Aqui Jaz Ary dos Santos
SENTADO NO MURO DO CEMITÉRIO
A VER PASSAR A CLASSE OPERÁRIA
O que eu posso dizer de Ary dos Santos é que era mais chegado
aos Demónios, também distinguidos, na hierarquia celeste, como
«anjos rebeldes», e nas pugnas terrenas, como perturbadores da Lei &
da Ordem. Com esta segunda máscara, portanto, encarnando nas
gerações da insubmissão, a que Ary denodada e
galhardamente pertencia. Também acho que Ary era um autêntico
aristocrata da Camaradagem e da Rebeldia, da Canção e da
Declamação, da Comida e da Bebida. Ele, Ary, nunca tresmalhou,
nem consentiu que se iludissem a seu respeito, nas trincheiras de Abril e do
Socialismo, mesmo após um manjar dos deuses, incluindo Baco, que
também usava, no convívio com Ary, o cognome de
Gin
ou
Gin
-Ecológico. Também acho que Ary foi um excelente
Publicitário e sempre será um excelente Poeta. Os
empresários não tiveram outro remédio senão
contratar a sua imaginação para revolucionar o discurso social
dos produtos. Mas Ary sempre recusou vender-se (nunca confundiu publicidade com
publiCidadania, sempre fez acompanhar o seu ofício de
sobrevivência de declarações públicas de
não-subserviência).
Também é evidente que Ary se mostra tanto mais
necessário ao Povo quanto mais o Povo é afastado dele, deste
trovador de Abril e de Maio, deste trovejador do «Verão
Quente» e das recuperações dos «senhores do
antigamente». Ora, o que Portugal menos precisa é do que mais
abunda em Portugal: uma economia selvagem embalada de «modernidade»;
um governo endurecido com os mais pobres e amolecido com os mais ricos; o suor
fabril e a inteligência estudantil no desemprego; a juventude sem rumo e
a velhice arrumada. Ary faz notória falta, porque o país
está cheio de patetas e poetas «castrados», porque o mundo
clama por gente com «eles no sítio», e no
site
, para os que vivem noutro Pla
Net
.
Ary, aliado dos sem-emprego, dos sem-casa, dos sem-terra, do
sem-justiça, dos sem-liberdade, artilheiro das Artes da
Resistência-tu, que percorreste centenas de aldeias, vilas e cidades a
disparar poemas pesados e canções ligeiras, em directo e em
disco-estás convocado para as «manif.s» do presente e do
futuro, para as marchas «anti», que desfilam, se perfilam e refilam
de Lisboa a Bombaim, de Seattle a Porto Alegre. Da tua Campa Rasa no Alto de
São João e da tua Rua da Saudade, morada de comunhões e
solidões, continuas a «
pegar o mundo/pelos cornos da desgraça
»
[1]
, e um dos teus e dos nossos desígnios é contrariar o apagamento
dos factos e das memórias, das razões e das
convicções, do direito de resposta à
liberalização da infeliCidade e à
globalização da rapaCidade.
Recordar, Ary, a tua voz, hoje, é um acto de gratidão
colectiva e de decência intelectual e revestir-se-á, para alguns,
de um timbre de coragem, neste tempo de literaturas
light
ou de celofane ou de cordel electrónico, jorradas pelas
indústrias da
Pax Americana
e de suas periféricas rotativas, visando a pacificação da
miséria e a normalização do arbítrio.
Na altura da tua morte, em 1984, tinham decorrido não muitos
anos sobre «
As Portas Que Abril Abriu
»
[2]
e a Comunicação Social e as instituições da
República (nalguns casos, com cerimoniosa impostura) afinaram coros
pesarosos, mau grado já algumas rasuras televisivas, salientando
festivais e ocultando a Obra Poética e a Luta Política.
Provavelmente, se só agora a cirrose te houvesse consumido, as
plangências seriam ainda menos consensuais: entretanto, a direita
apoderou-se da maioria dos órgãos de Poder (e a
Comunicação Social é um desses poderes) e o Poder
tornou-se mais incontido na acção e mais incontinente no verbo.
Em 1984, no plano institucional, apenas a direita da Madeira (mais
acintosa) rejeitou o voto de pesar. Rejeição que, no fundo,
não é explicável somente pela estilística
autonómica do
Homo Funchalensis
, antes se inscreve num apego menos disfarçado aos Mestres do Index & da
Censura, que, desde há séculos, povoam e fecundam a
nacionalidade. Como exemplo historicamente próximo, citaremos a sanha
persecutória, em plena «Primavera Marcelista», ao poeta Ary. E
não escasseariam os recortes dos «cortes», as alusões a
supressões, proibições. Assim, em 22/3/1973, pelas 23:25
horas, pela «calada da noite», o coronel Garcia da Silva, dos
Serviços de Censura/Exame Prévio, ditava para as
Redacções:
«Ary dos Santos-especulação política para vender mais
discos. Entrevista, que é poeta do povo, etc. MANDAR.»
