecimento
[**]
Durante vários dias, no princípio do verão de 1974, tive
acesso livre a uma estranha e terrível prisão próxima a
Lisboa, então vazia devido ao golpe que no mês de Abril findou 48
anos de ditadura fascista em Portugal. O meu tempo na prisão de Caxias
foi uma experiência jamais esquecida, mas eu não esperava que as
memórias retornassem tão vivamente hoje devido ao
estímulo dos Estados Unidos.
Minhas recordações colocam a questão de saber se Caxias
era o princípio do arquipélago prisional americano, o controle
penal sem lei
que hoje se estende desde Guantanamo, em Cuba, ao Médio Oriente, ao
Afeganistão e às instalações clandestinas na
Colômbia, nas Filipinas e em outros lugares desconhecidos, bem como
suspeitos paraísos da tortura por procuração como a
Síria. Quando é que os prisioneiros políticos do mundo
começaram a responder não aos seus compatriotas e sim ao Tio Sam?
A prisão de Caxias era dirigida pela polícia secreta, a Pide
(Polícia Internacional de Defesa do Estado), temida pelos
portugueses. Os peões atravessavam a rua para evitar passar em frente
à sua sede em Lisboa. Caxias era uma velha fortaleza próxima ao
mar, mas no seu interior havia uma moderna câmara de tortura que
utilizava as mais recentes técnicas de coerção
concebidas pela US Central Intelligence Agency.
Durante décadas, milhares de prisioneiros políticos,
principalmente comunistas e socialistas, deram entrada em Caxias para tortura
sistemática e a seguir foram soltos. Por que estes subversivos
conhecidos, que haviam dedicado as suas vidas à destruição
da ditadura, puderam retornar à liberdade? Porque o êxito das
técnicas modernas de tortura importadas pela Pide significava que as
suas vidas anteriores haviam-se tornado irrelevantes? Nas palavras da Pide,
eles haviam sido "jogados fora do tabuleiro de xadrez". As suas
vidas, velhas ou novas, foram destruídas.
O meu guia em Caxias foi um psiquiatra português treinado em Edinburgh, o
qual, felizmente por um período curto, fora ali prisioneiro. Ele
contou-me que muitos prisioneiros libertados, especialmente os comunistas
considerados como os mais difíceis de quebrar não
voltavam para casa. Ao invés disso afastavam-se das suas
famílias, conseguiam um emprego simples, ou caiam no alcoolismo,
até mudavam de nomes; tais eram as suas novas vidas como zumbis
mentais, criado pela coerção. (Isto foi confirmado por outro
psiquiatra que entrevistei que tratou vítimas de Caxias).
O ponto central da tortura era a privação do sono, uma nova
descoberta guardada num manual secreto com 128 páginas produzido pela
CIA em Julho de 1963 e denominado
Kubark Counterintelligence Interrogation
. Foi-me dito várias vezes em Caxias que os métodos da Pide
provinham da CIA, embora eu não tenha visto uma cópia do Kubark
(a palavra é um nome em código para a própria
agência). Contudo, Portugal é e era membro da NATO, e como o seu
Partido Comunista clandestino era encarado como a maior ameaça à
segurança do país, e a Guerra Fria ia de vento em popa, parece
não haver dúvida de que a agência de
inteligência americana, destinada a combater o comunismo por toda a
parte, foi a fonte. Ela tinha também a informação mais
recente sobre "interrogatório coercivo".
Isto tornou-se mais claro ao examinar com atenção o manual
Kubark, o qual foi desclassificado em 1997 quando o
Baltimore Sun
ameaçou iniciar um processo de acordo com a lei americana Freedom of
Information Act. Ali descreve-se claramente o que eu vi dos métodos de
Caxias, e o que li a respeito nos relatórios internos da Pide durante as
minhas visitas à prisão em 1974.
O capítulo nove do Kubark, intitulado "Interrogatório
coercivo de fontes resistentes pela contra-inteligência"
(Coercive Counterintelligence Interrogation of Resistant Sources)
, recomenda privação do sono e sensorial a fim de produzir a
"síndrome DDD" de "debilidade, dependência e
medo"
("debility, dependence, and dread")
nos
"interrogados". (Observe-se a desumanização desta
palavra). As vítimas podiam ser reduzidas à submissão
numa questão de horas ou dias, dizia-se ali, mas advertia-se a seguir
contra "aplicações duras que ultrapassam o ponto dos danos
psicológicos irreversíveis". Esta última frase
confirma o que a Pide estava a fazer.
O objectivo do interrogatório da CIA, como Kubark enfatiza
reiteradamente, era informação, daí a advertência.
Mas quão convenientemente isto servia a Pide, a qual estava menos
interessada na informação das suas vítimas do que na sua
destruição. Caxias adoptou o Kubark, mas levou deliberadamente
os seus métodos ao extremo contra o qual se advertia. Mas como a mente
que elaborou o manual do torturador cuidadosamente observa, "A validade
dos argumentos éticos acerca da coerção ultrapassa o
âmbito deste documento".
Cumprindo as recomendações do manual, as células à
prova de som de Caxias não continham distracções. As
paredes e os tectos eram brancos mas permaneciam marcas arranhadas eram
fontes excelentes para estimular as alucinações que os
prisioneiros experimentavam após os primeiros poucos dias sem sono. A
iluminação, como o Kubark recomendava, era fraca, artificial, e a
sua fonte invisível. Enormes aparelhos escondidos de ar
condicionado-aquecimento podiam em minutos tornar a temperatura da sala fria
como o gelo ou ardente como o deserto.
