por Miguel Urbano Rodrigues
Festejei no domingo, em Serpa, entre camaradas e amigos os resultados
alcançados pela CDU nas eleições autárquicas.
Desde o inicio da contra-revolução, no Outono de 1975, sempre
atribuí às eleições locais maior importância
do que às legislativas. A história dos últimos trinta
anos demonstra que os eleitos comunistas e os seus aliados tiveram à
frente de dezenas de câmaras a possibilidade, mesmo em contextos muito
desfavoráveis, enfrentando a hostilidade permanente do Poder Central, de
levar à pratica programas que, na fidelidade aos ideais de Abril,
transformaram a vida das populações, criando os alicerces de uma
futura sociedade participativa e autenticamente democrática.
Já o mesmo não acontece com as Legislativas. Elas semearam
inicialmente ilusões que ainda persistem. Nunca subestimei a
importância de uma forte bancada comunista na Assembleia da Republica.
Mas a minha própria experiência como deputado em
instituições parlamentares europeias e em Portugal
reforçou a convicção de que não é
possível hoje a um partido comunista em qualquer pais da Europa chegar
ao governo através do funcionamento da democracia dita representativa.
Numa época em que o controlo dos sistemas mediáticos é
hegemonicamente exercido pelas forças do grande capital, o voto das
grandes maiorias é decisivamente condicionado por engrenagens
trituradoras que formam a opinião, desinformando através da
imposição de uma realidade virtual. A tese segundo a qual um
partido comunista, actuando numa coligação como parceiro menor de
um partido socialista, tem a possibilidade de contribuir para uma
democratização lenta do sistema encontrou também uma
resposta negativa. Os partidos social-democratas europeus diferem na sua
atitude perante o
Welfare state.
Mas todos se distanciaram do marxismo e desenvolvem actualmente
políticas neoliberais. Todos, portanto, arquivaram projectos
teoricamente socialistas para adoptarem o capitalismo.
No caso português a diferenciação das bases sociais
não impede que o PS e o PSD, cujas direcções são
igualmente reaccionárias, coincidam no fundamental: a
opção por políticas neoliberais, traçadas na
dócil submissão a estratégias impostas pela União
Europeia e o imperialismo norte-americano.
É utópica a ideia de que a eleição de uma forte
bancada comunista pode forçar qualquer governo do PS a mudar de rumo e
empreender uma política que responda a aspirações
mínimas do povo. Admitindo que o PCP conseguisse duplicar a sua
representação em São Bento (o que fóra de um
contexto revolucionário não parece possível), o Partido
Socialista, independentemente do primeiro-ministro de turno, continuaria
a aplicar com zelo uma política interna de classe cujas linhas mestras
seriam sempre traçadas de acordo com as orientações do FMI
e do Banco Mundial, e a desenvolver uma política internacional ditada
por Bruxelas e Washington.
Inferir daí que as eleições legislativas carecem de
significado para as forças progressistas portuguesas seria um erro. Os
textos de Lenine sobre os processos eleitorais continuam a ser uma fonte
preciosa de ensinamentos. Tudo depende da forma como os comunistas actuam nos
Parlamentos.
O PCP já contou com mais de quarenta deputados na Assembleia da
Republica, representando doze distritos. A presença dessa numerosa
bancada na vida nacional era, por si só, um pesadelo para os partidos da
burguesia e um incentivo poderoso para as lutas sociais e a defesa das
conquistas de Abril.
São do conhecimento público as circunstâncias em que essa
representação foi minguando, num panorama em que o
desaparecimento da URSS e a imposição do neoliberalismo na Europa
e na América alteraram profundamente a relação de
forças no final do século XX e abalaram, contaminaram e
destruíram partidos comunistas.
Não foi o caso do PCP que permanece como partido revolucionário,
assumindo-se como marxista-leninista.
Incluo-me entre aqueles que sempre se distanciaram de
aproximações com o PS susceptíveis de viabilizar no
Parlamento entendimentos paralisantes.
Neste tempo em que uma crise global se aprofunda, com o adensar de
ameaças à própria continuidade da vida, as forças
responsáveis pela opressão social estão empenhadas em
privilegiar a política de copa e cozinha.
Num país periférico e atrasado como Portugal, o enxame de
simuladores de cultura instalado na televisão e nas colunas de uma
imprensa mercenária difunde esforçadamente a mensagem
tranquilizadora que serve os objectivos do sistema imperial.
Enquanto as manchetes se concentrarem na crítica ou na apologia da
política de Sócrates e o confronto Soares-Cavaco for apresentado
como decisivo para o futuro de 10 milhões de portugueses, a
polarização do debate em torno desses figurantes, marginais na
historia profunda, será desviada dos grandes problemas da humanidade,
impedindo as massas de tomar consciência de que o descalabro interno tem
raízes numa ameaça exterior de dimensão planetária.
