O assassino ameaçado
(desde 11 de Setembro de 1217)
Escrever sobre um escritor como Luís Sepúlveda é
viajar pelas dores e pelos anseios humanos, traduzindo-se algumas das escalas
da viagem por consciência literária, por consciência social,
por consciência histórica e por consciência cósmica.
No livro
O General e o Juiz
[1]
, em
Ferramenta portátil para reconhecer os amigos e os inimigos da literatura
[2]
, para além do objecto literário (fremente e envolvente),
sobressai uma teoria da responsabilidade da escrita e das artes em geral.
Sepúlveda não é um anestesista das letras: é um
cirurgião da Língua. E não apenas do Espanhol
del Sur
: o conceito operatório é transponível para os demais
idiomas e dialectos. Sepúlveda não se deixa cativar nem nos
pretende cativar com literaturas de cordel de veludo, pseudo popular só
porque se dispensa de inquietar os ignorantes e os delinquentes, de empregar a
riqueza da Língua a defender os pobres de bens e de mentalidade e a
atacar os ricos de bens e pobres de mentalidade. Porque há
expressões de lazer e de prazer. Sepúlveda, como
Goyito
[3]
, o pescador cubano, amigo e confidente de Hemingway, também confidente
de Sepúlveda em
ferramenta portátil
, propõe o uso justo e audaz da imaginação e da
indignação.
Para ele, escrever é um acto em que o verbo está acima da
verba, conciliando verdade e verticalidade, criatividade e cidadania.
Não se deixa auto-embalar pelos
best-sellers
: ele sabe que há cultos de aparência em todos os domínios
do Saber e do Poder. Um combatente da República das Letras aplica os
verdadeiros nomes aos amigos e aos inimigos da literatura,
que são os mesmos amigos e inimigos da humanidade.
[4]
Luís Sepúlveda está vivo num tempo de grande
inclemência e de sofisticadas tecnologias do embuste. Toca-lhe, como a
nós, suportar e denunciar a Era Cristã de Bush, Blair,
Berlusconi, Aznar ou Pinochet. Encontra-se, mais uma vez, em Portugal, num dos
arredores da Europa, e até se deslocou, para uma sessão-debate
[5]
a uma terra denominada Gondomar, nos arredores do Porto, onde só um
escritor que valoriza as coisas importantes, como gostar dos povos esquecidos,
se dignaria reconhecer sem cobrar
cachet
euro-americano. Para ser totalmente franco, vale mais um Luis Sepúlveda
ou um Pablo Neruda, um Gabriel García Márquez ou um Ernest
Hemingway do que 50 Paulos Coelhos e 100 Margaridas Rebelos Pintos. É a
escolha entre o grande prazer e o pequeno lazer, entre cirurgia e anestesia.
Ora, o que o planeta da Globalização do Pensamento Único e
da Teologia do Mercado requer é
operações de barriga aberta.
Luís Sepúlveda está, de novo, em Portugal, como mensageiro
do Chile de Allende e denunciador do Chile de Pinochet, dois paradigmas dos
caminhos e dos pactos do mundo; e Portugal acolhe o mensageiro com as suas
ciências e artes da esperança, com 30 anos de 25 de Abril e com
uma memória de resistência a 48 anos de fascismo.
A tal propósito, será oportuno introduzir uma breve
antologia do 11 de Setembro, data duplamente aflorada por Luís
Sepúlveda na referida
Ferramenta portátil para reconhecer os amigos e os inimigos da literatura
(o 11 de Setembro de 1973, assinalador do golpe de Pinochet, claramente
assessorado pelos Estados Unidos e o 11 de Setembro de 2001, assinalador do
golpe da Al-Qaeda contra os Estados Unidos, ignorando-se o nível de
assessoramento) É que existem muitos 11 de Setembro nos cadastros das
nações, nos calendários do crime organizado, das
guerras santas
ou das revoluções democráticas. Em homenagem ao autor de
Encontro de Amor/Num País em Guerra
[6]
, de
O General e o Juiz
e de outros enredos -- eis alguns 11 de Setembro
[7]
(que cada setembrista adoptará como Setembros amigos e Setembros
inimigos):
11 de Setembro de 2001 Ataque às Torres Gémeas de Nova
Iorque, reivindicado pela organização de Bin Laden, ex-agente dos
USA. O crime saldou-se em 3.000 mortos.