[3]
.
Mandar-claro-para o «corte» dos «coronéis»,
hoje com designativos tecnocráticos e paisanos: directores, editores,
agendadores. Mas Ary tinha, obviamente, outra doutrina para se escudar como
«poeta do povo»:
«A poesia é, em primeiro lugar, a maneira que eu tenho de falar com
o meu
povo. Depois, é por causa desse povo, a própria razão da
minha vida. É pesquisa, luta, trabalho e força. Ser poeta
é escolher as palavras que o povo merece (
). É certo que os
meus detractores, na sua maioria, evidentemente, criticando à direita-e,
tristemente, uma minoria criticando à esquerda-,utilizam como principal
argumento contra o que faço agora o dizerem que eu deixei de ser poeta
para me tornar «comicieiro». O que é certo é que nunca
abandonei nenhuma das três linhas que fazem parte do todo da minha
poesia: a lírica, a satírica e de intervenção.
Não tenho culpa de que em Portugal as entradas para os comícios
do meu partido não custem dinheiro e os livros estejam pela hora da
morte(
)»
[4]
Não obstante costumeiras hipocrisias e rosnadelas, tiveste, Ary,
um funeral conforme a tua exclamatória ambição, expressa a
Joaquim Pessoa, Amigo, Poeta e Publicitário:
«
Quando eu morrer, vai ser em glória. Vai a classe operária toda
ao meu funeral e eu, sentado no muro do cemitério, a vê-los
passar!»
[5]
.
E, no dia seguinte ao teu «adeus às armas», «o
diário» confirmava a auto-previsão, a
antecipação do cortejo pelo Ary. De facto, o préstito que
se despediu do Poeta Militante compunha-se de todos os sectores sociais, com
fortes contingentes do operariado e da generalidade das classes laboriosas:
«Nunca um Poeta teve um Funeral Assim».
[6]
Na verdade, em 1973, como em 1975, como em 1984, Ary nunca fez
política para vender discos, nem nunca se vendeu como qualquer
díscolo do situacionismo, como qualquer escreVideirinho ou
escreviDinheirinho, como qualquer
pivot de chambre
, «pé-de-microfone» ou pé-de-micro
Net
. Na verdade, quem se vendia eram alguns «coronéis», como hoje
se vendem alguns «bacharéis». Ary, aliás, não
era passível de uma OPA/Operação Pública de Venda:
os seus ideais são tão caros, tão altos, tão
irrenunciáveis, que nenhuma agência de propaganda ou de emprego
ousou propor negociações:
«
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
Falso médico ladrão
Prostituta proxeneta
Espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!»
[7]
Ary morreu há 20 anos. Em Janeiro. No dia 18. Temos a
obrigação de o manter vivo. Corremos sério risco de
extinção (cívica e cultural) se não nos
exercitarmos com a sua voz, com as vozes de todos os mortos e de todos os vivos
que justificam a espécie humana. E o compromisso com a Vida implica
tomar partido pela fraternidade e pela emancipação, pelas
multidões de punho firme e esclarecido. E neste tempo de retrocesso de
conquistas democráticas nacionais e de rompimento de equilíbrios
internacionais-ler, cantar e declamar Ary impõe-se como uma
dívida para com um valoroso soldado da Língua Portuguesa e como
uma dádiva em prol das vítimas do sistema capitalista, um sistema
com provas dadas no «mundo do crime». E um dos seus crimes nefastos
é a ilusão da salvação individual, sugerindo
carreiras de sucesso entre esfomeados e ignorantes, espoliados e cativos.
Não admira que o sistema proporcione saídas para milhares
de seres desumanos à custa de milhões de seres humanos, que o
sistema gere inúmeras tentações de atropelar e canibalizar
o semelhante. Não espanta que o «primado da
concorrência» abra caminho a qualificados assaltantes-
managers
ou a «esticadores» por conta própria, afivelando as
correspondentes e ergonómicas máscaras patibulares ou os
vaporizadores aromáticos. Não surpreende que o primado da
fantasia abra igualmente caminho às
top-models
de regimento ou de faces góticas, umas, vendendo ao apetrechos
naturais, de caserna em caserna, outras, mais tocadas pela graciosidade,
convidando-nos para a inauguração da
lingerie
.