Sócrates e a sua política reaccionária sofreram agora nas
urnas uma derrota inocultável. Mas que não haja duvidas. Assim
como o PS sucedeu ao PSD de Santana, amanhã, em próxima
eleição, este voltará ao governo, para dar continuidade
à política de direita num rodízio deprimente, imposto pelo
funcionamento de um sistema falsamente democrático. Somente o povo,
como sujeito da historia, romperá um dia a engrenagem.
Não subestimo, obviamente, o significado da eleição
presidencial. Mas insiro o acontecimento no grande painel da crise global.
José Saramago foi realista ao lembrar-nos há dias que a
humanidade será, por diferente da actual, irreconhecível dentro
de um século. Não compartilho, porem, o seu catastrofismo.
Não tenho por inelutável o apocalipse, creio que a caminhada para
o abismo pode ser detida.
Mas para que isso seja possível é imprescindível que a
humanidade lute pela sobrevivência de formas de
civilização, de cultura, por ela criadas ao longo de
milénios.
O desfecho depende dela. Somente o efeito cumulativo de incontáveis
lutas travadas no Planeta ameaçado pela engrenagem trituradora de um
sistema monstruoso poderá confirmar que, afinal, o túnel para
onde nos empurraram tem saída.
A grande ameaça reúne hoje numa frente de batalha única
ecologistas, físicos, botânicos, pensadores, teólogos,
revolucionários marxistas e não marxistas.
O filósofo comunista húngaro-britanico Istvan Meszaros
terá sido um dos primeiros intelectuais a colocar a humanidade perante a
opção Socialismo ou Barbárie, retomando, cem anos
transcorridos, num contexto histórico muito mais dramático, a
alternativa de Rosa Luxemburgo.
John Bellamy Foster, o editor da prestigiada revista norte-americana
Monthly Review,
em
lúcido artigo publicado por resistir.info
, esboça o panorama assustador resultante da devastação
dos recursos naturais não renováveis, situação
agravada pela estratégia monstruosa de um sistema de poder de contornos
neo-nazis que destrói simultaneamente culturas, cidades, florestas e
povos, que envenena os rios, os campos e a atmosfera terrestre, que contamina
os oceanos e dissemina epidemias.
O petróleo, a manter- se o consumo actual já superior a 84
milhões diários de barris acabará em meados deste
século. Para ele não há, como fonte de energia,
alternativa no horizonte. As reservas de carvão, de gás natural,
de cobre, ouro, estanho e outros minérios não atingirão
também o século XXII.
A perspectiva é de tragédia.
É no combate pela humanidade que insiro a luta de partidos
revolucionários como o PCP.
É nele que desejo ver empenhado o grupo parlamentar do meu partido, no
distanciamento firme de organizações políticas que actuam
como marionetas no palco de um teatro de feira.
É no assumir de um desafio em defesa da humanidade, que transcenda a
rotina da vida parlamentar, tutelada pela ditadura da burguesia de fachada
democrática, que concebo um papel insubstituível para os
deputados comunistas na denúncia activa do sistema, no incentivo
à mobilização das massas contra um sistema
insusceptível de reforma capaz de o colocar ao serviço do
progresso.
A grande lição, a mais bela que extraio dos resultados
alcançados pela CDU, é a do espírito militante dos
comunistas e não comunistas que os tornaram possíveis,
desmentindo as previsões dos media.
Acompanhei a campanha no distrito de Beja. Participei nela e festejei em Serpa,
entre camaradas, repito, as vitorias dos alentejanos progressistas da Margem
Esquerda do Guadiana. Elas, como a reconquista do Barreiro e da Marinha
Grande, como a defesa de muitas Câmaras e Freguesias cuja defesa parecia
muito difícil, não devem ser encaradas numa perspectiva
eleiçoeira, matemática.
O novo discurso do PCP, transmitido com clareza por Jerónimo de Sousa e
outros dirigentes nacionais e locais, contribuiu para que estas
eleições reforçassem a confiança dos comunistas no
seu Partido. Mas o espírito militante, a disponibilidade para a luta dos
filhos e netos dos trabalhadores que há 30 anos cumpriram o papel de
alavanca das transformações revolucionárias do 25 de
Abril, foram nesta campanha, ao lado da firmeza da velha geração,
o factor decisivo das vitorias alcançadas.
Compreender e não é fácil que essa tremenda
energia e combatividade devem ser utilizadas numa luta tenaz, permanente, dura,
contra o sistema capitalista em defesa da humanidade é o maior desafio
que se coloca hoje aos comunistas portugueses. Porque nunca como hoje o
nacional e o universal se apresentaram tão intimamente interdependentes.
Afinal, no Barreiro, como em Serpa, em Peniche como em Moura, ao derrotarmos os
responsáveis pela transformação do Portugal de Abril num
país imperializado e parasitário, estamos também lutando
pelos povos do Iraque, da Venezuela Bolivariana, da Cuba socialista. Por
quantos na Terra enfrentam com heroísmo uma engrenagem medonha que
ameaça a continuidade da vida.
Serpa, 10/Outubro/2005
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info