11 de Setembro de 1973 Golpe militar encabeçado por Pinochet no
Chile contra o Governo Democraticamente Eleito. O crime saldou-se em 10.000
mortos e
desaparecidos
, milhares de prisioneiros, milhares de expulsos dos empregos e das escolas e
milhares de exilados. Pinochet foi acidentalmente preso em Londres e, meses
depois, libertado pelas maquinações do Eixo do Bem. Ao
contrário do intocável Pinochet, Milosevic, que desobedeceu
às directivas imperiais, ficou sujeito ao Tribunal da NATO,
também conhecido por TPI/Tribunal Penal Internacional, em Haia.
11 de Setembro de 1973 Governo israelense
toma a liberdade de expulsar Arafat da Palestina, medida suspensa por
pressão internacional.
11 de Setembro de 1973 Primeira
reunião clandestina dos militares do MFA/Movimento das Forças
Armadas, no Alentejo, preparando o derrube da ditadura terrorista portuguesa,
apoiada ou tolerada pelas
democracias ocidentais
, com os USA à cabeça, pela NATO e por outras
instituições definidoras e reguladoras do Eixo do Bem e do Eixo
do Mal.
11 de Setembro de 1965 Chegada ao
Vietname da 1.ª Divisão de Infantaria dos Estados Unidos,
prenunciando a escalada de um conflito com mais de dois milhões de
mortos vietnamitas e 58.000 filhos dos USA, a estes últimos se
adicionando 2.800
desaparecidos
.
11 de Setembro de 1917 Data de nascimento
de Ferdinando Marcos, ditador das Filipinas (governava por decreto),
sanguinário e intocável,
besta sagrada
da Grande Corrupção e fantoche do Eixo do Bem. Após se
tornar insustentável a manutenção do
friend
Ferdinando, os USA hospedaram-no no Hawai, em 1986, onde gozou da fortuna
até que o Além decidiu abatê-lo ao efectivo terrestre no
ano de 1989 da Era Cristã.
11 de Setembro de 1902 Data de nascimento
de Bento Gonçalves, operário e revolucionário,
secretário-geral do Partido Comunista Português, assassinado, em
1942, no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.
11 de Setembro de 1840 Bombardeamento de
Beirute pela Grã-Bretanha, já na altura apostada na guerra
preventiva contra o poder árabe e islâmico. Não dispomos
do balanço letal das canhoeiras de Sua Majestade. De resto, em meados do
séc. XIX, a vida de um libanês não merecia tratamento
estatístico: ainda valia menos do que hoje a vida de um libanês,
de um palestiniano, de um afegão, de um iraquiano ou de qualquer
opositor, resistente, terrorista
nouvelle vague
ou terrorista amigo descartável.
11 de Setembro de 1217 - Arremetida cristã contra a praça de
Alcácer do Sal, a
Porta do Algarve
. Os bispos de Lisboa e Évora, coadjuvados pelo abade de Alcobaça
e pelas Ordens dos Templários e dos Hospitalários e negociada uma
coligação (já há oito séculos se promoviam
coligações) com os expedicionários do Norte da Europa que
se dirigiam para a
Terra Santa
, lançaram uma ofensiva da cruz e da espada. A empresa foi, mais uma
vez, contra os mouros e, desta vez, contra a vontade do rei D. Afonso II,
ausente no Norte (e de resto, excomungado pelo Sumo Pontífice Romano,
devido a disputas de poder e de propriedades). Não há registos
fiáveis de baixas, embora os cristãos houvessem asseverado que
mandaram para os anjinhos
milhares de infiéis, graças a uma
arma de destruição maciça
então proliferante: uma cruz que irrompeu nos céus.
Pelo exposto, não teremos de aceitar o 11 de Setembro de 2001
como novo marcador/divisor da História, o Antes e o Depois de Cristo de
Nova Iorque. É certo que foi um acto de terrorismo contra um sistema
terrorista, sendo o seu maior delito haver alvejado seres humanos apenas
teoricamente responsáveis por sufragarem com o seu voto e a sua
passividade o sistema em vigor. É certo que se tratou de um acto
hediondo, de contornos ainda por descodificar em toda a extensão da
trama. É certo que tem sido um providencial pretexto para a
militarização e a policiação do mundo pelo Reich
anglo-saxónico. É certo que o Império organizou
exéquias universais, obrigando os governos-satélites, a
comunicação social dominada e dominante e os escribas dos
faraós do
Far-West
a demonstrar luto, repetidas condolências, lágrimas convulsas.
Mas o pesar pelas vítimas de Bin Laden não deverá fazer
olvidar as vítimas dos Estados Unidos e demais potências
imperiais, coloniais, invasoras e espezinhadoras de todos os tempos e lugares.
Temos muitos 11 de Setembro para reflectir.