De seguida, o Sistema/de Comunicação/Espectáculo e
Ensino ditará os modelos de virtudes, instruindo os povos para os
«Direitos Humanos». De seguida, as falanges do «pensamento
único» e do «fim das ideologias» irrompem por todos os
palcos do oportunismo e da «facada no parceiro do lado» (seja o
parceiro: um colega de trabalho ou um país), sempre que possível,
com ar festivo: «
somos os melhores, somos os melhores
». Já se divisava o quadro no Ano da Morte de Ary dos Santos, mas o
quadro foi enegrecendo entre 1984-2004, fruto das contra-ofensivas a Ocidente e
das «derrocadas» a Leste. E, tu, Ary, sabias disto ou adivinhavas
isto tudo e não te abstiveste de o proclamar, na era dos
«coronéis» e na era dos «capitães», já
que a revolução é a ciência da esperança e
esta ciência carece de inovação constante e esta
esperança carece de paixão vigilante.
«A Poesia está na Rua»-eis o título de um cartaz sobre
o 25
de Abril, concebido pelo nome mais universal da nossa Pintura: Vieira da Silva.
[8]
E Ary foi a corporização/ exteriorização mais
mobilizante da «Poesia na Rua» no marco literário e
político dos Festivais da Canção e da
Revolução dos Cravos. E como não há registo de
libertações garantidas nos processos de
transformação social ou de rendições sinceras dos
adversários da Igualdade e da Liberdade, cumpre-nos permanecer de
atalaia e «avisar a malta»: todos à rua, «que se faz
tarde». E nunca foi tarde para o Poeta da «Canção da
Tarde»:
«Meu amor, nunca é tarde nem cedo
para quem se quer tanto!»
[9]
Onde quer que a denúncia e o confronto se travem, uma coisa
é segura: Ary estará connosco, na
«Homenagem ao Povo do Chile»
, no
«Portugal Ressuscitado»
, em
«A Bandeira Comunista»
, em «Ary por Ary»
[10]
, mesmo sentado naquele muro, oferecendo cravos e «milho-rei, milho
vermelho»
[11]
aos «condenados da Terra»
[12]
.
________
1-Excerto de «Tourada», canção vencedora do Festival da
Canção RTP/1973, letra de Ary dos Santos,
in As Palavras das Cantigas
, organização, coordenação e notas de Ruben de
Carvalho, Editorial Avante!, Lisboa, 1989, pp. 89-90.
2- Santos, Ary dos,
As Portas Que Abril Abriu
, Editorial Comunicação, Lisboa, 1975.
3- Príncipe, César,
Os Segredos da Censura
, 2ª edição, Caminho, Lisboa, 1994, p. 90.
4-
O Poeta morreu-a voz continua
,
in
Diário de Notícias (Suplemento de Domingo), colectânea de
textos extraídos de entrevistas, Lisboa, 22/01/1984, pp. 38-40.
5- Bemfeita, Alberto,
Ary dos Santos, O Homem, O Poeta, O Publicitário/Fotobiografia
, Caminho, Lisboa, 2003, p. 113.
6-
Nunca um Poeta teve um Funeral Assim,
in
o diário, Lisboa, 21/01/1984, pp. 1 e 17.
7- Santos, Ary dos, excerto do poema «Poeta Castrado, Não!»,
Resumo
, Edição de Autor, Distribuição da Livraria
Quadrante, Lisboa, 1972, p. 13.
8-
A Poesia está na Rua
, cartaz de Vieira da Silva, Maria Helena (1908-1992), editado pelo
MFA/Movimento das Forças Armadas, 1974.
9- «Canção da Tarde», interpretada por Carlos do Carmo,
letra de Ary dos Santos, 1976,
in
Bemfeita, op. cit., p. 81.
10- Quatro títulos da discografia de Ary dos Santos.
11- Excerto de «Desfolhada», canção vencedora do
Festival da Canção RTP/1969, interpretada por Simone de Oliveira,
letra de Ary dos Santos,
in
Bemfeita, op. cit., p.50. Segundo relato de Simone,
«as pessoas apareciam nas estações de
comboio, na viagem de Madrid a Lisboa, manifestando-se com espigas
vermelhas»
(Sessão de Homenagem a Ary, Livraria-Galeria Arca das Letras,
Gondomar, 17/01/2004).
12- Fanon, Frantz (1925-196), teórico da via revolucionária para
o Terceiro Mundo e do «Black Power» nos Estados Unidos, autor de
Les Damnés de la terre
, François Maspero, Paris, 1961 (Edição portuguesa :
Os Condenados da Terra
, trad. de Serafim Ferreira, Ulisseia, Lisboa, 1965). Pref. de Jean-Paul Sartre.
[*]
Escritor, Jornalista.
Esta homenagem encontra-se em
http://resistir.info
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