Já é tempo de celebrar os heróis reais, como o que acabámos de perder
por John Pilger
Se quiser encontrar os melhores australianos, encontre homens e mulheres
indígenas que entendem este país extraordinário e
têm combatido pelos direitos da mais antiga cultura do mundo. A sua
é uma luta mais abnegada, heróica e duradoura do que qualquer
aventura histórica que australianos não indígenas
são incessantemente instados a celebrar.
Sei que isto é verdade porque tenho informado e filmado comunidades
indígenas a maior parte da minha vida. Em 1984, encontrei um dos
melhores australianos, Kwementyaye Randall.
Kwementyaye Randall foi, como muitos outros, roubado da sua mãe. Ele
tinha sete anos quando foi levado e nunca mais viu a sua mãe outra vez.
Na verdade, ele sentiu toda a força da brutalidade e duplicidade
australiana na maior parte da sua vida; mas combateu-a e elevou-se acima dela.
Ele nunca vacilou em confrontar a injustiça imposta sobre o povo
indígena. Choro a morte deste velho amigo, um herói real numa
nação que ainda tem de descobrir o sentido moral para honrar quem
corajosamente se ergueu contra a opressão dentro da Austrália.
Quando entrevistei Kwementyaye para o meu filme, Utopia, em 2012, em Mutitjulu
na sombra de Uluru, ele tinha cabelos brancos e um porte distinto, mas ainda
tinha o brilho da rebeldia nos seus olhos. Sua balada, "My Brown Skin
Baby, They Take 'Im Away", é uma das mais comovedoras
canções políticas do nosso tempo. Ele cantou-as para mim
quando nos encontrámos pela primeira vez e pude experimentar minha
resposta electrizante. Sim, era uma canção triste; era
também colérica e dizia que seria um combate até que
houvesse justiça.
Sentado à sombra da sua casa mais de 30 anos depois, ele falava
eloquentemente acerca do amor e do respeito por esta terra que ele o povo
indígena sentiam. Era um educador e um líder natural que ensinava
o povo a reclamar a identidade cultural que é a característica
única da Austrália.
Mas, sobretudo, Kwementyaye Randall ainda estava colérico e ferido. Ele
descreveu vividamente como o exército australiano invadiu sua comunidade
em 2007 "ali eles deitaram abaixo suas tendas, sem perguntarem,
pode acreditar: o exército australiano. Estávamos a ser
invadidos".
Ele estava a referir-se à chamada "intervenção",
quando o primeiro-ministro John Howard enviou o exército a dúzias
de comunidades no Território do Norte com base numa grande mentira: que
"gangs pedófilas" indígenas estavam a abusar de
crianças em "números impensáveis". A seguir, a
Comissão Australiana do Crime, a Polícia do Território do
Norte e o principal organismo de especialistas médicos da
Austrália Central investigaram estas alegações e
não descobriram qualquer evidência que as confirmasse.
As palavras "números impensáveis" foram utilizadas pelo
ministro de Howard dos Assuntos Indígenas, Mal Brough, no programa ABC
Lateline de Tony Jones. Era uma mancha histórica na Austrália
Indígena e levou a um sofrimento indizível no Território
do Norte pois comunidade após comunidade era humilhada e
aterrorizada por uma forma de malícia burocrática.
Auto-mutilações e suicídios quadruplicaram, segundo o
próprio organismo governamental de monitoramento; o povo caía no
que o relatório denominou "desespero generalizado".
Os media desempenharam um papel crucial em tudo isto, nomeadamente o Lateline,
o qual difundiu uma entrevista com uma testemunha encoberta a que o programa
chamou de "jovem trabalhador". Ele era, de facto, um alto
responsável do Departamento de Assuntos Indígenas que se
reportava directamente a Brough. Suas ridículas alegações
foram desacreditadas, mas a ABC nunca pediu desculpas ao invés
disso, efectuou um inquérito que se limpava a si própria de um
modo fantástico. Pedi tanto a Tony Jones como à repórter
Suzanne Smith para relataram por si mesmos diante da câmara como
eles pediam a outros que o fizessem mas eles nem sequer responderam.
Mesmo um funcionário da ABC recusou-se a ser entrevistado.
Uma das vítimas do [programa] Lateline foi Kwementyaye Randall. O
programa atacou de emboscada em Melbourne e divulgou a impressão de que
ele e outros idosos em Mutitjulu não cumpriram seu dever de cuidar da
sua comunidade. É difícil descrever o grau de sofrimento que isto
provocou em Kwementyaye, em outros idosos, em toda a comunidade e nos
indígenas por toda a Austrália. Foi esta incapacidade de pedir
desculpas, para consertar um erro, que devastou um dos melhores australianos.
Na véspera da morte de Kwementyaye Randall, o [programa] Four Corners
divulgou mais do mesmo desta vez endossando distorções
acerca de comunidades na Austrália Ocidental que o deseducado
primeiro-ministro Colin Barnett pretende encerrar, transgredindo portanto pelo
menos três regras estabelecidas do direito internacional. Amy McQuire
demoliu este programa miserável em
New Matilda
e
recomendo a leitura do seu artigo
.
Vi Kwementyaye Randall pela última vez em Janeiro do ano passado, em
lugar de honra entre outros idosos que vieram de toda a Austrália para
se juntarem à multidão de mais de 4000 pessoas em The Block, em
Redefern, para assistir ao lançamento de "Utopia". Pusemo-nos
de pé de braços dados com Rosalie Kunoth-Monks, outra
heroína australiana. Estávamos ambos contentes pela enorme
multidão de não indígenas e a esperança que isto
trazia.
Mas esperança não basta. Kwementyaye Randall sentia profundamente
que até ser dita a verdade aos não indígenas da
Austrália acerca do seu próprio passado de rapina e que cessassem
de encobrir isto com o implacável e dúplice despojamento de
australianos indígenas, bem como com a conivente calúnia covarde
nos media, não haveria justiça neste país.
No meu filme, Utopia, há uma sequência pouco antes dos
créditos finais, na qual soam as palavras pungentes da balada de Glenn
Scuthorpe, "No More Whispering". Quando Glenn canta as palavras,
"O sorriso que não será esquecido; pode alguma vez
desaparecer?", há uma ténue imagem de Kwementyaye Randall,
cuja memória nunca desaparecerá.
15/Maio/2015
O original encontra-se em
johnpilger.com/articles/time-to-celebrate-real-heroes-like-the-one-just-lost
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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