O mobiliário, principalmente uma mesa e umas poucas cadeiras, era
protegido nas pontas para impedir os prisioneiros de se tentarem matar chocando
a cabeça contra os mesmos, como fizeram alguns. Os tectos da cela
tinham alto-falantes que difundiam sons ruidosos e terrificantes, ou por vezes
os choros e soluços das suas esposas ou filhos. A Pide havia-os gravado
e executava-os a partir do "estúdio" central que eu vi.
As refeições eram servidas aleatoriamente, de modo deliberado.
Um aparente pequeno-almoço podia chegar às 16 horas; o jantar
à meio da noite. Não eram permitidos relógios. Ah, sim
as células não tinham camas. O record de
privação de sono de um prisioneiro foi de um jovem engenheiro, um
comunista, mantido desperto durante um mês. Ele cometeu o
suicídio após a sua libertação.
Como se pode manter alguém desperto durante semanas? O meu amigo
psiquiatra
sentou-me na mesa revestida de plástico e pediu-me para fingir que
adormecia. Fechei os olhos para ser sacudido por uma aguda mas
penetrante série de sons metálicos. Ele havia apanhado uma moeda
de um escudo e simplesmente batia-a sobre a mesa. Espantosamente,
habitualmente isto era suficiente, e os guardas revezavam-se horas sem fim. Um
outro método era lançar uma caneca de água fria na cara do
prisioneiro. E naturalmente as gravações em fita estavam sempre
disponíveis.
Em tempos mais antigos a Pide era famosa pela brutalidade da tortura. Mas isto
foi suavizado com os seus benevolentes guias da CIA; a violência era
evitada. Eu vi um relatório sobre um responsável da Pide
rebaixado por bater num prisioneiro, renovando assim a sua resistência.
Como diz o Kubark-CIA: "A brutalidade física directa apenas cria
ressentimento, hostilidade, e mais desafio". O relato sobre o
responsável da Pide queixava-se de que a sua violência havia
"atrasado o tratamento". Os prisioneiros de Caxias não eram
deixados nus e não sofriam coerção sexual
sistemática. Isto veio anos depois em 1983 quando a CIA
actualizou o Kubark e recomendou despir prisioneiros e mantê-los
vendados. Presumivelmente, o acréscimo da manipulação
sexual é a ideia mais recente dos intelectuais americanos da
tortura.
O manual de 1983, utilizado entusiasticamente pelos clientes da CIA nas odiosas
guerras "contra" aos nacionalistas de esquerda da América
Central nos anos do presidente Reagan, foi alterado em 1985 após
publicidade desfavorável. Uma página inserida declarava:
"A utilização de força, tortura mental,
ameaças, insultos, ou exposição a tratamento desumano de
qualquer espécie como ajuda ao interrogatório é proibida
pela lei tanto internacionalmente como internamente; não é nem
autorizada nem perdoada". Mas, como eles dizem, o que vai de um lugar
para outro acaba por voltar.
21/Mai/2004
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Christopher Reed foi o correspondente do
London Guardian
em Portugal entre 1974 e 1976. Escreve agora para o
London Observer
e outros jornais. O seu email é:
christopherreed@earthlink.net
.
O manual da CIA encontra-se em
http://www.kimsoft.com/2000/kubark.htm
.
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Alguns reparos ao artigo "A minha passagem por Caxias", de Christopher Reed
Sendo o objectivo deste artigo positivo e de denúncia da tortura no Portugal
fascista, como local de prática e experiências ao serviço e sob instruções da
CIA/USA, há algumas inexactidões que retiram valor, peso e credibilidade ao
mesmo. É um artigo com uma orientação clara e correcta, que alguns elementos
secundários não devem ofuscar. Assim:
1 - A imagem do Forte de Caxias apresentada não é a da prisão, mas a de um
forte militar existente, que não é associado históricamente à prisão, e que não
foi a prisão politica fascista [a referida imagem foi retirada —
resistir.info]. Nessa prisão
localizada também em Caxias foram
praticadas as torturas referidas no artigo;
2 - A actuação da PIDE não foi a de torturar e depois "libertar", mas sim
torturar, condenar e prender por tempo indeterminado através das célebres
medidas de segurança de 6 meses a 3 anos prorrogáveis (há casos de absolvição
com prisão efectiva por cumprimento de medidas de segurança; era muito
frequente que no final do cumprimento da pena fascista a prisão continuasse com
medidas de segurança).
3 - Não é verdade que, uma vez libertados, os presos politicos ou caíssem no
alcoolismo, ou mudassem de nome, ou se afastassem dos familiares: eram
prestigiados e respeitados (o que se verificou largamente no 25 de Abril). O
traço cumum foi o de continuar a luta, legal, semi-legal ou clandestinamente,
normalmente nas fileiras do PCP.
4 - Nas salas de tortura a iluminação era visivel, de luz intensa e violenta, e
não havia aquecimentos/ar condicionado escondidos.
5 - As refeições eram servidas a horas certas. Com drogas misturadas? Pelo
menos esta ameaça era feita insistentemente.
6 - O engenheiro sujeito a tortura do sono fui eu (31 dias e noites em 33 dias
de calendário), e não me suicidei.
Porque penso que este sitio deve ser respeitado e respeitável, aqui vai este
esclarecimento, que é feito com sentido positivo e de ajuda,
com um abraço
Fernando Vicente
26 de Maio de 2004
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O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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