Recorda-se, também neste encontro com Sepúlveda, com
Goyio
e
a ferramenta portátil
, uma pintura de René Magritte
[8]
, de 1926, que jaz (precisamente) em Nova Iorque
[9]
. O quadro presta-se a uma metáfora irónica e dramática:
intitula-se (quem diria)
O Assassino Ameaçado.
Igualmente, do mesmo artista, jaz, em Londres
[10]
, outro quadro, este de 1928, intitulado
O dormidor imprudente
. O dormidor eleva-se a metáfora de uma Europa subalternizada e de uma
Grã-Bretanha servil, de uma Europa sem projecto alternativo à
Globalização Neoliberal e à Nova Ordem Imperial, antes se
resignando com despojos do
Big Brother
ou se contentando com ritmos de ingerência. Na Europa, como noutros
quadrantes, a expectativa de romper a lógica do sistema reside na
ruptura entre Povos e Governos, geridos e gestores, a economia civilizada e a
economia selvagem, a cultura da diversidade e a cultura da unipolaridade.
Será de complementar que René Magritte, além de
pintor, era um homem de Esquerda, da Esquerda sem ambiguidades, temperada nas
escolas do infortúnio próprio e colectivo e consolidada na
leitura dos clássicos e dos contemporâneos de vanguarda. Magritte
era um surrealista, um dadaísta, um rebelde artístico e um
revolucionário social, corporizando, neste aparente contraste, um
exemplo de coabitação do realismo mágico e do realismo
trágico, do espírito inventivo e do espírito interventivo.
O seu legado como pintor, ilustrador e decorador está instituído.
Haverá, contudo, de fazer acompanhar a sua produção
estética da produção doutrinária, que foi fecunda
desde 1924 até ao seu falecimento, em particular em revistas dos grupos
surrealistas: de Bruxelas (Magritte, Goemans, Lecomte, Nougé, Mesens) e
de Paris (Magritte, Arp, Miró, Éluard). Logo em 1929, na capital
francesa, agita a intelectualidade com o texto
La Révolution surréaliste Le Surréalisme au service
de la révolution.
Em 1929, como em 2004, as artes, a da literatura incluída,
não são neutras e muito menos incompatíveis com o
progresso humano: as suas conquistas temáticas, formais e
ideológicas participam do desenvolvimento integral das ciências e
das técnicas, das sociedades e dos indivíduos. Nada é
neutro, a não ser por negócio da lucidez e da coragem. Não
há refúgio nem
performance
acrobática ou camaleónica que justifiquem ou legitimem
colaboracionismos e branqueamentos, abdicações e omissões.
Os intelectuais e os cidadãos da
aldeia global
, se forem a Nova Iorque, deverão visitar as Torres Gémeas. Mas
também deverão visitar o Museu de Arte Moderna.
________
NOTAS
1- SEPÚLVEDA, Luís,
O General e o Juiz
, 4.ª ed. Porto: ASA Editores, 2003 (1.ª ed. 11 de Setembro de 2003).
2- IDEM, p. 68.
3- IDEM,
Ibidem
.
4- IDEM, p. 73.
5- Sessão-debate c/ Luis Sepúlveda/Gondomar, Livraria-Galeria Arca
das Letras,14/02/2004. Apresentação do autor do presente texto,
entretanto revisto e acrescentado. Após tomar conhecimento da listagem
setembrista, LS adendou uma achega: o dia do seu casamento. Pormenor que
acentua o peso simbólico do 11 de Setembro na vida colectiva e pessoal
dos chilenos, como data negra e de resistência.
6- SEPÚLVEDA, Luís,
Encontro de Amor Num País em Guerra
, 7.ª ed. Porto: ASA Editores, 2004.
7- Efemérides de 11 de Setembro: elementos recolhidos de diversas fontes
enciclopédicas e monografias históricas; e DUARTE, Ana Maria;
GONÇALVES, Egipto; CASPURRO, Joana; FIGUEIREDO, Leonor (Trad.);
VÁRIOS (Aut.), O Livro Negro do Capitalismo, 2.ª ed. Porto: Campo
das Letras, 1998.
8- MAGRITTE, René (1898-1967), belga, pintor cimeiro do Surrealismo, ao
lado de Dali, com obras nos principais museus de Arte Moderna. Dados:
BÉNÉZIT, E.
Dictionnaire critique et documentaire des Peintres/Sculpteurs/Dessinateurs et
Graveurs
, 4.ª ed. Paris: Gründ, 1999.
Tome 9,
p. 18-21;
http://www.artcyclopedia.com/artists/magritte_rene. html
9- Museu de Arte Moderna.
10- Tate Gallery.
[*]
Escritor, jornalista.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
|